O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mais algumas reflexões sobre a crise https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/mais-algumas-reflexoes-sobre-a-crise/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/mais-algumas-reflexoes-sobre-a-crise/#respond Fri, 08 Jun 2018 05:00:31 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=406 Desfecho da greve dos caminhoneiros mostra como decisões tomadas sob pressão geram distorções e incentivos perversos. Mas nem tudo está perdido.

 

A convulsão nacional provocada pela greve dos caminhoneiros provocou uma ampla discussão sobre os impactos das medidas adotadas pelo governo após a pressão da categoria e do setor transportador. Seguem algumas breves reflexões sobre aspectos importantes que não podemos deixar passar batidos.

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A decisão do governo de reduzir a tributação sobre o óleo diesel para atender as reivindicações dos caminhoneiros também vai beneficiar 46.118 brasileiros que adquiriram automóveis de alto luxo (SUVs e jipes) em 2017. Diminuir a taxação sobre o segmento mais rico da população e seus objetos de desejo é apenas um dos efeitos indesejados quando se governa sob pressão de grupos de interesses.

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Não são apenas os caminhoneiros e as grandes transportadoras que ganharam com a redução do diesel: quanto maior o peso desse insumo na estrutura de custos do setor, maior o presente dado pelo governo. Às vésperas da comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente, o governo não apenas reduziu a tributação sobre um combustível não renovável e altamente poluente. Por tabela, a medida agradou dois dos setores que mais contribuem para a degradação ambiental no país: mineração e agropecuária.

O gráfico mostra os setores que mais dependem do óleo diesel em sua estrutura de custos.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais 2015.

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A explicação de que a greve foi gestada pelo excesso de oferta de caminhões a juros subsidiados tornou-se quase consensual entre os analistas. E os dados do IBGE indicam que o percentual da riqueza do setor de transportes gerada por caminhoneiros autônomos ou informais vinha caindo ano a ano até 2015 (último dado disponível).

O gráfico mostra a participação de autônomos e trabalhadores informais no faturamento do setor de transporte terrestre.
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Por um lado, esses números podem ser sinal da queda do valor do frete derivada da alta concorrência no setor. Vistos por outro prisma, podem significar também um fortalecimento do poder das transportadoras, impulsionado inclusive pela desoneração da folha de pagamentos. É uma outra dimensão para o problema que merece ser pesquisada com mais profundidade.

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Nas duas últimas semanas não faltaram comparações entre o movimento dos caminhoneiros e as manifestações de junho de 2013. O assunto é complexo e merece um longo ensaio explorando suas diferenças e semelhanças. Por ora aqui vão apenas duas que considero fundamentais para entender o Brasil atual.

Junho de 2013 e maio de 2018 têm naturezas bastante distintas no que se refere à lógica da ação coletiva de Olson. Enquanto há cinco anos as ruas foram tomadas por um movimento difuso em termos dos manifestantes e suas reivindicações, as estradas foram bloqueadas nas semanas anteriores por um grupo muito bem definido, organizado e articulado, com um objetivo muito claro: reduzir a carga tributária incidente sobre o setor.

De igual, em ambos os casos o maior vencedor foi o setor de transportes. Há cinco anos, as empresas de ônibus se aproveitaram do pânico do governo para arrancar uma redução de impostos sob a promessa de garantir os tais R$ 0,20 nas passagens. Nas últimas semanas, a história se repetiu. E todas as categorias e grupos de interesses do Brasil aprenderam como vale a pena emparedar governos fracos.

O gráfico mostra a queda da carga tributária do setor de transporte de passageiros.
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Não devemos nos iludir a respeito da propagada espontaneidade do movimento dos caminhoneiros. Seu poder de organização vai muito além das redes sociais cultivadas desde os tempos do rádio amador. Apenas para ilustra, existem atualmente no Congresso Nacional três frentes parlamentares que defendem os interesses dos transportadores: a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Setor de Transporte Rodoviário de Cargas, a Frente Parlamentar Mista de Transporte e Logística (Translog) e a Frente Parlamentar Mista de Logística de Transportes e Armazenagem (Frenlog).

Juntas, essas bancadas de defesa do transporte de cargas congregam aproximadamente 350 deputados, praticamente três em cada cinco parlamentares. Desses, 78 estão vinculados às três frentes de apoio ao setor – ou seja, tendem a ser altamente engajados na causa. E para demonstrar como essa cadeia produtiva está bem articulada, desse grupo de deputados que está fechado com os rodoviários, 46 também participam da toda poderosa Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPA), a famosa bancada ruralista.

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Se me pedissem para indicar uma coisa boa de toda esta crise, ousaria dizer que foi destacar temas que normalmente não pautam a cobertura da imprensa ou as discussões nas redes sociais.

Expressões como “custos difusos e benefícios concentrados” e “rent seeking” foram frequentemente utilizadas como chaves interpretativas para o movimento dos caminhoneiros, suas reivindicações e conquistas. Da mesma forma, gerou-se um debate importante sobre nossa estrutura tributária e a incômoda pergunta: “quem vai pagar a conta”? E esse é um papo fundamental nestes 4 meses que nos separam das eleições.

O gráfico mostra o aumento de buscas no Google para termos como rent seeking, carga tributária, regressividade, etc.
Fonte: Elaboração própria a partir de resultados de buscas no Google Trends.

 

 

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]]> 0 Depois da crise, é hora de escolher os perdedores https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/29/depois-da-crise-e-hora-de-escolher-os-perdedores/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/29/depois-da-crise-e-hora-de-escolher-os-perdedores/#respond Tue, 29 May 2018 05:12:39 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=383 Impasse com os caminhoneiros indica que aumentar a carga tributária não funciona mais

“De nada adianta ficar-se de fora
A hora do ‘sim’ é um descuido do ‘não’”.
[Sei lá… A Vida tem Sempre Razão – Vinícius & Toquinho]

 

O economista Eduardo Giannetti foi o primeiro a levantar, aqui na Folha, que a greve dos caminhoneiros pode ser o embrião de uma rebelião tributária. Depois de expandir a carga tributária de forma praticamente ininterrupta desde 1988 e sem entregar segurança, educação, saúde e outros serviços públicos de qualidade, o país é sacudido novamente por segmentos da população que dizem não aguentar mais “tudo o que está aí”.

Michel Temer e seu núcleo político cederam a praticamente todas as reivindicações dos caminhoneiros: isenções tributárias, redução nos pedágios, subsídios para a Petrobrás não reajustar os preços do petróleo. Em nome da paz nas estradas, a conta sairá bastante salgada. Restará à equipe econômica atual, e sobretudo a do próximo governo, decidir se joga gasolina no incêndio ou se enfrentará o desafio sempre adiado de encarar a responsabilidade e escolher os perdedores dessa disputa.

O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, prometeu compensar as benesses de reduzir na marra o custo do frete com reoneração da folha de pagamentos e fim de alguns benefícios fiscais. Seria uma solução pouco usual na história brasileira, em que a conta costuma ser repassada para toda a coletividade, e não imposta sobre alguns setores. Num governo comandado pelo MDB e que desde a sua posse cedeu a pressões de diversos grupos de interesse (vide os reajustes de servidores públicos, os vários Refis e a demora na aprovação da, veja você, reoneração da folha), estou pagando pra ver.

A grande vantagem da crise atual é que parece estar ficando claro para a população que as finanças públicas são um campo de batalha no qual se desenrola o conflito distributivo. As discussões sobre quem vai pagar a conta dos benefícios dados aos caminhoneiros e as grandes transportadoras ocuparam a imprensa, as redes sociais e os almoços familiares nos últimos dias. E podem dar força para a tal rebelião tributária prevista por Giannetti.

Com o total de tributos consumindo mais de um terço de tudo o que é produzido no país, o grau de liberdade do governo reduziu-se bastante nos últimos anos. Uma das saídas disponíveis para aliviar o peso sobre boa parte da população seria alterar a composição dessa carga tributária. Como pode ser visto no gráfico abaixo, no Brasil nós tributamos muito o consumo (essa é uma das causas para os produtos serem tão mais caros aqui do que no exterior) e a folha de pagamentos, aliviando a renda e o patrimônio. Para agravar a situação, como o governo não é bobo, ele tenta maximizar sua receita pegando ainda mais pesado nos bens que são essenciais, como, olha só, combustíveis!

O gráfico mostra o perfil do sistema tributário brasileiro em comparação à média dos países da OCDE
Fonte: OECD. Revenue Statistics in Latin America and the Caribbean 2018.

Uma das formas de aliviar a carga tributária sobre combustíveis e outros bens e serviços, fazendo com que seus preços fiquem próximos ao patamar internacional, seria aumentar a tributação sobre patrimônio e a renda. Mas isso é inadmissível para boa parte de nossa classe alta (que se autoproclama média). Seja bem-vindo ao conflito distributivo brasileiro!

Se é difícil fazer com que aqueles de maior renda paguem proporcionalmente mais imposto, um passo alternativo seria deixar de abrir mão de receita. Há décadas o governo brasileiro concede uma série de agrados tributários para diversos setores econômicos e segmentos populacionais, aceitando com que paguem menos ou nenhum imposto.

De igrejas a empresas instaladas na Zona Franca de Manaus, passando por deficientes físicos que adquirem automóveis com desconto de IPI – e, por falar nisso, a sempre voraz indústria automobilística –, o governo federal abrirá mão de mais de R$ 280 bilhões neste ano, sem contar as concessões feitas aos caminhoneiros. Se você quer saber como o governo abdica de tanto dinheiro assim, é só passar o mouse sobre os círculos no gráfico abaixo, que indicam os programas de isenções fiscais e seus respectivos valores estimados no Orçamento de 2018:

Um fato importante sobre essas desonerações, isenções e regimes especiais de tributação, além da arrecadação bilionária que não entra nos cofres públicos, é que elas são extremamente difíceis de serem extintas – pois da mesma forma que os grupos de interesse investem pesado para instituir esses benefícios, eles também se valem do seu acesso privilegiado ao poder para prorrogá-los e evitar sua extinção. E nesse jogo vale todo tipo de pressão: lobby, ameaças, acordos por debaixo da mesa, toma-lá-dá-cá e, claro, corrupção.

Bom, se pelo lado da receita está difícil mudar, talvez pela despesa o caminho seja menos esburacado – afinal, o Orçamento brasileiro passa de R$ 3,5 trilhões! Mas as coisas não são tão fáceis assim.

Em primeiro lugar, esqueça essa história de calote (“renegociação”, segundo o eufemismo) da dívida. A maior parte do orçamento (40%) vai para o pagamento de amortizações, mas seus recursos não advêm da arrecadação de impostos, mas sim da rolagem da própria dívida – estão fora, portanto, do conflito orçamentário. Quanto à parcela de juros e demais encargos (11%), já é passada a hora de crescermos e admitirmos que essa conta se deve única e exclusivamente a nosso passado – distante e recente – de irresponsabilidade fiscal, gastanças e… calotes. Pelo bem do nosso futuro, é melhor construir uma reputação de país confiável deixando esse tipo de despesa intacto.

O gráfico mostra a composição do Orçamento da União em 2018 de acordo com a natureza das despesas
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Orçamento 2018.

Outro tipo de despesa que é praticamente “imexível” no curto prazo são os gastos com pessoal e encargos sociais. De um lado, o dogma da estabilidade dos servidores públicos e, felizmente, a expansão da expectativa de vida da população tornam complicado diminuir o número de ativos e inativos. A Constituição também veda reduções nos rendimentos e proventos de servidores, aposentados e pensionistas.

Diante dessas restrições, a única saída para liberar dinheiro para reduções na carga tributária no campo das despesas de pessoal é retomar a agenda perdida por Temer no fatídico dia em que veio à tona o seu encontro com Joesley Batista na calada da noite no Palácio do Jaburu: congelar aumentos de salários das carreiras que recebem mais, aprovar a idade mínima para aposentadoria e aumentar a contribuição previdenciária de ativos e inativos para conter o rombo da previdência oficial.

Agora, convenhamos: Você acha que um governante em fim de mandato (o famoso “pato manco” dos americanos) será capaz de enfrentar poderosas corporações de servidores públicos? E mexer na previdência dos militares – algum presidenciável se habilita a defender essa proposta em campanha?

Como não há mais espaço para reduzir os investimentos públicos, que chegaram a seu piso histórico ao representar apenas 1% do Orçamento, restaria para algum governante atual ou futuro atacar as chamadas “Outras Despesas Correntes”. Para quem não sabe, residem nesse grupo aquilo que costumamos chamar de “políticas públicas”: do seguro desemprego aos programas de saúde e educação fomentados pelo governo federal, incluindo a Previdência dos trabalhadores urbanos e rurais bancados pelo INSS.

Como você pode ver passando o mouse pelos retângulos do gráfico acima, temos centenas de programas governamentais, muitos deles com cifras bilionárias. Uma racionalização nessas políticas públicas é urgente, pois todos sabemos que a ação governamental é de péssima qualidade e muitos desses programas são ralos de desperdício de dinheiro público e antros de corrupção. Mas também aqui as dificuldades são imensas.

Em primeiro lugar, não temos o hábito de avaliar o custo-benefício dos programas governamentais. Governo, universidades e sociedade civil não investem tempo e recursos humanos e financeiros para descobrir o que dá certo e o que não dá, o que compensa continuar e o que deve ser extinto porque só rasga dinheiro público.

Obviamente existem exceções, mas até elas demonstram como somos atrasados em desenvolver uma cultura de avaliação de gastos públicos. Nossa política pública mais pesquisada, no Brasil e no exterior, é uma unanimidade em termos de resultados sociais e retorno do investimento público – estou falando do Bolsa Família. No entanto, ele também é o programa governamental menos compreendido entre a população e alvo recorrente de notícias falsas, principalmente em tempos eleitorais.

Além de não costumarmos avaliar as políticas públicas que merecem ser ampliadas, reformadas ou simplesmente canceladas, a maioria delas está prevista em lei ou até mesmo na Constituição, frequentemente com normas obrigando o governante a destinar um certo percentual das receitas para financiá-las. Dessa forma, o Orçamento brasileiro é extremamente rígido, e ano após ano continuamos despejando bilhões de reais onde não deveríamos.

Por fim, extinguir programas ou reduzir drasticamente os recursos destinados a eles encontra barreiras políticas difíceis de serem transpostas. Afinal de contas, cada política pública tem a sua própria clientela, e políticos que não querem se indispor com fatias relevantes do seu eleitorado – para não falar de uma rede de agentes que se beneficiam, de modo lícito ou ilícito, do seu provimento. Como desagradar é um verbo que nós brasileiros em geral não gostamos de conjugar na primeira pessoa, ações governamentais ineficientes continuam atendendo corruptos e corruptores, em detrimento da população em geral.

Diante de tantas dificuldades institucionais nos lados da arrecadação e do gasto público, talvez não seja de todo uma má ideia enfrentarmos uma rebelião tributária no Brasil. Se nos tempos de bonança não nos prestamos a aprovar as reformas necessárias, talvez sob o calor das ruas e do colapso fiscal que se aproxima consigamos deixar de lado nossos privilégios pessoais e pensar um pouco mais no país desigual em que vivemos.

Se não for assim, a conta será paga pelos mesmos de sempre. Não será “o governo”, “o Tesouro” ou “a Viúva” – e sim a população em geral, que tem o seu bem-estar estrangulado por altos impostos sobre o consumo e serviços públicos de péssima qualidade.

 

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Com ou sem nota, PJ? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/11/com-ou-sem-nota-pj/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/11/com-ou-sem-nota-pj/#respond Fri, 11 May 2018 05:00:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=355 Dados sobre pagamento de Imposto de Renda são um retrato de como o Brasil é uma máquina na criação de privilégios públicos e privados


Mas não se preocupe, meu amigo,
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente, quer dizer
A vida é muito pior

(“Apenas um rapaz latino americano” – Belchior)

Desde a semana passada uma tabela apareceu recorrentemente na “timeline” das minhas redes sociais, compartilhada tanto por amigos de direita quanto por esquerdistas. Tratava-se da compilação de um documento da Receita Federal contendo as quinze ocupações com maiores rendas médias anuais de acordo com a declaração de Imposto de Renda Pessoa Física de 2013.

Reproduzo abaixo o ranking, atualizando-o com os últimos dados disponíveis (2016) e expandindo a lista para as 20 categorias com maior rendimento:

O gráfico mostra o ranking das 20 categorias com maiores rendimentos médios segundo o IRPF.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

O principal motivo para a indignação que uniu os defensores do Estado Mínimo aos seus adversários que pregam contra a “casta judicial que condenou Lula sem provas” está no fato de que a lista acima é dominada por categorias do funcionalismo público.

Eles têm razão na revolta. Como já demonstrei aqui, sindicatos de algumas carreiras públicas vêm atacando com voracidade o Orçamento Público para assegurar rendimentos que são, na imensa maioria dos casos, muito superiores ao seu retorno para a sociedade.

O gráfico acima, portanto, é um retrato do processo de caça à renda (rent seeking) levado a cabo diuturnamente pela elite do funcionalismo público no Brasil. O problema é que ele só conta uma parte da história: uma outra elite, esta no setor privado, também se utiliza habilmente de mecanismos de concentração de renda para se dar bem.

Se o rent seeking dos servidores públicos consiste em ameaçar a cúpula dos Três Poderes para aprovar projetos de lei ou obter decisões judiciais concedendo-lhes aumentos salariais e toda sorte de penduricalhos, categorias do setor privado se valem do sistema tributário e da legislação trabalhista para pagar bem pouco imposto.

Falo aqui das incríveis vantagens da “pejotização”, principalmente quando combinada com os regimes tributários de lucro presumido e Simples e a isenção de Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos.

Bernard Appy, ex-Secretário de Política Econômica no governo Lula e atual diretor do Centro de Cidadania Fiscal, fez as contas numa entrevista aqui na Folha.  O mesmo profissional, prestando o mesmo serviço, contratado por R$ 30 mil brutos por mês, pode receber, líquidos, R$ 15.109 se for celetista, R$ 24.508 se constituir uma PJ tributada segundo o lucro presumido ou R$ 26.563 se for uma PJ enquadrada como Simples.

“Aqui há um problema distributivo claríssimo. É injustificável que duas pessoas que façam a mesma coisa, prestando exatamente o mesmo serviço, tenham uma diferença tão grande de tributação”, avalia Appy.

Para jogar um pouco de luz nesse “lado escuro da Lua” da tributação de pessoas físicas no Brasil, fui atrás dos dados e cheguei a algumas constatações. A primeira delas é que esse sistema deve realmente valer a pena, pois o número de pessoas que adere à pejotização, principalmente em categorias de maior qualificação profissional, cresce vertiginosamente nos últimos 10 anos.

O gráfico mostra o crescimento da pejotização em diversas categorias profissionais entre 2007 e 2016.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

O gráfico acima revela que, de duas, uma: ou o Brasil sofreu um surto empreendedor sem precedentes nos últimos anos, ou houve uma alteração significativa nos incentivos que levam as pessoas a se tornar PJs.

É verdade que muitas vezes a opção pela pejotização é uma imposição do empregador, que busca aliviar sua folha de pagamentos, acarretando inclusive a precarização do trabalho. Mas também é inegável que diversas categorias de maior qualificação têm pressionado o Legislativo em busca da extensão de hipóteses de adesão aos sistemas de lucro presumido e a possibilidade de opção pelo Simples nos últimos anos.

De acordo com dados de 2014 compilados num relatório da Comissão de Assuntos Econômicos que avaliou a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, só 3% das empresas brasileiras são tributadas com base no lucro real, sendo responsável por 80% da arrecadação do IRPJ. Os outros 97% são imunes, isentos ou optantes pelo Simples ou pelo regime de lucro presumido – razão pela qual respondem por apenas 20% do valor auferido pelo Fisco junto às empresas.

O problema dos regimes do Simples e do lucro presumido é que o ganho da empresa é arbitrado abaixo da realidade. Desse modo, o sócio ganha duplamente: sua empresa paga bem menos imposto, e ele pode distribuir o lucro excedente para si próprio, de forma totalmente isenta.

A característica notável desse sistema é que ele gera injustiça: profissionais semelhantes são tributados de modo muito díspare em função exclusivamente do regime contratual e tributário ao qual estão vinculados. O gráfico abaixo mostra justamente isso. Para cada categoria (localizada nos vértices do gráfico), os PJs (linha azul) pagam uma alíquota efetiva bem menor do que seus colegas que têm tributação na fonte (linha laranja).00

O gráfico mostra a diferença de tributação entre PJs e demais profissionais em diversas categorias.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

A consequência disso é a criação de um fosso dentro de cada categoria profissional: os rendimentos médios dos PJs são significativamente superiores aos dos seus colegas celetistas:

O gráfico mostra a diferença nos rendimentos médios entre PJs e demais profissionais em diversas categorias.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

Ao beneficiar com impostos menores justamente quem já se encontra no topo da pirâmide, a pejotização agrava a desigualdade de renda. Assim, se refizermos o ranking das 20 categorias com maiores rendimentos do Brasil levando em conta a pejotização, vamos verificar que jornalistas, médicos, engenheiros, executivos e advogados constituídos em PJs disputam os postos mais altos com a nata dos servidores públicos – com a diferença de que pagam significativamente menos imposto de renda.

O gráfico mostra novo ranking das categorias de maiores rendimentos segundo o IRPF, levando em conta a pejotização
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

A conclusão dessa história não deve servir para rebater críticas aos inúmeros privilégios do funcionalismo público brasileiro, os quais me beneficiam diretamente. Os números demonstram, na verdade, que do outro lado também há um sistema criado para beneficiar a elite privada.

E no meio dessas duas engrenagens concentradoras de renda, subsiste uma imensa massa de brasileiros que sustenta em suas costas um Estado inchado, mas sem ter acesso às brechas tributárias que jogam sobre si também a carga dos mais ricos.

 

 

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Deveríamos pagar mais imposto https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/04/24/deveriamos-pagar-mais-imposto/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/04/24/deveriamos-pagar-mais-imposto/#respond Tue, 24 Apr 2018 05:00:55 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=345 O sistema de deduções e isenções do imposto de renda de pessoas físicas amplia a desigualdade no Brasil

Não fui eu, nem Deus, não foi você, nem foi ninguém
Tudo o que se ganha nessa vida é pra perder
Tem que acontecer, tem que ser assim
Nada permanece inalterado até o fim

Se ninguém tem culpa não se tem condenação
Se o que ficou do grande amor é solidão
Se um vai perder, outro vai ganhar
É assim que eu vejo a vida, e ninguém vai mudar

 (“Tem que Acontecer”. Sérgio Sampaio)

 

Saiu na última piauí um dos melhores textos que li recentemente sobre a sociedade brasileira. Tomando como mote uma pichação que se espalhou pela Zona Sul do Rio, o cineasta João Moreira Salles faz uma análise melancólica sobre como recorrentemente nos eximimos da responsabilidade coletiva por sermos quem nos tornamos.

O “não fui eu” pintado nos muros e tapumes cariocas tem potencial para entrar no rol das expressões que nos representam, como a lei de Gérson, o “você sabe com quem está falando?”, de Roberto Damatta, ou “o país da meia-entrada“, de Marcos Lisboa e Zeina Latif. A frase não é mera declaração de inocência. Significa também tirar o corpo fora, atribuir ao outro (ou ao Estado ou aos políticos) a responsabilidade pelas nossas mazelas sociais, é não se sentir cúmplice das tragédias que nos rodeiam. Representa o desinteresse pelos problemas comuns – é, em última análise, a negação do sentido de coletividade e da própria política.

Na lógica do “não fui eu” todos nós, ditos cidadãos de bem, lavamos as mãos sobre o país desigual e extremamente violento em que vivemos. Jogamos a culpa nos políticos corruptos, ou no nosso passado escravocrata. Criticamos o governo por gastar mal, mas justificamos com convicção nossos próprios privilégios.

Não importa se coxinhas (“a culpa não é minha, eu votei no Aécio”), petralhas (“não reconheço governo golpista”) ou isentões, todos gritamos, de olhos fechados para a realidade que nos cerca: “não fui eu”.

Nesse último fim de semana eu fiz a minha declaração de imposto de renda. E ainda afetado pelo artigo, pensei no quanto de “não fui eu” deve ter sido proferido enquanto dezenas de milhões de pessoas juntavam documentos para acertar as suas contas com o leão. Afinal, quem paga tanto imposto não pode ser culpado por um Estado tão ineficiente e corrupto.

A maioria de nós, que nos autoproclamamos classe média (embora quem ganhe acima de R$ 5.700 por mês pertença aos 5% mais ricos da população), reclama dos altos impostos. E malandramente fingimos não saber que, para o país se tornar mais justo, deveríamos pagar muito mais.

O sistema tributário é uma das grandes máquinas de criação de desigualdade no Brasil. Nossa carga de impostos é de país desenvolvido (32% do PIB, contra a média de 34,3% na OCDE), mas nossa estrutura tributária é horrivelmente iníqua: taxamos muito o consumo e a massa salarial, e bem menos a renda e os lucros. O resultado disso é que penalizamos os assalariados e pobres (cuja maior parte da renda é gasta no consumo), enquanto aliviamos a barra dos mais ricos. Nos países desenvolvidos, ao contrário, o peso maior está na renda e nos lucros.

O gráfico mostra o perfil do sistema tributário brasileiro em comparação à média dos países da OCDE
Fonte: OECD. Revenue Statistics in Latin America and the Caribbean 2018.

Voltando à minha declaração do imposto de renda, uma inovação dos técnicos da Receita Federal oferece um bom retrato de como o “não fui eu” funciona no sistema tributário. Trata-se do cálculo da alíquota efetiva, a relação entre o imposto devido e os rendimentos tributáveis, que aparece no canto inferior esquerdo da tela da declaração.

Grosso modo, a alíquota efetiva calcula o quanto de imposto de renda pagamos sobre nossos rendimentos, descontadas as deduções. No meu caso específico, abatidas as despesas com a escola dos meus filhos, os gastos com plano de saúde e consultas médicas e mais a previdência oficial e complementar, a alíquota efetiva ficou em 16,68% – bem abaixo da alíquota máxima, que é de 27,5%.

Muitos dirão que isenções e deduções do imposto de renda são um mecanismo justo para um Estado que oferece tão pouco para os cidadãos. É aí que mora o pensamento do “não fui eu”.

Ao longo das últimas décadas, a chamada “classe média” brasileira passou a achar normal pagar duas ou três vezes pelos mesmos serviços. Pagamos um sistema de educação pública por meio de tributos, mas matriculamos nossos filhos em escolas particulares. E como essas ainda são insuficientes, recorremos a extras como reforço escolar, aula de inglês, esportes…

Na saúde acontece o mesmo. O SUS é ruim? Contratamos um plano de saúde. Mas quando o médico só atende pelo convênio daqui a dois meses, uma consulta particular garante vaga para o dia seguinte. Ou seja, pagamos três vezes pelo mesmo serviço devido a uma combinação de sistema público ineficiente com falhas na regulação e na fiscalização do setor privado.

Como solução, em vez de cobrar serviços públicos de melhor qualidade, exigimos do Estado compensações por termos de recorrer ao setor privado em razão de sua falência.

O gráfico mostra o percentual de deduções e isenções sobre o total de rendimentos dos contribuintes, por faixa de renda.
Receita Federal do Brasil Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas. Ano Calendário 2016.

O gráfico acima dá uma dimensão do quanto as classes mais altas são eficientes em aprovar leis que lhes concedam isenções e deduções para pagarem menos imposto de renda sobre pessoas físicas. A linha indica que, depois de atingir um mínimo de descontos na faixa de renda de 2 a 3 salários mínimos por mês, em geral quanto mais alta a renda, maior a sua proteção contra as mordidas do leão.

Especialmente neste ano de eleição onde a maioria de nós quer renovação e mudança, é chegada a hora de buscarmos um sistema tributário mais justo. Isso passa pelo combate à sonegação, pela redução drástica dos subsídios e incentivos fiscais, mas também por mais progressividade dos tributos.

Faz-se urgente, portanto, combater o “não fui eu” de nossa pseudo classe média que abate despesas de médicos, dentistas, fisioterapeutas e psicólogos do imposto de renda – benefício que atinge uns poucos milhares, enquanto a imensa maioria da população simplesmente não tem dinheiro para esses “luxos”. E o que dizer da educação privada: permitir a dedução de despesas com esses serviços não desequilibra o jogo em favor de quem já tem mais renda?

Deduções e isenções no imposto de renda são vantagens criadas para quem está no topo da pirâmide de renda, e acabam minando o princípio da progressividade, segundo o qual quem ganha mais deve pagar proporcionalmente mais impostos.

Permitir o desconto de tais despesas dos mais ricos representa, de duas uma: ou menos dinheiro para investir em serviços melhores para a população, em especial os mais pobres; ou mais tributos sobre o consumo e os salários, prejudicando justamente a camada de baixo da pirâmide de renda.

Na hora de fazer a sua declaração anual do IRPF, portanto, deixe de lado o “não fui eu” e admita que, pelo bem do país e de si próprio, você deveria pagar mais imposto.

 

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Desoneração de alguns e oneração de milhões https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/#respond Fri, 14 Jul 2017 08:30:30 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=90 Enquanto acompanhamos o julgamento de nossos malvados favoritos, a agenda empresarial avança a toda velocidade no Congresso

O pato vinha cantando alegremente, “quem, quem”
Quando o marreco sorridente pediu
Pra entrar também no samba, no samba, no samba
O ganso gostou da dupla e fez também, “quem, quem”
Olhou pro cisne e disse assim “vem, vem”
Que o quarteto ficará bem, muito bom , muito bem

“O Pato” (Jayme Silva & Neuza Teixeira)

 

Lula, Aécio, Temer, Rodrigo Maia…  Como discutimos sobre o destino que merecem nossos “malvados favoritos” nas investigações e processos que compõem a novela da nossa situação política!

Enquanto nossa atenção se concentra no noticiário político-policial, uma intensa agenda legislativa rentista avança a toda velocidade no Congresso Nacional. Nossos capitalistas que tanto criticam a carga tributária mas que adoram um benefício fiscal e um crédito subsidiado do BNDES têm se movimentado bastante em Brasília – e isso não tem a ver apenas com a manutenção ou substituição de Michel Temer na Presidência da República.

Hoje vou chamar a sua atenção para a reação empresarial contrária à proposta da equipe econômica de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

Para quem não sabe, a partir de 2011, visando estimular o emprego e a produção nacional, o governo mudou a lógica de tributação destinada ao financiamento de nossa Previdência Social. Em inúmeros setores empresariais, a dupla Dilma-Mantega trocou o modelo baseado na folha de pagamentos (com alíquotas em torno de 20%, incluindo contribuições de empregados e empregadores) para um sistema de tributação sobre o faturamento das empresas (atualmente de 1,5% a 4,5%, dependendo do setor).

Essa decisão de política econômica é um exemplo claro de como atua nosso capitalismo rentista, e como é complicado desativar seu funcionamento. Vou explicar por quê.

 

“O pato vinha cantando alegremente”

No início não era o verbo.

Em termos de desoneração da folha de pagamentos, ao editar a Medida Provisória nº 540/2011 a intenção era beneficiar apenas alguns setores bem específicos: TI, equipamentos de comunicação, vestuário, calçados, móveis, couro e peles – segmentos que, na visão do governo à época, estavam tendo dificuldades de recuperar o nível de atividade que tinham atingido antes da crise de 2008/2009.

O programa de desoneração destinava-se a ser temporário (de agosto de 2011 a dezembro de 2012) e ter um impacto orçamentário de R$ 214 milhões em 2011 e R$ 1,43 bilhão no ano seguinte.

Já dizia Caetano que “a vida é real e de viés”, e a verdade é que, em se tratando de medidas provisórias concedendo benefícios, quando passa um boi, passa também uma boiada. E o lobby empresarial tratou rapidamente de mobilizar seus contatos no Congresso para expandir os limites da medida provisória durante a sua tramitação.

 

“Quando o marreco sorridente pediu pra entrar também no samba”

Enquanto a MP nº 540/2011 percorria seu caminho no Congresso Nacional, outros setores pegaram carona nela.

Empresas de call center, de projetos e circuitos integrados, de artigos para academias de ginástica e até de botões, grampos e ilhoses também conseguiram o benefício da desoneração da folha de pagamentos com a conversão na MP na Lei nº 12.546/2011.

E ainda tiveram um bônus adicional: deputados e senadores estenderam o prazo de vigência do programa de 2012 para o final de 2014.

Se você vai seguir este blog, vai ver que isto é muito comum em se tratando de tramitação legislativa no Congresso: ampliação de benefícios, extensão de beneficiários e prorrogação de prazos.

É o rent seeking brasileiro atuando na elaboração de leis.

 

“O ganso gostou da dupla e fez também, ‘quem, quem’ / Olhou pro cisne e disse assim ‘vem, vem’”

Com o programa de desoneração na rua, o pessoal começou a ver que ele valia a pena e seria um excelente negócio.

E por causa disso, até o final de 2014 foram editadas mais seis normas tratando da desoneração da folha de pagamentos: Leis nº 12.715/2012, 12.794/2013, 12.844/2013, 12.873/2013, 12.995/2014 e 13.043/2014.

Todas elas resultantes de medidas provisórias – com tramitação rápida e, portanto, pouco debate junto à sociedade.

Todas elas com pouquíssimos vetos presidenciais – o que demonstra que havia concordância da Presidência da República com o crescimento dos benefícios fiscais.

Todas elas expandindo os setores beneficiados, chegando a milhares de códigos da Tipi, a tabela utilizada para classificar os setores para fins tributários. Eram 28 na primeira MP!!!

Todas elas abaixando as alíquotas de pagamento ou ampliando (até eliminarem) o fim da vigência do programa.

Olhando pra trás, estava na cara que a situação sairia de controle.

 

“Que o quarteto ficará bom, muito bom, muito bem”

Um problema comum nos programas de benefícios fiscais é que a conta geralmente não fecha. E ela sobra para o contribuinte comum – você e eu, pobres mortais do Sistema Tributário Nacional.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, o governo comprou uma promessa (feita pelas empresas beneficiadas, de gerarem ou garantirem empregos) e entregou algo concreto: alívio fiscal para os empresários.

O programa foi concebido deliberadamente para ser deficitário: as alíquotas aplicadas sobre a folha de pagamentos foram trocadas por outras incidentes sobre a receita bruta das empresas, mas num patamar abaixo do que seria neutro do ponto de vista fiscal. O nome disso é renúncia fiscal.

No gráfico abaixo você tem uma dimensão de como o governo abriu mão de recursos crescentes com a desoneração da folha de pagamentos (veja as barras azuis) até o final de 2014, quando terminou a parceria Dilma-Mantega. Esse movimento foi fruto da ampliação do programa para muitos setores (a linha laranja mostra o número de empresas beneficiadas) e da redução das alíquotas (os dados são da Receita Federal e podem ser encontrados aqui):

Como você pode conferir, a renúncia tributária com a desoneração da folha de pagamento para aproximadamente 80 mil empresas superou R$ 25 bilhões em 2015 – um valor equivalente ao orçamento do programa Bolsa Família, que faz a diferença para 14 milhões de famílias no país.

A situação chegou a tal ponto que o Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, Joaquim Levy, chamou a desoneração da folha de uma brincadeira grosseira e bilionária.

Para minorar o problema Levy até conseguiu aumentar as alíquotas sobre o faturamento com a MP nº 669/2015 e a aprovação da Lei nº 13.161/2015, mas o rombo continuou.

 

“A voz do pato era mesmo um desacato, jogo de cena com o ganso era mato”

Não sei se você está acompanhando o raciocínio até agora, por isso vou te relembrar de um fato muito importante: quando falamos de desoneração da folha de pagamentos, estamos tratando de um tributo destinado a financiar a Previdência Social. Sim, amiga(o), a desoneração aumentou o déficit da previdência.

Tanto é assim que a redação original da MP nº 540, em seu art. 9º, IV, já previa que “a União compensará o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da desoneração, de forma a não afetar a apuração do resultado financeiro do Regime Geral de Previdência Social”.

Traduzindo o fiscalês para leigos: o que as empresas deixaram de pagar à Previdência Social em função da desoneração da folha de pagamentos teve que ser compensado por toda a sociedade – seja por meio da redução do orçamento de outros programas governamentais, seja mediante o aumento da dívida pública.

Você pode não ter sentido, mas o dinheiro saiu do seu bolso e foi direto para o empresariado nacional. E a situação é tão grave que você será obrigado a trabalhar alguns anos a mais, porque a conta não fecha.

Com a intenção de corrigir essa distorção – e conseguir uns bilhões extras para atingir a meta de déficit deste ano e do próximo – a equipe de Henrique Meirelles convenceu o Presidente da República a editar, no final de março, a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos.

Como seria de se esperar, o empresariado chiou. Pato, marreco, ganso e cisne – reunidos na Fiesp e em outras entidades patronais – posicionaram-se contra o fim da desoneração da folha.

Se você reparar bem, o discurso dos rentistas é sempre mascarado por algum objetivo público (manutenção do emprego, combate à inflação, aumento da produção nacional, etc.) que esconde seu real interesse: o ganho individual financiado por uma perda coletiva e difusa.

No caso da desoneração da folha, o objetivo do programa era que os empresários utilizassem o ganho fiscal para aumentar a produção e, consequentemente, o emprego.

Na prática, muita gente boa suspeita que isso não tem ocorrido – pelo menos não a ponto de ficar demonstrado que o programa tem dado um resultado social superior ao déficit fiscal que ele alimenta.

É por isso que o Ministério da Fazenda quer botar ordem na casa e cortar a desoneração de muitos setores. Afinal de contas, seria bastante incoerente exigir da sociedade um sacrifício tamanho como a reforma da Previdência e manter um benefício fiscal para empresas que pressiona o déficit previdenciário.

Mas o lobby do empresariado está atento e se mobiliza para barrar ou esvaziar a proposta do governo de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

E é sobre isso que vamos conversar no próximo texto: como se articulam os interesses empresariais na tramitação da MP nº 774/2017.

O objetivo é não deixar o assunto passar em branco. Porque eles pensam, ao final, que os verdadeiros patos somos todos nós.

 

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