O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Quem quer acabar com os privilégios? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/27/quem-quer-acabar-com-os-privilegios/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/27/quem-quer-acabar-com-os-privilegios/#respond Mon, 27 Aug 2018 05:00:03 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/urna_eletronica-320x213.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=461 Programas de governo dos principais presidenciáveis conta com o fim de privilégios para resolver problemas do déficit fiscal à reforma da previdência

“Saúde, educação e segurança” sempre foi um trinômio fácil de encontrar nas propagandas de políticos em tempos de eleição. Neste ano, podemos acrescentar mais um: a eliminação de privilégios aparece com destaque em todos os planos de governo dos candidatos à Presidência, embora não haja consenso sobre o que isso quer dizer e, pior ainda, como será feito.

Em boa parte das propostas, o tema aparece como saída para a crise fiscal do Estado. Nas propostas de Alckmin, Álvaro Dias, Ciro Gomes e Bolsonaro, o combate aos privilégios é visto como o caminho para um Estado mais eficiente e com orçamento equilibrado.

No plano de Henrique Meirelles, o fim dos privilégios deve ser a pedra de toque da reforma da previdência, igualando o regime dos servidores públicos ao INSS – embora o projeto encaminhado pelo candidato, enquanto ministro da Fazenda, tenha mantido a aposentadoria especial dos militares.

Na proposta de Lula/Haddad o foco está no Ministério Público e no Judiciário. Eliminar privilégios, no programa do PT, seria uma espécie de acerto de contas daqueles que se sentem perseguidos pelo sistema judicial.

Curiosamente, as concepções mais amplas do que seja combater privilégios vêm dos representantes dos partidos mais novos e, de certa forma, mais programáticos. Somente Boulos (Psol), Marina (Rede) e Amoêdo (Novo), cada um na sua posição no espectro ideológico, apresentam propostas para atacar o problema em suas três dimensões: políticos, a elite do funcionalismo público e o alto empresariado dependente de subsídios e benefícios fiscais.

O termo “privilégio” vem do latim privatus legium. Lei privada. No Brasil, sob o pretexto de conceder direitos, garantias e incentivos a categorias profissionais, setores econômicos e grupos sociais, criamos um emaranhado de normas especiais que fragilizam o preceito de que as leis devem ser gerais e abstratas.

Com o tempo, setores econômicos foram identificando no Estado uma fonte quase inesgotável de receitas. Obter acesso privilegiado ao poder tornou-se uma estratégia de negócios para grandes grupos econômicos (rent seeking). Com a justificativa de incentivar a economia nacional, transferimos renda para o topo da pirâmide por meio de regimes tributários especiais, crédito subsidiado em bancos públicos, subvenções e regulação favorável.

Em outra direção, em tempos de farinha pouca, a elite do funcionalismo público nos três Poderes tratou de garantir o seu pirão primeiro. Além de defender com unhas e dentes seu regime previdenciário especial, obtiveram toda sorte de penduricalhos salariais: auxílio-moradia, bônus de produtividade, honorários de sucumbência aumentam em alguns milhares de reais os rendimentos que já se encontram muito acima da média do setor privado.

Atacar os privilégios, portanto, é urgente na estratégia de superar a grave crise fiscal e nossa indecente desigualdade social. O grande problema é que poucas tarefas são mais difíceis do que extinguir benesses e monopólios. O poder de articulação e pressão desses grupos de interesses é imenso. Exemplos não faltam.

O projeto de lei sobre o cadastro positivo encontra-se estagnado no Congresso por força do lobby dos cartórios, que veem na troca de informações sobre o histórico creditício dos consumidores uma ameaça aos seus ganhos milionários. Devido à resistência de grupos de interesses, propostas recentes de reforma fiscal como a reoneração da folha de pagamentos, o fim dos regimes especiais do cinema e do audiovisual e a suspensão dos reajustes do funcionalismo público foram derrotadas no Congresso. Na direção oposta, o Centrão patrocinou, à custa de toda a sociedade, uma verdadeira farra na concessão de diversos Refis a devedores contumazes da Receita.

Diante desse cenário de “salve-se quem puder”, ver os principais candidatos à Presidência pregando o fim dos privilégios é um sinal de evolução. A grande questão é saber se algum deles está disposto a colocar o guiso no gato.

Texto originalmente publicado na versão impressa da Folha no dia 27/08/2018.

 

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Mais algumas reflexões sobre a crise https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/mais-algumas-reflexoes-sobre-a-crise/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/mais-algumas-reflexoes-sobre-a-crise/#respond Fri, 08 Jun 2018 05:00:31 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=406 Desfecho da greve dos caminhoneiros mostra como decisões tomadas sob pressão geram distorções e incentivos perversos. Mas nem tudo está perdido.

 

A convulsão nacional provocada pela greve dos caminhoneiros provocou uma ampla discussão sobre os impactos das medidas adotadas pelo governo após a pressão da categoria e do setor transportador. Seguem algumas breves reflexões sobre aspectos importantes que não podemos deixar passar batidos.

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A decisão do governo de reduzir a tributação sobre o óleo diesel para atender as reivindicações dos caminhoneiros também vai beneficiar 46.118 brasileiros que adquiriram automóveis de alto luxo (SUVs e jipes) em 2017. Diminuir a taxação sobre o segmento mais rico da população e seus objetos de desejo é apenas um dos efeitos indesejados quando se governa sob pressão de grupos de interesses.

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Não são apenas os caminhoneiros e as grandes transportadoras que ganharam com a redução do diesel: quanto maior o peso desse insumo na estrutura de custos do setor, maior o presente dado pelo governo. Às vésperas da comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente, o governo não apenas reduziu a tributação sobre um combustível não renovável e altamente poluente. Por tabela, a medida agradou dois dos setores que mais contribuem para a degradação ambiental no país: mineração e agropecuária.

O gráfico mostra os setores que mais dependem do óleo diesel em sua estrutura de custos.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais 2015.

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A explicação de que a greve foi gestada pelo excesso de oferta de caminhões a juros subsidiados tornou-se quase consensual entre os analistas. E os dados do IBGE indicam que o percentual da riqueza do setor de transportes gerada por caminhoneiros autônomos ou informais vinha caindo ano a ano até 2015 (último dado disponível).

O gráfico mostra a participação de autônomos e trabalhadores informais no faturamento do setor de transporte terrestre.
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Por um lado, esses números podem ser sinal da queda do valor do frete derivada da alta concorrência no setor. Vistos por outro prisma, podem significar também um fortalecimento do poder das transportadoras, impulsionado inclusive pela desoneração da folha de pagamentos. É uma outra dimensão para o problema que merece ser pesquisada com mais profundidade.

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Nas duas últimas semanas não faltaram comparações entre o movimento dos caminhoneiros e as manifestações de junho de 2013. O assunto é complexo e merece um longo ensaio explorando suas diferenças e semelhanças. Por ora aqui vão apenas duas que considero fundamentais para entender o Brasil atual.

Junho de 2013 e maio de 2018 têm naturezas bastante distintas no que se refere à lógica da ação coletiva de Olson. Enquanto há cinco anos as ruas foram tomadas por um movimento difuso em termos dos manifestantes e suas reivindicações, as estradas foram bloqueadas nas semanas anteriores por um grupo muito bem definido, organizado e articulado, com um objetivo muito claro: reduzir a carga tributária incidente sobre o setor.

De igual, em ambos os casos o maior vencedor foi o setor de transportes. Há cinco anos, as empresas de ônibus se aproveitaram do pânico do governo para arrancar uma redução de impostos sob a promessa de garantir os tais R$ 0,20 nas passagens. Nas últimas semanas, a história se repetiu. E todas as categorias e grupos de interesses do Brasil aprenderam como vale a pena emparedar governos fracos.

O gráfico mostra a queda da carga tributária do setor de transporte de passageiros.
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Não devemos nos iludir a respeito da propagada espontaneidade do movimento dos caminhoneiros. Seu poder de organização vai muito além das redes sociais cultivadas desde os tempos do rádio amador. Apenas para ilustra, existem atualmente no Congresso Nacional três frentes parlamentares que defendem os interesses dos transportadores: a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Setor de Transporte Rodoviário de Cargas, a Frente Parlamentar Mista de Transporte e Logística (Translog) e a Frente Parlamentar Mista de Logística de Transportes e Armazenagem (Frenlog).

Juntas, essas bancadas de defesa do transporte de cargas congregam aproximadamente 350 deputados, praticamente três em cada cinco parlamentares. Desses, 78 estão vinculados às três frentes de apoio ao setor – ou seja, tendem a ser altamente engajados na causa. E para demonstrar como essa cadeia produtiva está bem articulada, desse grupo de deputados que está fechado com os rodoviários, 46 também participam da toda poderosa Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPA), a famosa bancada ruralista.

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Se me pedissem para indicar uma coisa boa de toda esta crise, ousaria dizer que foi destacar temas que normalmente não pautam a cobertura da imprensa ou as discussões nas redes sociais.

Expressões como “custos difusos e benefícios concentrados” e “rent seeking” foram frequentemente utilizadas como chaves interpretativas para o movimento dos caminhoneiros, suas reivindicações e conquistas. Da mesma forma, gerou-se um debate importante sobre nossa estrutura tributária e a incômoda pergunta: “quem vai pagar a conta”? E esse é um papo fundamental nestes 4 meses que nos separam das eleições.

O gráfico mostra o aumento de buscas no Google para termos como rent seeking, carga tributária, regressividade, etc.
Fonte: Elaboração própria a partir de resultados de buscas no Google Trends.

 

 

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]]> 0 Temer e Lula na boleia do caminhão https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/25/temer-e-lula-na-boleia-do-caminhao/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/25/temer-e-lula-na-boleia-do-caminhao/#respond Fri, 25 May 2018 05:00:50 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=379 Crise dos caminhoneiros é resumo de nossa história de predação política e econômica pelos grupos de interesses


“A população que paga.
Na verdade, tudo que acontece na política
é a população que paga.”

(Cidadão carioca no Jornal Nacional de 24/05/2018 )

Toda crise tem causas imediatas e outras que vêm de longe, corroendo sorrateiramente as estruturas até que, por um curto circuito ou uma sobrecarga qualquer, o prédio desaba.

Especialistas são então chamados a apresentar suas explicações técnicas e representantes do governo anunciam medidas emergenciais e um plano de longo prazo para que a tragédia não ocorra novamente. Imediatamente à tragédia esquerdistas e conservadores enquadram os fatos às suas visões de mundo: foi culpa dos neoliberais golpistas ou do gigantismo do Estado cevado pelos petralhas.

Não é minha pretensão discutir aqui a origem da crise dos caminhoneiros ou seus impactos sociais, políticos e econômicos. Na falta de elementos concretos, vou tentar dar um passo atrás para vê-la em perspectiva. E como os experts convocados de última hora, as autoridades atônitas e os analistas de redes sociais, darei minha contribuição – igualmente reducionista, enviesada e carente de evidências – neste caleidoscópio que é a opinião pública.

Utilizando minhas prerrogativas de profeta do acontecido e isentão assumido, aponto as origens da crise atual em três datas distintas, ao gosto do freguês: 17/05/2017, algum momento entre 06/06/2005 e 05/05/2008 ou 21/04/1500.

A primeira hipótese (a culpa é do Temer): Há pouco mais de um ano Joesley Batista revelou para o Brasil o áudio  em que acertava com Michel Temer, na calada da noite, a compra do silêncio de Eduardo Cunha e Lúcio Funaro na Lava Jato e, de quebra, combinava o pagamento de propinas por futuras benesses para suas empresas no Cade e na CVM. Naquele momento começava a desmoronar todo o trabalho de reformas fiscais desenvolvido por uma das mais bem preparadas equipes econômicas desde o Plano Real.

No desespero por salvar a própria pele, Temer revelou a plenitude de seu espírito peemedebista e vendeu sua alma para o Centrão e a todos os interesses oportunistas que ele representa. Em vez de Reforma da Previdência, Refis generalizados para grandes devedores do Fisco, prorrogação de diversos regimes fiscais especiais e uma reoneração da folha de pagamentos tardia e bem aquém do que seria necessário para corrigir abusos bilionários. No lugar da aprovação das medidas de contenção de despesas com pessoal, total conivência com generosos auxílios-moradia, honorários e bônus de produtividade para a elite corporativista do funcionalismo nos três Poderes.

Para garantir sua sobrevivência contra os avanços da Lava Jato, Temer abriu mão do poder imprescindível de dizer “não”. Em governos fracos, quem tem mais poder de pressão leva: de grandes empresas sonegadoras a magistrados, passando por caminhoneiros – e as megatransportadoras de cargas, claro. Nesse arranjo, os benefícios se concentram em poucos, e os custos são transferidos para a sociedade toda. Vide o acordo entre governo e caminhoneiros de ontem.

Segunda possibilidade (a culpa é do PT): Em algum momento entre a eclosão do Mensalão e a ordem dada a Guido Mantega para abrir os cofres do BNDES e conceder benefícios fiscais bilionários para transformar o tsunami da crise financeira internacional em marolinha, o PT jogou fora os melhores 10 ou 12 anos de nosso período republicano.

É passada a hora de despirmos nossos preconceitos ideológicos e reconhecermos os imensos avanços e a incrível complementariedade do período compreendido entre a adoção do Plano Real e o fim do primeiro mandato de Lula. Sob a batuta dos dois melhores partidos desde o fim da ditadura, domou-se o patrimonialismo atávico para aprovar medidas modernizadoras que atacavam verdadeiramente nossos maiores males: a instabilidade econômica e a desigualdade de renda.

Todo esse esforço progressista, contudo, foi por água abaixo quando, a partir do segundo mandato do PT na Presidência, imaginou-se que a saída para as graves crises de governabilidade (com o Mensalão) e financeira internacional (2008) estava na transformação do governo num balcão de negócios entre políticos e grandes empresas. A combinação da famosa “nova matriz econômica” de Mantega com a governabilidade do MDB de Temer, Cunha, Renan e Jucá gerou a Lava Jato, o impeachment de Dilma, déficits fiscais insustentáveis e 13 milhões de desempregados. Nesse período o empresariado e as corporações do serviço público nadaram de braçada no dinheiro fácil do boom das commodities e na falta de controle do governo e, quando a maré passou, a dívida explodiu. Mas a lição tinha sido muito bem ensinada para os grupos de interesses: pressione que o governo cede.

A hipótese mais plausível (sempre foi assim): Se pararmos pra pensar, desde que Pedro Álvares Cabral aportou nessas terras, funcionamos num moto-contínuo extrativista descrito de forma magistral pelos acadêmicos Daron Acemoglu e James Robinson no imperdível livro Por que as Nações Fracassam. Para os autores, a razão para o atraso de países como o Brasil está na relação simbiótica entre elites econômicas e políticas que se sucedem ao longo do tempo criando políticas públicas e legislações que levam a concentração de renda e poder.

Como ninguém é perfeito, Acemoglu e Robinson chegaram a acreditar que o Brasil tinha aprendido o caminho e iniciado uma virada no início do século XXI. Sabem nada, inocentes. Também iludidos pela bem-sucedida dobradinha FHC-Lula I, esqueceram-se que nossas escolhas sempre foram feitas sob a lógica do rent seeking: a concessão de privilégios do Estado a grupos que exercem pressão sobre políticos e autoridades.

É por causa dele que somos um dos países mais fechados do mundo, que nosso Estado presta péssimos serviços públicos mas tem corporações confortavelmente instaladas no 1% mais rico da população, que nosso Congresso é uma fábrica de benesses de toda natureza e nosso sistema tributário é regressivo e baseado no consumo, e não no patrimônio e na renda. Esqueça o que eu disse sobre os criadores do Plano Real e do Bolsa Família: pensando bem, nunca tivemos um governo com visão clara e ações fortes o bastante para reverter esse sistema de transferência de renda da coletividade para grupos com acesso privilegiado ao poder.

 

Com um sistema político com fortes tendências à fragmentação, os grupos que sabem se organizar melhor e pressionar o governo vão sempre levar vantagem nas negociações e repassar a conta de seus benefícios para a população. Foi assim quando Temer abandonou o compromisso com as reformas fiscais para ficar no poder. E quando o PT propôs ao MDB sociedade na empreitada de permanecer pelo menos 30 anos no poder. Ou quando FHC deixou de usar o capital político adquirido com o fim da inflação para realizar reformas políticas e tributárias corajosas a ponto de romper o ciclo da concentração de renda e poder. Desde tempos imemoriais, os pactos políticos geram imensas oportunidades de negócio para quem se torna íntimo dos poderosos ou consegue emparedar o governante de plantão.

Os caminhoneiros aprenderam isso e jogaram o governo à lona em poucos dias, empurrando para todos nós os custos da redução do preço do diesel e seus tributos. Foram oportunistas, abusaram do poder ao levar o país ao caos? Talvez, mas eles simplesmente agiram como os grandes empresários em busca de Refis, ruralistas renegociando subsídios de suas dívidas com o Banco do Brasil, juízes ameaçando fazer greve a favor do auxílio-moradia…

E não se iludam: daqui pra frente vai ser pior. Depois de Dilma e Temer, em 2019 vem aí mais um presidente fraco, sobrevivente numa eleição de políticos desacreditados, um Congresso cada vez mais Centrão e um colapso fiscal se aproximando em ritmo alucinante.

A disputa pelos nacos de um Orçamento cada vez menor será sangrenta e a conta você sabe que vai pagar.  Se não souber, fica a dica: está lá no início do texto, na epígrafe.

 

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Mais uma jogada de mestre do mecenas brasileiro https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/04/mais-uma-jogada-de-mestre-do-mecenas-brasileiro/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/04/mais-uma-jogada-de-mestre-do-mecenas-brasileiro/#respond Fri, 04 May 2018 05:00:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=353 Acordo de Bernardo Paz com o Governo de Minas é mais um grande negócio do “dono” de Inhotim


Onde foi aquele moço bom da renascença
Pai gentil das fábulas, romances e poemas?
Quem vai sustentar conosco o peso dessa pena?
Estamos todos esperando a volta do mecenas
E você diz: Olha, que linda as rosas
Quando eu digo: Acorda! Quem se importa?
Quando foi que entramos nesse estado de demência?
A cada nova década aumenta a decadência
E quem é que toma as divinas providências?

(“A Volta do Mecenas” – Matheus Torreão)

 

Fernando de Morais conta, em Chatô – o Rei do Brasil, como Assis Chateaubriand valia-se de sua rede de comunicação para pressionar (para não dizer achacar e chantagear) políticos e empresários a conceder-lhe as mais variadas benesses, de benefícios tributários para a compra de papel imprensa e equipamentos de rádio e TV a doações de obras de arte para o acervo do MASP.

Embora ainda formalmente casado com Maria Henriqueta Barrozo do Amaral, o dono dos Diários Associados teve uma filha com Cora Acuña em 1934. Declaradamente avesso às responsabilidades da paternidade (ele dizia que “Aníbal só chegou ao Norte da Europa com sua tropa de elefantes porque não tinha uma prole agarrada à barra de seu paletó”), Chatô a princípio não reconheceu a filha como sua. A menina recebeu o nome de Teresa Acuña (sem o sobrenome do pai) e na certidão de nascimento o campo referente à paternidade ficou em branco.

Mas como “a vida é real e de viés”, com o tempo Assis Chateaubriand foi se afeiçoando à menina. E como o relacionamento com a mãe era o pior possível, a disputa pela guarda da filha acabou chegando aos tribunais. A legislação da época, entretanto, era bastante clara: “O pátrio poder será exercido por quem primeiro reconheceu o filho, salvo destituição nos casos previstos em lei.” Como o magnata das comunicações não havia reconhecido a paternidade em cartório, a lei assegurava à mãe o direito sobre a menina.

Cada vez mais apegado à filha e, por outro lado, vendo que a mãe não cedia às pressões e se mostrava aguerrida na disputa judicial – certa de que o direito estava do seu lado –, Chatô partiu para a pressão política. E após meses de uma intensa campanha difamatória contra Getúlio Vargas, obteve finalmente o seu troféu: a edição, pelo presidente da República, do Decreto-lei 5.213/1943, que passou a estabelecer que: “O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai, salvo se o juiz decidir doutro modo, no interesse do menor.”

De tão escancarada que foi a manobra de Chateaubriand em forçar a alteração da lei para atender a seu interesse pessoal, essa norma ficou conhecida à época como “Lei Teresoca”, numa referência à maneira carinhosa como Chatô chamava a filha. E até hoje é um dos melhores exemplos de como as leis podem ser formalmente abstratas, mas, na prática, terem destinatários certos – e poderosos.

Recentemente, por estas bandas de Minas Gerais, foi aprovada uma “Lei Teresoca” igualmente insólita, embora muito mais danosa para o Erário e todos nós, contribuintes. O art. 42 da Lei Estadual nº 22.549/2017 permitiu o  uso de obras de arte para o pagamento de dívidas tributárias relativas ao ICMS. Para quem vive por aqui não foi difícil desconfiar de que se tratava de uma norma encomendada – seu principal beneficiário tinha nome, sobrenome e endereço: Bernardo de Mello Paz, o “mecenas” de Inhotim.

Dono de um conglomerado empresarial de mineradoras e siderúrgicas, Bernardo Paz construiu na região metropolitana de Belo Horizonte um complexo de arte contemporânea de renome internacional. Sem dúvida alguma, um feito notável num país que investe tão pouco em arte e cultura.

Porém, paralelamente à construção de Inhotim as empresas de Bernardo Paz acumularam um passivo multimilionário em dívidas tributárias com a União, Estados e Municípios. Uma breve consulta sobre seu nome nas páginas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região lista 98 processos judiciais, entre cíveis e criminais, movidos apenas contra o empresário (sem levar em conta as mais de 30 empresas das quais ele é sócio). A maior parte dessas disputas, no entanto, refere-se a cobranças de dívidas de entes públicos e fornecedores, sem falar numa condenação por lavagem de dinheiro.

Diante de um quadro financeiro tão grave, a solução encontrada pelo empresário foi negociar com o Estado de Minas Gerais a aprovação da citada lei, permitindo utilizar as obras de arte como pagamento pelas suas dívidas fiscais.

Obviamente não consta na Exposição de Motivos do Governador Fernando Pimentel que a medida foi concebida especialmente para Bernardo Paz. Para todos os fins, vale o dogma de que as leis são gerais e abstratas. Mas a Lei Teresoca também não explicitava que ela foi concebida única e exclusivamente para agradar Assis Chateaubriand.

Não causa surpresa, portanto, que a “Lei Inhotim” (vamos chamá-la assim) teve como primeiro “cliente” justamente Bernardo Paz. Segundo a Folha noticiou na última segunda feira, o empresário e o Estado de Minas Gerais firmaram um acordo prevendo a transferência de 20 obras de arte do acervo de Inhotim para a quitação de uma dívida tributária que era de R$ 471,6 milhões – mas que foi reduzida para R$ 111,8 milhões com a adesão das empresas de Paz ao último “refis” aberto pelo governo de Fernando Pimentel.

Segundo a reportagem de Carolina Linhares, o valor exato das obras ainda será submetido a avaliação de especialistas e depende de homologação judicial. As condições do acordo, contudo, revelam o quanto o negócio será vantajoso para Bernardo Paz.

Além de abater a dívida do empresário, o governo de Minas Gerais ainda teria aceitado a condição de não colocar as obras à venda no mercado. Ou seja, sob o pretexto de manter em Minas parte do patrimônio artístico exposto em Inhotim, a equipe de Fernando Pimentel teria concordado em imobilizar um ativo que poderia render centenas de milhões de reais se levado a leilão – uma medida incompreensível num Estado que se encontra à beira da falência.

Mas os absurdos não param aí. Outra cláusula do acordo estabelece que, além de não poder vender as obras, o Estado de Minas concorda em cedê-las em comodato para ficarem expostas… no Inhotim! Ou seja, com esse acordo Bernardo Paz conseguiu a proeza de pagar uma dívida multimilionária repassando para o Estado de Minas 20 obras de Inhotim que não poderão ser vendidas e ainda continuarão expostas no seu próprio centro cultural.

Parece evidente, pelas condições draconianas impostas ao Estado de Minas e à sua população, que Bernardo Paz jogou com a ameaça de fechar as portas de Inhotim para, assim, quitar sua dívida tributária e continuar com a posse das obras de arte. Trata-se de velha estratégia da elite empresarial brasileira. Sob argumentos que vão da proteção aos empregos brasileiros à defesa dos interesses nacionais, passando pela promoção da cultura, grandes empresários bem articulados com a classe política impõem custos a toda a sociedade para extrair vultosos benefícios privados.

Nosso “capitalismo de compadrio” precisa urgentemente de um choque de gestão. Por mais dramático que pudesse ser para a cultura nacional, exigir que Bernardo Paz se desfizesse das obras de Inhotim para quitar a dívida tributária de suas empresas teria o efeito pedagógico de ensinar para nossa elite uma lei realmente geral e abstrata: aquela que, no seu artigo primeiro, estabelece que que só há duas coisas certas na vida, a morte e os impostos.

 

 

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Taxistas versus aplicativos: nessa briga, o consumidor é quem leva a pior https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/30/taxistas-versus-aplicativos-nessa-briga-o-consumidor-e-quem-leva-a-pior/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/30/taxistas-versus-aplicativos-nessa-briga-o-consumidor-e-quem-leva-a-pior/#respond Mon, 30 Oct 2017 04:15:53 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=223 O Projeto de Lei nº 28/2017, que “regula” os aplicativos de transporte coletivo, expõe como sob o pretexto de defender o consumidor escondem-se privilégios estatais, medo da concorrência e poder dos reguladores.

Vou de táxi, cê sabe
Tava morrendo de saudade

“Vou de Táxi” (Frank Langoff / E. Roda Gil – Versão: Aloysio Reis / Biafra)

 

O Senado Federal pode, a qualquer momento, decretar o fim dos aplicativos de transporte coletivo no Brasil. O PL nº 28/2017, que regula Uber, Cabify, 99pop e outras empresas que possam surgir, está em regime de urgência e deve ser votado nesta semana. Caso os senadores optem por retomar o projeto aprovado na Câmara (PL nº 5.587/2016) os aplicativos ficarão praticamente inviabilizados no Brasil.

É importante deixar bem claro que a votação dessa regulação não se trata de uma guerra entre taxistas e as novas empresas que se valem da tecnologia para ofertar deslocamentos urbanos. O rol de possíveis vencedores e perdedores vai muito além. E eu vou aqui tentar qualificar melhor a questão à luz de um pouco de teoria econômica e política.

A maioria silenciosa e a minoria barulhenta

Não sei se é o efeito dos algoritmos, mas eu tenho visto uma intensa repercussão negativa sobre a provável aprovação do PL contra os aplicativos na minha timeline nas redes sociais. O mesmo acontece nas conversas cotidianas com amigos e conhecidos.

Uma possível legislação restritiva contra os aplicativos de transporte afetará não apenas Uber, Cabify e 99pop ou os seus motoristas. Pouca gente está dando atenção para os prejuízos que serão impostos aos milhões de usuários nas principais cidades brasileiras. Nós, os usuários, nos acostumamos nos últimos anos a ter acesso, na palma da mão, a um serviço de transporte mais barato e com melhor qualidade do que os táxis em geral. Logo, um projeto de lei que dificulte a atuação desses aplicativos imporá custos à maioria (usuários) em favor de uma minoria (taxistas).

Trata-se de um exemplo perfeito da Lógica da Ação Coletiva, teoria proposta por Mancur Olson em 1965 que demonstra como grupos com grande poder de organização e com muito interesse em jogo (como os taxistas) têm maior chance de sucesso na arena política do que a maioria desinteressada, desorganizada e com pouco a ganhar diretamente com a legislação em discussão (os usuários). Benefícios concentrados (dos taxistas) e prejuízos difusos (dos usuários) ditam não apenas a tramitação do PL nº 28/2017: são a tônica do nosso subdesenvolvimento econômico e social.

Existem taxistas e taxistas

Outro aspecto importante dessa discussão é a distinção entre duas espécies de “taxistas”. De acordo a legislação, os serviços de táxis tanto podem ser prestados por permissionários (pessoas que obtiveram a licença para explorar os serviços de táxi) quanto por motoristas que, autorizados pelo órgão municipal, alugam o táxi do permissionário, pagando em geral uma diária.

Para ter uma ideia da dimensão de cada uma dessas categorias, solicitei via Lei de Acesso à Informação à BHTrans, o órgão que regula o serviço na minha cidade (Belo Horizonte/MG), a relação de todos os taxistas em atividade. Em 2016 havia 6.014 auxiliares (aqueles que não têm a licença), para 7.192 permissionários (os “donos de táxis”).

Como você pode ver, quase a metade dos taxistas em BH não detêm licença para explorar o serviço. Eles são, na verdade, trabalhadores que pagam diárias de R$ 100 a 150 para o permissionário por 12 horas rodando pelas ruas da cidade. Ou seja, pessoas que só começam a lucrar depois de terem feito o suficiente para pagar essa dívida diária, além do combustível. E sem qualquer proteção da legislação trabalhista. Aliás, nunca vi ninguém criticando sua exploração econômica pelos permissionários, como fazem com a Uber e os outros aplicativos.

A situação dos taxistas sem licença era tão ruim que muitos deles começaram a migrar para Uber, Cabify e afins. Afinal, muitos passaram a achar melhor ter flexibilidade de horário e repassar 25% de toda a receita para a empresa do aplicativo do que pagar uma diária fixa para o dono da licença do táxi. A liberdade tem um preço, e no caso deles, ele deve ser mais baixo do que o aluguel do táxi.

Taxistas ou rentistas?

Quanto aos taxistas permissionários, o crescimento de serviços como 99pop, Uber e Cabify não gerou apenas uma queda de receita decorrente da concorrência pelos passageiros. A migração de taxistas associados gerou uma queda no valor das diárias de aluguel e a desvalorização das licenças.

Neste ponto chegamos ao cerne da disputa em torno do PL nº 28/2017. Ser “proprietário” de uma licença de táxi não é apenas ser um agente privado prestando um serviço público. É ser, sobretudo, um rentista.

É só fazer as contas: em Belo Horizonte, R$ 100 a 150 de diária por 12h dão de R$ 3 mil a 4,5 mil de renda mensal livres, sem precisar pegar no volante para o “dono” do táxi. E ainda sobram 12h para rodar no táxi ou até mesmo para alugar a placa para outro associado.

E além disso existem os ganhos indiretos. Isenção de IPI e ICMS para comprar carros novos a cada 3 anos gera uma renda extra com a sua revenda, além da dispensa de ter que pagar ISSQN sobre seus ganhos e IPVA sobre o veículo. Nas cidades maiores os taxistas também podem comercializar o espaço de seus parabrisas traseiros para publicidade.

Essas múltiplas fontes de renda (receitas advindas do taxímetro, das diárias cobradas dos taxistas não permissionárias e da publicidade), combinada com isenções tributárias sobre os veículos e a atividade em si, fazem com que uma licença valha, no mercado negro, de R$ 150 a 450 mil em alguns municípios, segundo consta na justificativa do Dep. Alberto Fraga (DEM/DF) PL nº 2632/2015, outro projeto destinado a regular esse serviço.

Ser detentor de uma licença de táxi é algo tão rentável que em muitas cidades existem indivíduos que “possuem” dezenas delas, obtidas na base do compadrio numa época em que não se exigia licitação. Sempre se falou que em muitas cidades é comum que políticos poderosos se valem de “laranjas” para explorarem dezenas de licenças de táxis.

A mobilização política em favor do PL no Congresso reflete, portanto, uma reação dos permissionários contra a concorrência dos aplicativos, que com um novo modelo de negócios e o uso da tecnologia ameaçam o rentismo dos taxistas. Aliás, como procurei demonstrar num texto do meu antigo blog, o Leis e Números, a tramitação do projeto na Câmara foi dominada por manobras capitaneadas pela “bancada dos taxistas”, comandada pelo seu presidente, o deputado Carlos Zarattini (PT/SP), que foi o autor do projeto, do requerimento de urgência e dos destaques para votação em separado de dispositivos que praticamente inviabilizam o funcionamento dos aplicativos.

A rapidíssima aprovação do PL na Câmara e no Senado expõe uma típica atividade denominada de rent seeking (“busca de renda”) pela teoria econômica e política. Estudiosos como Gordon Tullock e James Buchanan, ainda na década de 1960, chamaram a atenção para empresas e grupos de interesses que, em vez de investirem na oferta de melhores produtos e serviços para os consumidores, preferem pagar lobistas, fazer contribuições de campanha ou corromper políticos para garantir privilégios como isenções tributárias, regulação benéfica ou barreiras à entrada de competidores. Com isso, obtêm rendas (daí o termo rent seeking) que são usufruídas por eles, mas pagas pela maioria silenciosa de contribuintes e consumidores.

Aliás, as isenções tributárias que os taxistas conquistaram com lobby nas instâncias municipal, estadual e federal nos últimos anos torna totalmente sem sentido o argumento de que Uber e Cabify não pagam impostos e, por isso, são clandestinos e exercem concorrência desleal.

A classe dos taxistas é tão eficiente na prática do rent seeking que em 2013 ela conseguiu até incluir numa medida provisória um dispositivo que garante aos permissionários o direito de transmitir a outorga do táxi para seus herdeiros em caso de falecimento dos taxistas. Haveria evidência maior de rentismo do que essa?

Combater empresas como Uber, Cabify e 99pop no Congresso e nos tribunais, e não na qualidade e no preço de seus serviços, é uma típica atividade de rent seeking dos permissionários para eliminar a concorrência e manter sua fonte de renda.

Aliás, venho sempre defendo aqui na Folha que o rent seeking exacerbado é outra característica marcante do capitalismo brasileiro. Quantos empresários gastam fortunas com lobby e corrupção para conseguir empréstimos subsidiados, regulação suave, regimes tributários especiais e proteção alfandegária, quando deveriam estar investindo em produtos e serviços melhores para concorrer no mercado nacional e internacional?

Ah, o poder…

Outro importante ator negligenciado nas análises sobre o PL nº 28/2017 são os reguladores municipais. Caso o projeto vire lei com a redação dada pela Câmara, toda atividade de empresas como 99pop, Uber e Cabify no Brasil terá que ser regulada pelas autoridades de trânsito em cada município. Você imagina o poder que será dado aos políticos municipais com essa alteração na lei?

Na década de 1970, economistas da Escola de Chicago como George Stigler, Richard Posner, Robert Barro e Sam Peltzman apontaram que os representantes do Estado não são agentes passivos diante dos pleitos dos grupos de interesses: eles muitas vezes estabelecem as regras do jogo (regulação) levando em conta o que poderão extrair em termos pessoais para si (propinas, promoções, colocação profissional no futuro…). Sabe aquela velha máxima de “criar dificuldade pra vender facilidade”? É disso que estamos tratando aqui.

Atribuir a responsabilidade para autorizar e regular aplicativos de transporte em cada município é dar um imenso poder para representantes do Executivo e do Legislativo decidirem quem, quando, onde e como o serviço será prestado. Aliás, procure saber quando foi a última licitação de licenças de táxis na sua cidade – é uma boa evidência de quanto pode render o poder de uma caneta ao limitar a concorrência.

Afora o agravamento de possibilidades de má regulação e corrupção (não é à toa que a Uber rapidamente expôs as mazelas do serviço de táxi nas principais cidades brasileiras), a aprovação do PL pode matar uma exitosa experiência de não regulação vivenciada no Brasil até agora.

Uber, Cabify e cia estão mostrando que a regulação não precisa ser tão minuciosa e restritiva à concorrência como acontece no serviço dos táxis. De uma só tacada, colocaram em cheque a crença de que é necessário que o Estado controle preços (mostrando-se bem mais baratos que os táxis) e também qualidade – os serviços a garantem tanto via avaliação dos motoristas quanto pela segmentação do serviço (UberX, Uberpool, UberSelect e UberBlack estão disponíveis para todos os bolsos e preços, por exemplo).

Se houvesse genuíno interesse dos parlamentares em regular os aplicativos (e reconheço que isso é em parte necessário), isso deveria ter sido feito em termos de tributação, melhorias na segurança jurídica dos motoristas (garantias nos contratos firmados com as empresas de aplicativos) e direitos dos clientes (requisitos para os motoristas, indenizações em caso de dano, etc.). Atribuir poder regulatório a cada município é dar mais poder a tiranetes de balcão e políticos com uma tendência mafiosa.

Por esses motivos, o PL nº 28/2017 só me convence de que somos o país das corporações, do rent seeking e dos reguladores interessados no seu próprio bem-estar. Contra eles, precisamos de mais concorrência, mais inclusão e mais inovação.

Nota: texto publicado originalmente pelo autor, com algumas adaptações, no blog Leis e Números em 13/04/2017.

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No meu post anterior, sobre a proposta de renovação dos incentivos fiscais da Lei do Audiovisual, eu critiquei a falta de transparência da Ancine, a agência reguladora do setor, na divulgação dos dados sobre a atividade cinematográfica no Brasil.

Em email endereçado a mim e à Folha, a Assessoria de Comunicação da Ancine manifestou-se nos seguintes termos contra minha opinião:

Caro Bruno Carazza,

Em resposta a seu artigo de hoje, gostaríamos de esclarecer que:

A Ancine reafirma o seu compromisso absoluto com a transparência das informações resultantes de seus processos de regular, fomentar e fiscalizar o setor audiovisual. Para isso, criou em 2008 o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA. Em breve pesquisa no OCA é possível acessar os dados de monitoramento dos mercados de salas de exibição e de programação de TV Paga e Aberta. Vale destacar que os números referentes à bilheteria e à renda dos filmes lançados em salas de exibição são atualizados semanalmente, e que inclusive há dados de outubro de 2017 disponíveis. O visitante do site do OCA pode acessar também os dados dos agentes econômicos que compõem o setor audiovisual, com as suas respectivas características de produção, programação, regionalidade, entre muitas outras. Além disso, são publicados dados consolidados de fomento à indústria audiovisual, como a listagem das obras apoiadas por recursos incentivados e pelo Fundo Setorial do Audiovisual, os dados de recolhimento dos recursos incentivados da Lei do Audiovisual e a arrecadação de Condecine. Esses são apenas alguns exemplos dos mais de 300 arquivos que compõem o acervo do OCA, cuja maior parte possui atualização até o ano de 2016.

Segue link com os dados relativos à bilheteria e renda publicados semanalmente: https://oca.ancine.gov.br/resultados-semanais

Segue link com os números gerais de bilheteria e renda:  https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/cinema/pdf/2101_0.pdf

 

Segue a lista completa dos dados relativos ao fomento ao setor audiovisual, atualizados até 2016, disponíveis atualmente no OCA:

[Insere quadro]”

Eu admito que fui um pouco injusto com a Ancine – na média, o esforço dessa agência em divulgar os dados está à frente de outros órgãos federais, pelo o que eu tenho vivenciado (quem acompanha o blog sabe como me valho da Lei de Acesso à Informação para fazer minhas análises).

O problema é que os dados divulgados pela Ancine não ajudam o cidadão que queira exercer o controle social sobre suas políticas. Só para dar um exemplo: os links fornecidos na nota da Ancine estão em formato pdf, que dificulta enormemente o trabalho de quem os tabula e analisa.

Além disso, a respeito dos dados que eu utilizei no post sobre a Lei do Audiovisual, a tabela “Listagem dos Filmes Lançados em Salas de Exibição com Valores Captados através de Mecanismos de Incentivo” estava atualizada até 2013 quando eu baixei os dados na semana passada. Coincidência ou não, logo depois da publicação do meu texto, na madrugada do dia 27/10/2017, essa planilha foi atualizada e apresenta os dados até 2014, como pode ser visto aqui.

É fato que eu poderia ter buscado os dados referentes aos anos mais recentes em outras planilhas divulgadas no site da Ancine, mas isso também teria problemas. Existem no site dados de incentivos fiscais até 2016, mas eles estão vinculados ao nome do projeto cinematográfico, e não ao nome comercial do filme (“Ensaio sobre a Cegueira”, de Fernando Meirelles, consta nessas tabelas apenas como “Cegueira”, por exemplo). Além disso, os dados de renda de bilheteria estão em base semanal a partir de 2013 (2014, agora que eles foram atualizados), o que exigiria que eu computasse semana a semana (baixando os resultados em pdf!) os relatórios para ter um panorama da renda de bilheteria de cada filme nos anos recentes. Haja paciência e determinação!

O que eu quero dizer aqui é que não basta ao órgão público dizer que os dados estão divulgados no site. Questões como formato, compatibilidade das informações, facilidade de pesquisa e periodicidade são fundamentais para que o cidadão interessado possa ter uma visão geral das políticas públicas e avaliar se elas cumprem ou não aos seus objetivos.

Estou à disposição da Ancine para contribuir nesse processo, caso ela deseje.

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Os cartórios e o preço da fé pública no Brasil https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/13/os-cartorios-e-o-preco-da-fe-publica-no-brasil/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/13/os-cartorios-e-o-preco-da-fe-publica-no-brasil/#respond Fri, 13 Oct 2017 06:00:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=197 Cartórios são um bom exemplo de como o Estado brasileiro é arcaico e transfere renda da maioria para beneficiar a si mesmo e a uma minoria de privilegiados

Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
“Samba da Benção” (Baden Powell e Vinicius de Morais)

 

Numa coluna escrita para a Folha há exatos 13 anos, Janio de Freitas contou que o escritor Fernando Sabino, recém casado com a filha do governador mineiro Benedito Valadares, recebeu um presente insólito do sogro: a titularidade de um cartório no Rio de Janeiro. Findo o casamento, o autor de “O Encontro Marcado” devolveu o cartório ao sogro, por entender que lhe fora dado não por seus méritos, mas para garantir o sustento e bem-estar da filha do governador, já que ela havia se casado com um reles aspirante a escritor em início de carreira.

Passado o tempo, o Brasil evoluiu. A Constituição de 1988 estabeleceu que os serviços notariais e de registros não podem mais ser distribuídos aos amigos e parentes do rei, mas concedidos mediante concursos públicos de provas e títulos. Na essência, porém, continuam sendo um mecanismo burocrático de transferir renda da maioria dos cidadãos para uma minoria de privilegiados – sem falar que o Estado é um sócio nesse processo. É por esse motivo que eu escolhi começar minha série de textos sobre os privilégios estatais brasileiros com os serviços notariais e de registro.

O Estado brasileiro é cartorial. A partir de nossa herança portuguesa, construímos ao longo dos séculos uma complexa estrutura para “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, tal qual estabelece a lei.

Em determinado momento da nossa história (algum historiador do direito pode esclarecer quando?) atribuímos para agentes privados as atividades de registrar e atestar a veracidade dos fatos mais importantes de nossa vida civil (nascimento, casamento e morte) e negocial (contratos, procurações, dívidas, aquisição de imóveis, criação de empresas).

No imaginário popular, cartórios são vistos como minas de ouro. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, muitos deles são mesmo. O 9º Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro faturou R$ 40 milhões num único semestre. Mesmo se considerarmos que boa parte dessa arrecadação é transferida ao Estado e outro tanto é utilizado no pagamento de funcionários e na manutenção do cartório, é inegável que o detentor desse serviço público encontra-se nos extratos mais altos da distribuição de renda no Brasil – aquele 0,1% de nossa pirâmide de distribuição de renda.

E ele não está só. No gráfico abaixo eu plotei o desempenho de todos os cartórios brasileiros que arrecadaram mais de R$ 500 mil no último semestre informado ao CNJ. Se você tiver interesse em verificar a situação dos notários e registradores na sua cidade, basta selecionar o município no topo do gráfico.

 

Tomando como base apenas os 611 cartórios dispostos no gráfico acima, os brasileiros transferem para o Estado e os “donos dos cartórios” mais de R$ 2 bilhões a cada semestre. R$ 4 bilhões por ano. Considerando os demais registros de menor arrecadação, o valor passa facilmente dos R$ 5 bilhões anuais! Esse é o custo da fé pública no Brasil.

Essa massa considerável de dinheiro é transferida de todos os brasileiros para o Estado e para poucos milhares de agentes privados encarregados de prestar um serviço que, embora importante, poderia ser drasticamente reduzido, principalmente diante do avanço tecnológico das últimas décadas.

Uma das formas, portanto, de interromper a cadeia de transmissão de renda para os detentores desse serviço público seria limitar seus ganhos, após descontadas as taxas estatais e de suas despesas operacionais, ao teto da remuneração do serviço público. Com essa medida, cartórios deixariam de ser vistos como minas de ouro. Existem projetos dessa natureza em tramitação no Congresso, mas você pode imaginar a resistência dos titulares dos cartórios…

Mas uma reforma do sistema de ateste da autenticidade de documentos que realmente visasse a coletividade poderia ir muito além. Muitas das atividades desempenhadas hoje pelos notários poderiam muito bem ser exercidas pelo próprio Estado, sem a intermediação de terceiros – como acontece em vários países. Nascimentos, casamentos e mortes poderiam ser registrados num sistema informatizado nacional pelas prefeituras, assim como a propriedade dos imóveis – o que, aliás, faz bastante sentido, pois é o município que se encarrega de definir o zoneamento urbano e o plano diretor. Da mesma forma, a criação de empresas poderia ficar a cargo da Receita – que já emite o CNPJ – e a cobrança de dívidas nem precisaria ser desempenhada pelo Estado, sendo desempenhada pelos sistemas de proteção ao crédito.

Outra questão é a burocratização da vida privada no país. Muitos dos atos que hoje devem ser levados a cartório poderiam ter essas exigência extinta, reduzindo os custos para se fazer negócios por aqui. Não faz muito sentido, por exemplo, que a compra de um imóvel necessite tramitar num cartório de notas e num registro de imóveis para ser concretizada, dobrando o pagamento de emolumentos e taxas. Isso sem falar na emissão de certidões, autenticações e reconhecimentos de firmas. Além da despesa financeira, temos o custo do tempo despendido para atestarmos a verdade. Não é à toa que criamos a figura do despachante.

Embora eu reconheça ser praticamente impossível no curto prazo que surja um governante capaz de levar a cabo medidas que reformulem de forma drástica o sistema cartorial brasileiro para reduzir significativamente esses custos de transação, deveríamos pelo menos exigir uma melhor regulação dessa atividade. O CNJ deveria capitanear os Tribunais de Justiça para definirem critérios uniformes de estrutura de atendimento em todo o país, como metragem mínima para os estabelecimentos, horário de funcionamento (existem cartórios que fecham para almoço até hoje!), informatização, número mínimo de funcionários, etc. Também é fundamental estender o sistema concorrencial para os cartórios: não é possível que registros de imóveis e de pessoas naturais sejam realizados de acordo com a região geográfica; se os cartórios tiverem que competir pelos clientes, o atendimento certamente melhorará.

E o que é fundamental: em pleno século XXI, os sistemas precisam estar interligados para a realização de consultas amplas em nível nacional, propiciando identificar, a baixo custo, a real situação pessoal e patrimonial das pessoas com quem se negocia, para não falar de devedores, sonegadores, corruptos e outros criminosos.

Como não acredito que governante ou Congresso algum terá a coragem de enfrentar o lobby dos cartórios, minhas esperanças estão depositadas na tecnologia. Espero que num futuro breve o desenvolvimento tecnológico extermine esse legado colonial assim como os aplicativos de transporte estão fazendo com os táxis. De certificações digitais ao blockchain, as tecnologias disruptivas poderão romper essas estruturas arcaicas que, sob a justificativa de proteger a fé pública dos documentos, acabam transferindo bilhões de reais da população em geral para o Estado e os donos dessas verdadeiras minas de ouro.

PS: Meus agradecimentos ao prof. Brunello Stancioli (Faculdade de Direito da UFMG) pela lembrança da deliciosa história do Fernando Sabino.

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A um ano das eleições, um programa de governo fadado ao fracasso https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/a-um-ano-das-eleicoes-um-programa-de-governo-fadado-ao-fracasso/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/a-um-ano-das-eleicoes-um-programa-de-governo-fadado-ao-fracasso/#respond Fri, 06 Oct 2017 06:00:49 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=183 Reduzir a imensa desigualdade no Brasil exige uma ampla agenda de reformas que ataque privilégios – e nenhum candidato sequer cogita enfrentá-los

Penso: como vai minha vida?
Alimento todos os desejos
Exorciso as minhas fantasias
Todo mundo tem um pouco de medo da vida
Pra que perder tempo desperdiçando emoções
Grilar com pequenas provocações
Ataco se isso for preciso
Sou eu quem escolho e faço os meus inimigos
Saudações a quem tem coragem
aos que tão aqui pra qualquer viagem
“Pense e Dance” (Dé/Frejat/Guto Goffi)

 

Daqui a um ano estaremos na véspera da eleição. Por enquanto não temos ideia de quem serão os candidatos a presidente. Lula conseguirá escapar do julgamento em segunda instância que pode torná-lo Ficha Suja? Bolsonaro continuará crescendo nas pesquisas? O PSDB se unirá em torno de Alckmin ou Doria? Marina Silva sairá do ostracismo e finalmente se tornará viável eleitoralmente? E Henrique Meirelles, será ungido pelo empresariado e emplacará sua candidatura? Ou surgirá um outsider salvador da Pátria, tipo Luciano Huck?

Enquanto aguardamos o circo eleitoral ser montado, vejo pouca gente debatendo ideias em lugar de nomes. E nossos problemas se acumulam e vai se formando uma bomba relógio – fiscal, social, demográfica – para o próximo governo.

As medidas variam. Na Ilustríssima da Folha de domingo (01/10), Ricardo Balthazar e Vinícius Torres Freire fizeram um apanhado dos últimos estudos publicados sobre a evolução da desigualdade de renda no Brasil. A incorporação de dados fiscais por estudos como os de Marcelo Medeiros (UnB), Pedro Souza (IPEA) e Fábio Castro (Receita Federal) e, mais recentemente, de Marc Morgan, discípulo de Thomas Piketty, tem abalado a crença de que a desigualdade havia caído significativamente nas últimas duas décadas. Mais do que isso, mostram um quadro ainda mais sombrio, em que os extratos mais ricos da sociedade detêm fatias da renda nacional maiores do que supúnhamos:

Discordâncias metodológicas a parte, a verdade é que, não importa a medida, os dados sobre desigualdade no Brasil são vergonhosos. E se traduzem em outras estatísticas: desemprego, estupros, furtos e roubos, homicídios. O que já é triste torna-se trágico quando nós mesmos, ou nossos entes mais queridos, viramos estatísticas – a desigualdade socioeconômica no Brasil cobra um preço bem alto.

Os números mostram que, se por um lado políticas públicas como o Bolsa Família e reajustes reais de salário mínimo mostraram-se eficientes para enfrentar a miséria, não são suficientes para reduzir o fosso entre os pobres e os muito ricos.

Também não adianta jogar a responsabilidade para a educação, uma espécie de panaceia no imaginário popular, a saída mais comum para encerrar de forma consensual qualquer discussão sobre a situação política do país. Petralhas e coxinhas sempre acabam fazendo as pazes na mesa do bar ao concordarem que o Brasil não melhora enquanto não se investir na educação.

A grande questão é que nossos problemas são urgentes, o caos social está batendo à porta (alô, alô, Rio de Janeiro!), e não podemos nos dar ao luxo de esperar uma ou duas gerações receberem educação de qualidade para nos tornarmos um país decente. Não estou com isso querendo dizer que investir em educação não é importante – muito pelo contrário, chegamos a este ponto justamente porque, há séculos, ninguém investe seriamente em educação pública e básica de qualidade.

Mas para atacar o problema de verdade e começar a colher resultados imediatos é necessário encarar uma extensa rede de privilégios que são a marca de nosso (sub)desenvolvimento: privilégios criados pela legislação, nas opções de políticas públicas, no desenho do sistema tributário, na falta de concorrência, no fechamento do país ao mercado externo.

A autodeclarada classe média brasileira – que na verdade é classe alta, segundo as estatísticas de renda –, se pensar bem, pode ter acesso a vários privilégios criados por esse sistema excludente. É só pensar nas universidades gratuitas, na ausência de limites para despesas médicas no Imposto de Renda, na coleta diária do lixo no seu bairro e que só acontece semanalmente (quando acontece!) na periferia da sua cidade.

E o que dizer dos ricos e super-ricos? Nos beneficiários dos créditos subsidiados do BNDES para as suas empresas, dos recorrentes Refis, das baixas alíquotas de imposto sobre heranças, na isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos? Vocês acham que os grandes capitalistas brasileiros, que construíram fortunas com base em conluios entre si e com os políticos, apoiariam a campanha de candidatos que se colocarem contra esse estado de coisas?

Muito do nosso atraso advém da estratégia que cada grupo social desenvolve para conseguir arrancar do Estado – logo, da sociedade como um todo – benefícios privados. E cada qual usa belos argumentos para justificar os favores pleiteados – geralmente baseados falsamente em argumentos coletivistas, como a geração de empregos, o aumento dos investimentos, a melhoria dos serviços públicos…

Para agravar a situação, temos um sistema político que se sustenta agradando corporações: de igrejas evangélicas a altos servidores públicos, de taxistas a militares. Isso sem falar dos ruralistas, seguramente o maior partido político do Brasil hoje em dia.

O Brasil não conseguirá diminuir de forma significativa uma das piores iniquidades sociais e econômicas do planeta com base apenas em transferências de renda e algumas políticas públicas voltadas para os mais pobres. E justamente porque adiamos há anos algumas dessas decisões antiprivilégios, como a Reforma da Previdência, o quadro fiscal agora oferece pouca margem de manobra para ampliar consideravelmente programas como o Bolsa Família, por exemplo.

Como se não bastasse, o atual governo tem sido pródigo na concessão de mais benefícios para grupos de interesses. Dependente de negociações para assegurar a paralisação das ações que correm contra o Presidente na Justiça, com uma popularidade que beira o ridículo e com sua legitimidade questionada por boa parte da população desde que assumiu o Palácio do Planalto, o governo cede em praticamente tudo: começou com a concessão de reajustes salariais para o funcionalismo, passou por renegociações generosas das dívidas de ruralistas e agora abriu-se a porteira para um refinanciamento de pai pra filho de dívidas tributárias de grandes empresas e a criação de um fundo público de pelo menos R$ 2 bilhões para campanhas eleitorais.

É por isso que decidi assumir uma quixotesca missão de discutir, nas próximas semanas, diversos desses privilégios incrustados em nossa sociedade e alimentados pelo Estado brasileiro. A ideia é selecionar normas, políticas públicas ou tributos que geram concentração de renda e apresentar evidências de seu custo – fiscal ou social. Proponho chamar a atenção dos leitores para uma espécie de programa de governo voltado para tentar mitigar a imensa desigualdade de renda brasileira.

Mas de antemão já aviso que se trata de um exercício utópico. Mesmo se algum louco decidisse assumir essa agenda, ele estaria fadado ao fracasso. Afinal de contas, ninguém ganha eleição defendendo a eliminação de privilégios de grupos poderosos ou de uma vasta parcela da população que se julga no direito de usufruir deles.

Nesse ponto, a lógica da ação coletiva é batata. De um lado, temos a imensa maioria silenciosa e desarticulada que se beneficiaria dessas mudanças, mas pouco fará para defendê-las; de outro, uma minoria ruidosa e bem organizada que se mobiliza para matar na raiz qualquer ameaça a seus benefícios. No Brasil são tantos os benefícios e privilégios oferecidos a diferentes grupos sociais que alguém que se disponha a enfrentá-los fará tantos inimigos que suas chances de vitória são reduzidas a zero.

Além disso, ainda há a ideologia cega a dificultar qualquer movimento nessa direção. Esquerdistas que bradam contra a desigualdade levantarão suas bandeiras contra medidas contrárias a alguns de seus dogmas – para boa parte deles, instituir cobrança de mensalidades para quem tem condições de pagar é uma afronta ao ideal de universidade pública e gratuita, mesmo que os recursos sejam realocados para a educação básica ou para o desenvolvimento de mais pesquisas que beneficiariam a coletividade.

Assim também acontece com a direita. Para ficar no exemplo das universidades, quantos torcem o nariz para sistemas de quotas simplesmente porque afrontam seu ideal de meritocracia, esquecendo que não existe igualdade de oportunidades num sistema tão injusto em que as chances de vencer o Enem são dadas principalmente pela sorte de ter nascido num lar abastado e, em geral, branco?

A notícia ruim, para cada um de nós, é que o limite para empurrarmos o problema da desigualdade com a barriga está bem próximo. E é bom não perder de vista que diversos estudos sérios sugerem que os instrumentos mais eficientes para reduzir a iniquidade numa sociedade são as guerras, o caos social e as grandes epidemias.

Se algum candidato se comprometesse a enfrentar esses privilégios para reduzir de forma drástica a desigualdade brasileira e evitar essa saída teria o meu voto.

Como isso não vai acontecer, nas próximas semanas tentarei discutir como esses tratamentos diferenciados recebidos do Estado são construídos e como eles afetam a concentração de renda (e poder) no Brasil.

Saudações a quem tem coragem.

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Não são as pessoas, são as instituições https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/15/nao-sao-as-pessoas-sao-as-instituicoes/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/15/nao-sao-as-pessoas-sao-as-instituicoes/#respond Fri, 15 Sep 2017 06:00:26 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=158 Está na hora de encararmos o fato de que os Geddéis não tomaram a República de assalto por acaso: eles são frutos do sistema

Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é este?
Que país é este?
Que país é este?

“Que país é este?” (Renato Russo)

Geddel Vieira Lima foi colega de turma de Renato Russo na adolescência. Era chamado de “Suíno” pelo futuro líder da Legião Urbana. Décadas depois, Geddel virou “Babel” na planilha da Odebrecht.

Geddel é filho de político – seu pai, Afrísio, foi deputado federal e dirigente de várias estatais e órgãos públicos na Bahia (Incra, Companhia Docas, Junta Comercial…). Durante toda a sua carreira política, Geddel quase sempre transitou ao redor do poder. Antes de se eleger deputado federal pela primeira vez, em 1990, foi diretor de estatais no mesmo Estado. Depois foram cinco mandatos na Câmara dos Deputados, sempre com funções de destaque: líder do PMDB, presidente de comissões, membro da Mesa Diretora.

Foi Ministro de Lula, vice-presidente da Caixa Econômica Federal com Dilma e Ministro novamente com Temer.

Ao longo da sua trajetória, Geddel sempre se envolveu em suspeitas de corrupção: foi acusado de desvio de dinheiro no Banco do Estado da Bahia, foi um dos anões do Orçamento, teve problemas com o TCU a respeito de favorecimento na liberação de recursos para obras e, na semana passada, revelou-se dono dos fabulosos R$ 51 milhões armazenados em caixas e malas num apartamento de Salvador.

A história de Geddel sintetiza bem um dos maiores mistérios da política brasileira: como criminosos conseguem se reeleger mandato após mandato mesmo sendo bombardeados por denúncias de corrupção ao longo das suas longas carreiras?

A resposta mais tradicional para o “paradoxo de Geddel” é que o brasileiro não sabe votar: não temos memória, não acompanhamos o noticiário político, acreditamos no “rouba, mas faz”. Para quem confia nessa explicação, a Operação Lava Jato enche os corações de esperança de que estamos virando uma página na nossa história: dezenas de corruptos psicopatas dos mais variados partidos estão sendo investigados e condenados e nossa política está sendo finalmente purificada pela ação (tardia) da Justiça. Será mesmo?

É inegável que a condenação de peixes grandes como Geddel representa um marco num passado multissecular de impunidade em favor dos poderosos. Mas estamos avançando muito pouco para tomarmos medidas concretas, institucionais, para lidar com o problema da corrupção de forma sistemática.

Para tanto, precisamos encarar o mistério dos grandes corruptos que não largam o osso do poder de uma maneira mais técnica e menos passional: menos caderno de polícia, e mais caderno de política. Não são as pessoas, é o sistema. Não é o brasileiro que não sabe votar, são as instituições que garantem a eleição dos corruptos.

A teoria econômica possui dois institutos que acredito serem a chave para tratarmos de uma reforma institucional para o combate à corrupção em bases mais definitivas do que o “barata avoa” realizado pela Lava Jato: seleção adversa e risco moral.

Um sistema político que atrai criminosos e repele cidadãos de bem nos induz a comprar gato por lebre e a elegermos permanentemente Congressos que são verdadeiros “abacaxis” democráticos. Isso em economia se chama de seleção adversa: as regras disponíveis nos induzem a fazer escolhas erradas. Logo, não é o brasileiro que não sabe votar, é o sistema que é construído para beneficiar quem sabe jogar o seu jogo sujo.

Para piorar, uma vez eleitos, esses criminosos dispõem de “condições de trabalho” tão favoráveis que são levados a testar continuamente os limites éticos. O exercício de seus mandatos funciona sob a lógica do risco moral, como se protegido por um seguro contra condenações pelos sinistros que eles provocam ao Erário. Ao invés de temerem a aplicação severa da lei, nossos políticos contam com uma quase certeza de impunidade para praticarem seus “malfeitos”. Afinal, por aqui vale a máxima: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

Enfrentar o problema da corrupção de modo sistemático demanda, portanto, minimizar as oportunidades de seleção adversa nas eleições e de risco moral no exercício do mandato. E como se faz isso?

Para reduzir a seleção adversa, precisamos de sistemas eleitorais que privilegiem candidaturas mais baratas (distritos menores, com campanhas mais simples e limites de gastos baixos), partidos com estruturas mais transparentes e democráticas (minando o poder dos velhos caciques que controlam a arrecadação e a distribuição de dinheiro e combatendo as legendas de aluguel) e fontes de financiamento pulverizadas – partidos e candidatos têm que buscar dinheiro junto aos seus eleitores, e não no Orçamento Público ou em grandes empresas.

No combate ao risco moral, precisamos eliminar um amplo sistema de incentivos que contribui para a sensação de impunidade de quem exerce o poder: fim do foro privilegiado, regras de prescrição menos benéficas, forte restrição aos recursos protelatórios, maiores punições ao crime de caixa dois, melhor integração dos órgãos de controle – afinal, se o crime é organizado, Receita Federal, Polícia Federal, CGU, TCU, Ministério Público e outros órgãos também precisam se organizar e trabalhar juntos de forma sistemática, não é mesmo?

Reduzir as imensas oportunidades de rent seeking existentes no nosso presidencialismo de coalizão também ajudaria muito a reduzir tanto a seleção adversa quanto o risco moral na política brasileira: menos cargos em comissão, menos estatais, menos regulação estatal, vedação a regimes tributários especiais, menos subsídios (evoé, TLP no BNDES!), mais transparência e avaliação no Orçamento Público.

No dia de hoje, 15 de setembro, a ONU comemora o Dia Internacional da Democracia. Meu grande desejo é que esta data nos desperte para lutar por reformas que tornem nossa democracia menos vulnerável ao poder dos Geddéis e de todos que se beneficiam dessa lógica de seleção adversa e risco moral nas nossas instituições políticas.

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Compra-se tudo, tudo se vende https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/#respond Fri, 21 Jul 2017 11:48:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=105 Tramitação da Medida Provisória que pretendia reduzir os setores beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos revela como as leis no Brasil são mal feitas e movidas pelo interesse econômico

Está ao alcance das mãos, experimente
Como é antigo o passado recente
Dentro de mais alguns instantes
De novo tudo igual ao que era antes
[…]
Compra-se tudo, tudo se vende
É conversando que a gente se entende
[…]
Dinheiro é bom, dinheiro é bom até assim
Ainda é muito bom mesmo quando é ruim
Se você não provou, um dia ainda vai provar
É fácil dizer, difícil é acreditar
E quem é que quer ver as coisas como realmente são?

“Qualquer Negócio” (Britto, Miklos, Gavin, Belloto, Mello, Fromer)

 

No último post, demonstrei como a decisão do governo Dilma de migrar a base de tributação das empresas da folha salarial para o faturamento – conhecida popularmente como desoneração da folha de pagamentos – tornou-se um grande negócio para diversos setores e um problema fiscal bilionário que afeta o financiamento da Previdência Social.

O roteiro é bastante típico da forma como fazemos políticas públicas no Brasil, principalmente aquelas relacionadas a incentivos fiscais: i) pega-se uma ideia que pode até ser boa, ii) edita-se uma medida provisória sem nenhum estudo sério sobre suas consequências, iii) a MP é desvirtuada no Congresso para ampliar seus benefícios ou beneficiários e iv) depois de virar lei, editam-se outras MPs para prorrogar prazos de vigência e aumentar ainda mais os incentivos e quem tem direito a recebê-los.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, a ideia inicial era que atendesse 6 setores e gerasse um impacto fiscal de R$ 1,43 bilhão por ano a partir de 2012. No final de 2015 já eram mais de 50 os segmentos contemplados e a conta paga por todos nós chegou a R$ 25 bilhões anuais.

O propósito deste texto é demonstrar como é difícil desarmar essas bombas fiscais que são criadas para atender ao interesse de alguns, com o pagamento a cargo de milhões de contribuintes.

Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma 2, bem que tentou. A duras penas, aprovou a Lei nº 13.161/2015, aumentou as alíquotas e reduziu o rombo para R$ 15 bilhões em 2016.

Agora é a vez de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Temer: editou a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos. Seu plano era reduzir o rombo da desoneração fiscal para menos de R$ 10 bilhões neste ano e abaixo de R$ 2 bilhões em 2018. Ou seja, voltaríamos ao plano original lá de 2011.

De acordo com a Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República para justificar a MP, a restrição da desoneração deve-se a “necessidade de redução do déficit da Previdência Social pela via da redução do gasto tributário, com o consequente aumento da arrecadação”.

Pela leitura desse documento, aliás, vê-se que continuamos tomando medidas importantes sem o necessário estudo prévio – ou, se ele existe, não é transparente e passível de debate pela sociedade.

A Exposição de Motivos, exigida pela legislação para dar satisfação ao público quanto aos requisitos de “urgência” e “relevância” de uma MP, é lacônica (oito parágrafos curtos), não faz menção a qualquer análise técnica e não apresenta justificativas para a escolha dos setores que vão continuar com a desoneração na folha.

Sobre esse aspecto, os dados disponibilizados pela Receita Federal aqui revelam que a geração de emprego parece não ter sido o critério dominante para se manter a desoneração para os setores de transporte terrestre, construção civil e infraestrutura e empresas jornalísticas, em detrimento dos demais. No gráfico abaixo, o tamanho dos polígonos representa o volume de empregados afetados pela medida em cada setor, sendo que a cor verde demonstra aqueles que continuarão tendo direito à desoneração da folha salarial:

 

 

Da mesma forma, tampouco a renúncia fiscal parece ser a razão dominante para a escolha feita pelo governo de preservar alguns setores e acabar com a desoneração de outros:

Mesmo relevando essa falha do governo em realizar estudos prévios ou, talvez, não torná-los públicos, a intenção de rever a desoneração da folha neste cenário de grave crise fiscal é bem-vinda.

Mas querer não é poder. Do outro lado existem interesses muito bem organizados e articulados com quem realmente decide: nossos representantes no Congresso. Pera lá! Representantes de quem?!?!?!

Analisando a tramitação da MP nº 774 no Congresso, é possível concluir, mais uma vez, como o processo de elaboração das leis brasileiras é extremamente permeável à ação de grupos de interesses econômicos. E é importante deixar claro como tudo isso é realizado sob um verniz de democracia e participação social.

Tome-se o caso da audiência pública realizada para discutir a matéria. Observando-se a lista dos participantes, vemos a predominância de representantes dos setores prejudicados pela extinção da desoneração da folha de pagamentos. Convidados pelos parlamentares, esses empresários ou representantes de entidades de representação empresarial têm uma grande oportunidade de estar frente a frente com os parlamentares e ter voz ativa no processo legislativo – vozes que são amplificadas pela cobertura da mídia no Congresso e pelas transmissões da TV Câmara e TV Senado.

Da relação de 11 participantes da audiência pública, apenas um do governo (Receita Federal) e dois representantes dos trabalhadores. Vê-se, portanto, como as audiências públicas no Congresso são um simulacro de canal de participação social, uma vez que a distribuição de suas vagas é extremamente desigual, sendo favorecidos os grupos com maior articulação e acesso aos parlamentares.

Aliás, a apresentação do Coordenador-adjunto do Dieese foi a única a transmitir uma visão relativamente abrangente da questão em debate, revelando como a desoneração da folha de pagamentos não tem efeitos claros sobre a geração de empregos tanto na experiência internacional quanto nos poucos estudos sérios realizados sobre o tema no Brasil até o momento. As demais foram falas interessadas dos setores afetados, com visões catastrofistas sobre os impactos da MP sobre o emprego e a produção – tudo para justificar a manutenção do incentivo.

Outro mito da democracia brasileira desmascarado pelos dados da tramitação legislativa é o da representatividade: em geral os parlamentares são representantes de setores específicos, e não do seu eleitorado ou – suprema ilusão! – da população em geral.

Tome-se o caso das emendas propostas pelos deputados com o objetivo de alterar o texto da MP nº 774. Das 90 emendas propostas, 67 destinavam-se explicitamente (sim, caro(a) leitor(a), eu li todas as emendas!!!) a beneficiar determinado setor, mantendo seu direito à desoneração da folha.

Frise-se que essas emendas não foram propostas com base em critérios técnicos: nas justificativas às emendas não há menção a estudos confiáveis sobre a relação custo-benefício da medida, donde se conclui que o propósito era simplesmente manter o privilégio.

A situação fica mais complicada quando verificamos que, em geral, há um estreito vínculo prévio entre o parlamentar que propõe a emenda e o setor beneficiado por ela.

Como pode ser visto na tabela abaixo, na maioria das vezes o senador ou deputado que propõe uma emenda destinada a manter a desoneração para um setor já tem um relacionamento com ele. Essa relação é expressa tanto em termos de uma participação em frentes parlamentares de apoio ao segmento (as famosas “bancadas” empresariais) ou, pela via mais direta, doações de campanha vindas de empresas que atuam naquele ramo.

 

Fonte: Dados coletados pelo autor, a partir de informações das páginas da Câmara, do Senado e do TSE.

Na tabela acima pode-se ver emenda de deputado que recebeu doações da Embraer propondo a manutenção da desoneração para a indústria aeronáutica, parlamentar que é presidente da Frente de Apoio ao Setor Calçadista defendendo a continuidade do benefício para as empresas do setor de calçados e couros, emendas voltadas para o setor frigorífico – carnes e derivados, suínos e avicultura – sendo propostas por congressistas da frente ruralista que receberam doações da JBS e da BR Foods (Sadia, Perdigão e etc).

E por aí vai… as evidências indicam que o processo legislativo é dominado por uma relação íntima entre parlamentares e o setor empresarial, construído ao longo do mandato – as frentes parlamentares são uma indicação disso – ou que já vem desde a campanha, por meio do financiamento eleitoral.

No caso em questão não houve nenhuma emenda propondo melhorar o sistema de desoneração, aperfeiçoando seus mecanismos de funcionamento ou eliminando eventuais distorções. A discussão se pautou apenas para tentar manter o incentivo fiscal para este ou aquele setor.

Aliás, quanto mais analiso os dados de comportamento parlamentar mais eu me convenço que ele é pautado estritamente pelo vínculo entre políticos e empresários. Proposição de projetos, relatorias, apresentação de emendas, votação em plenário, etc. não são frutos do debate de ideias, mas sim da retribuição por apoio financeiro nas campanhas ou pela expectativa de recebimento no futuro.

A tramitação da MP nº 774/2017 ainda não terminou. O parecer apresentado pelo relator, senador Airton Sandoval (PMDB/SP, suplente de Aloysio Nunes Ferreira), ainda será debatido em Plenário e, se aprovado, seguirá para o Senado. Mas já podemos ver que a toada é a mesma. As emendas acatadas restituem a desoneração para os principais setores – têxteis, calçados, couro, tecnologia da informação e comunicação e call centers – e ainda inclui as chamadas “empresas estratégicas de defesa”.

Não é por acaso que os setores reincluídos na desoneração estiveram presentes na audiência pública. E certamente não deve ser por acaso que os novos beneficiários (o parecer cita nominalmente a Embraer, a Iveco e a Avibrás) foram colocadas lá.

Como diria a canção dos Titãs que abre este artigo, no processo legislativo brasileiro “tudo se compra, tudo se vende; é conversando que a gente se entende”. “De novo tudo igual ao que era antes”.

 

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Desoneração de alguns e oneração de milhões https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/#respond Fri, 14 Jul 2017 08:30:30 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=90 Enquanto acompanhamos o julgamento de nossos malvados favoritos, a agenda empresarial avança a toda velocidade no Congresso

O pato vinha cantando alegremente, “quem, quem”
Quando o marreco sorridente pediu
Pra entrar também no samba, no samba, no samba
O ganso gostou da dupla e fez também, “quem, quem”
Olhou pro cisne e disse assim “vem, vem”
Que o quarteto ficará bem, muito bom , muito bem

“O Pato” (Jayme Silva & Neuza Teixeira)

 

Lula, Aécio, Temer, Rodrigo Maia…  Como discutimos sobre o destino que merecem nossos “malvados favoritos” nas investigações e processos que compõem a novela da nossa situação política!

Enquanto nossa atenção se concentra no noticiário político-policial, uma intensa agenda legislativa rentista avança a toda velocidade no Congresso Nacional. Nossos capitalistas que tanto criticam a carga tributária mas que adoram um benefício fiscal e um crédito subsidiado do BNDES têm se movimentado bastante em Brasília – e isso não tem a ver apenas com a manutenção ou substituição de Michel Temer na Presidência da República.

Hoje vou chamar a sua atenção para a reação empresarial contrária à proposta da equipe econômica de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

Para quem não sabe, a partir de 2011, visando estimular o emprego e a produção nacional, o governo mudou a lógica de tributação destinada ao financiamento de nossa Previdência Social. Em inúmeros setores empresariais, a dupla Dilma-Mantega trocou o modelo baseado na folha de pagamentos (com alíquotas em torno de 20%, incluindo contribuições de empregados e empregadores) para um sistema de tributação sobre o faturamento das empresas (atualmente de 1,5% a 4,5%, dependendo do setor).

Essa decisão de política econômica é um exemplo claro de como atua nosso capitalismo rentista, e como é complicado desativar seu funcionamento. Vou explicar por quê.

 

“O pato vinha cantando alegremente”

No início não era o verbo.

Em termos de desoneração da folha de pagamentos, ao editar a Medida Provisória nº 540/2011 a intenção era beneficiar apenas alguns setores bem específicos: TI, equipamentos de comunicação, vestuário, calçados, móveis, couro e peles – segmentos que, na visão do governo à época, estavam tendo dificuldades de recuperar o nível de atividade que tinham atingido antes da crise de 2008/2009.

O programa de desoneração destinava-se a ser temporário (de agosto de 2011 a dezembro de 2012) e ter um impacto orçamentário de R$ 214 milhões em 2011 e R$ 1,43 bilhão no ano seguinte.

Já dizia Caetano que “a vida é real e de viés”, e a verdade é que, em se tratando de medidas provisórias concedendo benefícios, quando passa um boi, passa também uma boiada. E o lobby empresarial tratou rapidamente de mobilizar seus contatos no Congresso para expandir os limites da medida provisória durante a sua tramitação.

 

“Quando o marreco sorridente pediu pra entrar também no samba”

Enquanto a MP nº 540/2011 percorria seu caminho no Congresso Nacional, outros setores pegaram carona nela.

Empresas de call center, de projetos e circuitos integrados, de artigos para academias de ginástica e até de botões, grampos e ilhoses também conseguiram o benefício da desoneração da folha de pagamentos com a conversão na MP na Lei nº 12.546/2011.

E ainda tiveram um bônus adicional: deputados e senadores estenderam o prazo de vigência do programa de 2012 para o final de 2014.

Se você vai seguir este blog, vai ver que isto é muito comum em se tratando de tramitação legislativa no Congresso: ampliação de benefícios, extensão de beneficiários e prorrogação de prazos.

É o rent seeking brasileiro atuando na elaboração de leis.

 

“O ganso gostou da dupla e fez também, ‘quem, quem’ / Olhou pro cisne e disse assim ‘vem, vem’”

Com o programa de desoneração na rua, o pessoal começou a ver que ele valia a pena e seria um excelente negócio.

E por causa disso, até o final de 2014 foram editadas mais seis normas tratando da desoneração da folha de pagamentos: Leis nº 12.715/2012, 12.794/2013, 12.844/2013, 12.873/2013, 12.995/2014 e 13.043/2014.

Todas elas resultantes de medidas provisórias – com tramitação rápida e, portanto, pouco debate junto à sociedade.

Todas elas com pouquíssimos vetos presidenciais – o que demonstra que havia concordância da Presidência da República com o crescimento dos benefícios fiscais.

Todas elas expandindo os setores beneficiados, chegando a milhares de códigos da Tipi, a tabela utilizada para classificar os setores para fins tributários. Eram 28 na primeira MP!!!

Todas elas abaixando as alíquotas de pagamento ou ampliando (até eliminarem) o fim da vigência do programa.

Olhando pra trás, estava na cara que a situação sairia de controle.

 

“Que o quarteto ficará bom, muito bom, muito bem”

Um problema comum nos programas de benefícios fiscais é que a conta geralmente não fecha. E ela sobra para o contribuinte comum – você e eu, pobres mortais do Sistema Tributário Nacional.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, o governo comprou uma promessa (feita pelas empresas beneficiadas, de gerarem ou garantirem empregos) e entregou algo concreto: alívio fiscal para os empresários.

O programa foi concebido deliberadamente para ser deficitário: as alíquotas aplicadas sobre a folha de pagamentos foram trocadas por outras incidentes sobre a receita bruta das empresas, mas num patamar abaixo do que seria neutro do ponto de vista fiscal. O nome disso é renúncia fiscal.

No gráfico abaixo você tem uma dimensão de como o governo abriu mão de recursos crescentes com a desoneração da folha de pagamentos (veja as barras azuis) até o final de 2014, quando terminou a parceria Dilma-Mantega. Esse movimento foi fruto da ampliação do programa para muitos setores (a linha laranja mostra o número de empresas beneficiadas) e da redução das alíquotas (os dados são da Receita Federal e podem ser encontrados aqui):

Como você pode conferir, a renúncia tributária com a desoneração da folha de pagamento para aproximadamente 80 mil empresas superou R$ 25 bilhões em 2015 – um valor equivalente ao orçamento do programa Bolsa Família, que faz a diferença para 14 milhões de famílias no país.

A situação chegou a tal ponto que o Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, Joaquim Levy, chamou a desoneração da folha de uma brincadeira grosseira e bilionária.

Para minorar o problema Levy até conseguiu aumentar as alíquotas sobre o faturamento com a MP nº 669/2015 e a aprovação da Lei nº 13.161/2015, mas o rombo continuou.

 

“A voz do pato era mesmo um desacato, jogo de cena com o ganso era mato”

Não sei se você está acompanhando o raciocínio até agora, por isso vou te relembrar de um fato muito importante: quando falamos de desoneração da folha de pagamentos, estamos tratando de um tributo destinado a financiar a Previdência Social. Sim, amiga(o), a desoneração aumentou o déficit da previdência.

Tanto é assim que a redação original da MP nº 540, em seu art. 9º, IV, já previa que “a União compensará o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da desoneração, de forma a não afetar a apuração do resultado financeiro do Regime Geral de Previdência Social”.

Traduzindo o fiscalês para leigos: o que as empresas deixaram de pagar à Previdência Social em função da desoneração da folha de pagamentos teve que ser compensado por toda a sociedade – seja por meio da redução do orçamento de outros programas governamentais, seja mediante o aumento da dívida pública.

Você pode não ter sentido, mas o dinheiro saiu do seu bolso e foi direto para o empresariado nacional. E a situação é tão grave que você será obrigado a trabalhar alguns anos a mais, porque a conta não fecha.

Com a intenção de corrigir essa distorção – e conseguir uns bilhões extras para atingir a meta de déficit deste ano e do próximo – a equipe de Henrique Meirelles convenceu o Presidente da República a editar, no final de março, a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos.

Como seria de se esperar, o empresariado chiou. Pato, marreco, ganso e cisne – reunidos na Fiesp e em outras entidades patronais – posicionaram-se contra o fim da desoneração da folha.

Se você reparar bem, o discurso dos rentistas é sempre mascarado por algum objetivo público (manutenção do emprego, combate à inflação, aumento da produção nacional, etc.) que esconde seu real interesse: o ganho individual financiado por uma perda coletiva e difusa.

No caso da desoneração da folha, o objetivo do programa era que os empresários utilizassem o ganho fiscal para aumentar a produção e, consequentemente, o emprego.

Na prática, muita gente boa suspeita que isso não tem ocorrido – pelo menos não a ponto de ficar demonstrado que o programa tem dado um resultado social superior ao déficit fiscal que ele alimenta.

É por isso que o Ministério da Fazenda quer botar ordem na casa e cortar a desoneração de muitos setores. Afinal de contas, seria bastante incoerente exigir da sociedade um sacrifício tamanho como a reforma da Previdência e manter um benefício fiscal para empresas que pressiona o déficit previdenciário.

Mas o lobby do empresariado está atento e se mobiliza para barrar ou esvaziar a proposta do governo de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

E é sobre isso que vamos conversar no próximo texto: como se articulam os interesses empresariais na tramitação da MP nº 774/2017.

O objetivo é não deixar o assunto passar em branco. Porque eles pensam, ao final, que os verdadeiros patos somos todos nós.

 

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