O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Quem quer acabar com os privilégios? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/27/quem-quer-acabar-com-os-privilegios/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/27/quem-quer-acabar-com-os-privilegios/#respond Mon, 27 Aug 2018 05:00:03 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/urna_eletronica-320x213.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=461 Programas de governo dos principais presidenciáveis conta com o fim de privilégios para resolver problemas do déficit fiscal à reforma da previdência

“Saúde, educação e segurança” sempre foi um trinômio fácil de encontrar nas propagandas de políticos em tempos de eleição. Neste ano, podemos acrescentar mais um: a eliminação de privilégios aparece com destaque em todos os planos de governo dos candidatos à Presidência, embora não haja consenso sobre o que isso quer dizer e, pior ainda, como será feito.

Em boa parte das propostas, o tema aparece como saída para a crise fiscal do Estado. Nas propostas de Alckmin, Álvaro Dias, Ciro Gomes e Bolsonaro, o combate aos privilégios é visto como o caminho para um Estado mais eficiente e com orçamento equilibrado.

No plano de Henrique Meirelles, o fim dos privilégios deve ser a pedra de toque da reforma da previdência, igualando o regime dos servidores públicos ao INSS – embora o projeto encaminhado pelo candidato, enquanto ministro da Fazenda, tenha mantido a aposentadoria especial dos militares.

Na proposta de Lula/Haddad o foco está no Ministério Público e no Judiciário. Eliminar privilégios, no programa do PT, seria uma espécie de acerto de contas daqueles que se sentem perseguidos pelo sistema judicial.

Curiosamente, as concepções mais amplas do que seja combater privilégios vêm dos representantes dos partidos mais novos e, de certa forma, mais programáticos. Somente Boulos (Psol), Marina (Rede) e Amoêdo (Novo), cada um na sua posição no espectro ideológico, apresentam propostas para atacar o problema em suas três dimensões: políticos, a elite do funcionalismo público e o alto empresariado dependente de subsídios e benefícios fiscais.

O termo “privilégio” vem do latim privatus legium. Lei privada. No Brasil, sob o pretexto de conceder direitos, garantias e incentivos a categorias profissionais, setores econômicos e grupos sociais, criamos um emaranhado de normas especiais que fragilizam o preceito de que as leis devem ser gerais e abstratas.

Com o tempo, setores econômicos foram identificando no Estado uma fonte quase inesgotável de receitas. Obter acesso privilegiado ao poder tornou-se uma estratégia de negócios para grandes grupos econômicos (rent seeking). Com a justificativa de incentivar a economia nacional, transferimos renda para o topo da pirâmide por meio de regimes tributários especiais, crédito subsidiado em bancos públicos, subvenções e regulação favorável.

Em outra direção, em tempos de farinha pouca, a elite do funcionalismo público nos três Poderes tratou de garantir o seu pirão primeiro. Além de defender com unhas e dentes seu regime previdenciário especial, obtiveram toda sorte de penduricalhos salariais: auxílio-moradia, bônus de produtividade, honorários de sucumbência aumentam em alguns milhares de reais os rendimentos que já se encontram muito acima da média do setor privado.

Atacar os privilégios, portanto, é urgente na estratégia de superar a grave crise fiscal e nossa indecente desigualdade social. O grande problema é que poucas tarefas são mais difíceis do que extinguir benesses e monopólios. O poder de articulação e pressão desses grupos de interesses é imenso. Exemplos não faltam.

O projeto de lei sobre o cadastro positivo encontra-se estagnado no Congresso por força do lobby dos cartórios, que veem na troca de informações sobre o histórico creditício dos consumidores uma ameaça aos seus ganhos milionários. Devido à resistência de grupos de interesses, propostas recentes de reforma fiscal como a reoneração da folha de pagamentos, o fim dos regimes especiais do cinema e do audiovisual e a suspensão dos reajustes do funcionalismo público foram derrotadas no Congresso. Na direção oposta, o Centrão patrocinou, à custa de toda a sociedade, uma verdadeira farra na concessão de diversos Refis a devedores contumazes da Receita.

Diante desse cenário de “salve-se quem puder”, ver os principais candidatos à Presidência pregando o fim dos privilégios é um sinal de evolução. A grande questão é saber se algum deles está disposto a colocar o guiso no gato.

Texto originalmente publicado na versão impressa da Folha no dia 27/08/2018.

 

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Tem auxílio-moradia, mas tem também 60 dias de férias e recesso https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/23/tem-auxilio-moradia-mas-tem-tambem-60-dias-de-ferias-e-recesso/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/23/tem-auxilio-moradia-mas-tem-tambem-60-dias-de-ferias-e-recesso/#respond Fri, 23 Mar 2018 05:00:00 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=324 Já é chegada a hora de reduzirmos a distância entre os setores público e privado, e isso passa também pelo simbolismo das férias, recessos e licenças

No ano dois mil e um
Se juntar algum
Eu peço uma licença
E a dançarina, enfim
Já me jurou
Que faz o show
Pra mim

Ela é dançarina
Eu sou funcionário
Quando eu não salário
Ela, sim, propina

(Ela é Dançarina, Chico Buarque)

A surpreendente decisão do Supremo Tribunal Federal de conceder liminar para impedir uma eventual prisão de Lula até a próxima sessão da Corte, agendada para 04/04/2018, expõe um outro aspecto do sistema de privilégios e regalias do setor público brasileiro.

O julgamento foi suspenso em função do “adiantado da hora” da sessão de ontem, bem como dos feriados da Semana Santa – que para o Judiciário começam na quarta-feira.

De acordo com o relatório Justiça em Números, havia 79.662.896 processos pendentes de decisão definitiva na Justiça brasileira no final de 2016. A despeito de todos os problemas estruturais de nosso sistema judicial (insegurança jurídica, excesso de recursos, burocracia sufocante), é difícil fechar os olhos para as generosas folgas concedidas aos juízes a cada ano.

De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a famosa Loman, juízes de todo o país têm direito a 60 dias de férias anuais. Além disso, uma lei de 1966 também estabelece um recesso judiciário que vai de 20/12 a 06/01 de cada ano, mais a quarta e a quinta-feira da Semana Santa e as datas comemorativas de 11/08 (Dia do Advogado), 01/11 (Dia de Todos os Santos) e 08/12 (Dia da Justiça) – além dos demais feriados nacionais, obviamente.

Não estamos aqui desmerecendo a responsabilidade e a elevada carga de trabalho dos juízes brasileiros – segundo o levantamento do Conselho Nacional de Justiça, cada magistrado tem em média sob sua guarda 6.696 processos pendentes. A questão é que não faz sentido esperar que a pilha de processos diminua enquanto os membros do Poder Judiciário trabalharem, a cada ano, pelo menos 50 dias a menos do que os demais trabalhadores brasileiros.

Essa distorção com o setor privado, entretanto, não é exclusividade do Poder Judiciário. A Constituição Federal estabelece o recesso das atividades do Legislativo nos períodos de 18 a 31 de julho e de 23/12 a 1º de fevereiro do ano seguinte e o Tribunal de Contas da União também “fecha as portas” de 17 de dezembro a 16 de janeiro.

No campo dos servidores públicos da União, a Lei nº 8.112/1990 também é pródiga no tratamento diferenciado para a categoria. Afinal, não há justificativa para o trabalhador do setor público ter direito a 8 dias de faltas em função de seu casamento ou do falecimento de cônjuge, pais, filhos ou irmãos, enquanto no setor privado os benefícios são de apenas 3 dias para casamento e 2 no caso de falecimento de membros da família.

No caso das licenças maternidade e paternidade, enquanto o Poder Executivo estendeu a sua vigência quase automaticamente para mães (por 60 dias) e pais (15 dias a mais) que são servidores públicos, no setor privado exige-se que a empresa adira a um regime tributário especial, o Programa Empresa Cidadã – com resultados bastante tímidos.

Ainda no campo das licenças e afastamentos, a Lei nº 8.112/1990 também assegura licença remunerada para os servidores que decidirem se candidatar – no período entre o registro da candidatura e o décimo dia posterior à eleição – e a possibilidade, sujeita a aprovação da chefia superior, de uma licença de até três meses a cada 5 anos para o servidor se capacitar.

Como podemos ver, a decisão do Supremo de suspender um julgamento crucial para o futuro imediato do país para que os Ministros gozem o feriadão de Páscoa escancara um sistema de privilégios que vai muito além da questão do teto salarial e dos seus penduricalhos.

Enquanto reduzir as distorções salariais e de regime previdenciário entre trabalhadores dos setores público e privado se faz urgente diante do colapso fiscal que se aproxima, eliminar tratamentos diferenciados como os regimes de férias e licenças tem um valor simbólico muito grande num país em que há tanta descrença no Estado e nas instituições.

A propósito, nunca é demais recordar: por quanto tempo ainda teremos que esperar pelo julgamento do auxílio-moradia?

 

Post anterior: “O sistema é foda”

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Os cartórios e o preço da fé pública no Brasil https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/13/os-cartorios-e-o-preco-da-fe-publica-no-brasil/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/13/os-cartorios-e-o-preco-da-fe-publica-no-brasil/#respond Fri, 13 Oct 2017 06:00:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=197 Cartórios são um bom exemplo de como o Estado brasileiro é arcaico e transfere renda da maioria para beneficiar a si mesmo e a uma minoria de privilegiados

Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
“Samba da Benção” (Baden Powell e Vinicius de Morais)

 

Numa coluna escrita para a Folha há exatos 13 anos, Janio de Freitas contou que o escritor Fernando Sabino, recém casado com a filha do governador mineiro Benedito Valadares, recebeu um presente insólito do sogro: a titularidade de um cartório no Rio de Janeiro. Findo o casamento, o autor de “O Encontro Marcado” devolveu o cartório ao sogro, por entender que lhe fora dado não por seus méritos, mas para garantir o sustento e bem-estar da filha do governador, já que ela havia se casado com um reles aspirante a escritor em início de carreira.

Passado o tempo, o Brasil evoluiu. A Constituição de 1988 estabeleceu que os serviços notariais e de registros não podem mais ser distribuídos aos amigos e parentes do rei, mas concedidos mediante concursos públicos de provas e títulos. Na essência, porém, continuam sendo um mecanismo burocrático de transferir renda da maioria dos cidadãos para uma minoria de privilegiados – sem falar que o Estado é um sócio nesse processo. É por esse motivo que eu escolhi começar minha série de textos sobre os privilégios estatais brasileiros com os serviços notariais e de registro.

O Estado brasileiro é cartorial. A partir de nossa herança portuguesa, construímos ao longo dos séculos uma complexa estrutura para “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, tal qual estabelece a lei.

Em determinado momento da nossa história (algum historiador do direito pode esclarecer quando?) atribuímos para agentes privados as atividades de registrar e atestar a veracidade dos fatos mais importantes de nossa vida civil (nascimento, casamento e morte) e negocial (contratos, procurações, dívidas, aquisição de imóveis, criação de empresas).

No imaginário popular, cartórios são vistos como minas de ouro. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, muitos deles são mesmo. O 9º Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro faturou R$ 40 milhões num único semestre. Mesmo se considerarmos que boa parte dessa arrecadação é transferida ao Estado e outro tanto é utilizado no pagamento de funcionários e na manutenção do cartório, é inegável que o detentor desse serviço público encontra-se nos extratos mais altos da distribuição de renda no Brasil – aquele 0,1% de nossa pirâmide de distribuição de renda.

E ele não está só. No gráfico abaixo eu plotei o desempenho de todos os cartórios brasileiros que arrecadaram mais de R$ 500 mil no último semestre informado ao CNJ. Se você tiver interesse em verificar a situação dos notários e registradores na sua cidade, basta selecionar o município no topo do gráfico.

 

Tomando como base apenas os 611 cartórios dispostos no gráfico acima, os brasileiros transferem para o Estado e os “donos dos cartórios” mais de R$ 2 bilhões a cada semestre. R$ 4 bilhões por ano. Considerando os demais registros de menor arrecadação, o valor passa facilmente dos R$ 5 bilhões anuais! Esse é o custo da fé pública no Brasil.

Essa massa considerável de dinheiro é transferida de todos os brasileiros para o Estado e para poucos milhares de agentes privados encarregados de prestar um serviço que, embora importante, poderia ser drasticamente reduzido, principalmente diante do avanço tecnológico das últimas décadas.

Uma das formas, portanto, de interromper a cadeia de transmissão de renda para os detentores desse serviço público seria limitar seus ganhos, após descontadas as taxas estatais e de suas despesas operacionais, ao teto da remuneração do serviço público. Com essa medida, cartórios deixariam de ser vistos como minas de ouro. Existem projetos dessa natureza em tramitação no Congresso, mas você pode imaginar a resistência dos titulares dos cartórios…

Mas uma reforma do sistema de ateste da autenticidade de documentos que realmente visasse a coletividade poderia ir muito além. Muitas das atividades desempenhadas hoje pelos notários poderiam muito bem ser exercidas pelo próprio Estado, sem a intermediação de terceiros – como acontece em vários países. Nascimentos, casamentos e mortes poderiam ser registrados num sistema informatizado nacional pelas prefeituras, assim como a propriedade dos imóveis – o que, aliás, faz bastante sentido, pois é o município que se encarrega de definir o zoneamento urbano e o plano diretor. Da mesma forma, a criação de empresas poderia ficar a cargo da Receita – que já emite o CNPJ – e a cobrança de dívidas nem precisaria ser desempenhada pelo Estado, sendo desempenhada pelos sistemas de proteção ao crédito.

Outra questão é a burocratização da vida privada no país. Muitos dos atos que hoje devem ser levados a cartório poderiam ter essas exigência extinta, reduzindo os custos para se fazer negócios por aqui. Não faz muito sentido, por exemplo, que a compra de um imóvel necessite tramitar num cartório de notas e num registro de imóveis para ser concretizada, dobrando o pagamento de emolumentos e taxas. Isso sem falar na emissão de certidões, autenticações e reconhecimentos de firmas. Além da despesa financeira, temos o custo do tempo despendido para atestarmos a verdade. Não é à toa que criamos a figura do despachante.

Embora eu reconheça ser praticamente impossível no curto prazo que surja um governante capaz de levar a cabo medidas que reformulem de forma drástica o sistema cartorial brasileiro para reduzir significativamente esses custos de transação, deveríamos pelo menos exigir uma melhor regulação dessa atividade. O CNJ deveria capitanear os Tribunais de Justiça para definirem critérios uniformes de estrutura de atendimento em todo o país, como metragem mínima para os estabelecimentos, horário de funcionamento (existem cartórios que fecham para almoço até hoje!), informatização, número mínimo de funcionários, etc. Também é fundamental estender o sistema concorrencial para os cartórios: não é possível que registros de imóveis e de pessoas naturais sejam realizados de acordo com a região geográfica; se os cartórios tiverem que competir pelos clientes, o atendimento certamente melhorará.

E o que é fundamental: em pleno século XXI, os sistemas precisam estar interligados para a realização de consultas amplas em nível nacional, propiciando identificar, a baixo custo, a real situação pessoal e patrimonial das pessoas com quem se negocia, para não falar de devedores, sonegadores, corruptos e outros criminosos.

Como não acredito que governante ou Congresso algum terá a coragem de enfrentar o lobby dos cartórios, minhas esperanças estão depositadas na tecnologia. Espero que num futuro breve o desenvolvimento tecnológico extermine esse legado colonial assim como os aplicativos de transporte estão fazendo com os táxis. De certificações digitais ao blockchain, as tecnologias disruptivas poderão romper essas estruturas arcaicas que, sob a justificativa de proteger a fé pública dos documentos, acabam transferindo bilhões de reais da população em geral para o Estado e os donos dessas verdadeiras minas de ouro.

PS: Meus agradecimentos ao prof. Brunello Stancioli (Faculdade de Direito da UFMG) pela lembrança da deliciosa história do Fernando Sabino.

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A um ano das eleições, um programa de governo fadado ao fracasso https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/a-um-ano-das-eleicoes-um-programa-de-governo-fadado-ao-fracasso/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/06/a-um-ano-das-eleicoes-um-programa-de-governo-fadado-ao-fracasso/#respond Fri, 06 Oct 2017 06:00:49 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=183 Reduzir a imensa desigualdade no Brasil exige uma ampla agenda de reformas que ataque privilégios – e nenhum candidato sequer cogita enfrentá-los

Penso: como vai minha vida?
Alimento todos os desejos
Exorciso as minhas fantasias
Todo mundo tem um pouco de medo da vida
Pra que perder tempo desperdiçando emoções
Grilar com pequenas provocações
Ataco se isso for preciso
Sou eu quem escolho e faço os meus inimigos
Saudações a quem tem coragem
aos que tão aqui pra qualquer viagem
“Pense e Dance” (Dé/Frejat/Guto Goffi)

 

Daqui a um ano estaremos na véspera da eleição. Por enquanto não temos ideia de quem serão os candidatos a presidente. Lula conseguirá escapar do julgamento em segunda instância que pode torná-lo Ficha Suja? Bolsonaro continuará crescendo nas pesquisas? O PSDB se unirá em torno de Alckmin ou Doria? Marina Silva sairá do ostracismo e finalmente se tornará viável eleitoralmente? E Henrique Meirelles, será ungido pelo empresariado e emplacará sua candidatura? Ou surgirá um outsider salvador da Pátria, tipo Luciano Huck?

Enquanto aguardamos o circo eleitoral ser montado, vejo pouca gente debatendo ideias em lugar de nomes. E nossos problemas se acumulam e vai se formando uma bomba relógio – fiscal, social, demográfica – para o próximo governo.

As medidas variam. Na Ilustríssima da Folha de domingo (01/10), Ricardo Balthazar e Vinícius Torres Freire fizeram um apanhado dos últimos estudos publicados sobre a evolução da desigualdade de renda no Brasil. A incorporação de dados fiscais por estudos como os de Marcelo Medeiros (UnB), Pedro Souza (IPEA) e Fábio Castro (Receita Federal) e, mais recentemente, de Marc Morgan, discípulo de Thomas Piketty, tem abalado a crença de que a desigualdade havia caído significativamente nas últimas duas décadas. Mais do que isso, mostram um quadro ainda mais sombrio, em que os extratos mais ricos da sociedade detêm fatias da renda nacional maiores do que supúnhamos:

Discordâncias metodológicas a parte, a verdade é que, não importa a medida, os dados sobre desigualdade no Brasil são vergonhosos. E se traduzem em outras estatísticas: desemprego, estupros, furtos e roubos, homicídios. O que já é triste torna-se trágico quando nós mesmos, ou nossos entes mais queridos, viramos estatísticas – a desigualdade socioeconômica no Brasil cobra um preço bem alto.

Os números mostram que, se por um lado políticas públicas como o Bolsa Família e reajustes reais de salário mínimo mostraram-se eficientes para enfrentar a miséria, não são suficientes para reduzir o fosso entre os pobres e os muito ricos.

Também não adianta jogar a responsabilidade para a educação, uma espécie de panaceia no imaginário popular, a saída mais comum para encerrar de forma consensual qualquer discussão sobre a situação política do país. Petralhas e coxinhas sempre acabam fazendo as pazes na mesa do bar ao concordarem que o Brasil não melhora enquanto não se investir na educação.

A grande questão é que nossos problemas são urgentes, o caos social está batendo à porta (alô, alô, Rio de Janeiro!), e não podemos nos dar ao luxo de esperar uma ou duas gerações receberem educação de qualidade para nos tornarmos um país decente. Não estou com isso querendo dizer que investir em educação não é importante – muito pelo contrário, chegamos a este ponto justamente porque, há séculos, ninguém investe seriamente em educação pública e básica de qualidade.

Mas para atacar o problema de verdade e começar a colher resultados imediatos é necessário encarar uma extensa rede de privilégios que são a marca de nosso (sub)desenvolvimento: privilégios criados pela legislação, nas opções de políticas públicas, no desenho do sistema tributário, na falta de concorrência, no fechamento do país ao mercado externo.

A autodeclarada classe média brasileira – que na verdade é classe alta, segundo as estatísticas de renda –, se pensar bem, pode ter acesso a vários privilégios criados por esse sistema excludente. É só pensar nas universidades gratuitas, na ausência de limites para despesas médicas no Imposto de Renda, na coleta diária do lixo no seu bairro e que só acontece semanalmente (quando acontece!) na periferia da sua cidade.

E o que dizer dos ricos e super-ricos? Nos beneficiários dos créditos subsidiados do BNDES para as suas empresas, dos recorrentes Refis, das baixas alíquotas de imposto sobre heranças, na isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos? Vocês acham que os grandes capitalistas brasileiros, que construíram fortunas com base em conluios entre si e com os políticos, apoiariam a campanha de candidatos que se colocarem contra esse estado de coisas?

Muito do nosso atraso advém da estratégia que cada grupo social desenvolve para conseguir arrancar do Estado – logo, da sociedade como um todo – benefícios privados. E cada qual usa belos argumentos para justificar os favores pleiteados – geralmente baseados falsamente em argumentos coletivistas, como a geração de empregos, o aumento dos investimentos, a melhoria dos serviços públicos…

Para agravar a situação, temos um sistema político que se sustenta agradando corporações: de igrejas evangélicas a altos servidores públicos, de taxistas a militares. Isso sem falar dos ruralistas, seguramente o maior partido político do Brasil hoje em dia.

O Brasil não conseguirá diminuir de forma significativa uma das piores iniquidades sociais e econômicas do planeta com base apenas em transferências de renda e algumas políticas públicas voltadas para os mais pobres. E justamente porque adiamos há anos algumas dessas decisões antiprivilégios, como a Reforma da Previdência, o quadro fiscal agora oferece pouca margem de manobra para ampliar consideravelmente programas como o Bolsa Família, por exemplo.

Como se não bastasse, o atual governo tem sido pródigo na concessão de mais benefícios para grupos de interesses. Dependente de negociações para assegurar a paralisação das ações que correm contra o Presidente na Justiça, com uma popularidade que beira o ridículo e com sua legitimidade questionada por boa parte da população desde que assumiu o Palácio do Planalto, o governo cede em praticamente tudo: começou com a concessão de reajustes salariais para o funcionalismo, passou por renegociações generosas das dívidas de ruralistas e agora abriu-se a porteira para um refinanciamento de pai pra filho de dívidas tributárias de grandes empresas e a criação de um fundo público de pelo menos R$ 2 bilhões para campanhas eleitorais.

É por isso que decidi assumir uma quixotesca missão de discutir, nas próximas semanas, diversos desses privilégios incrustados em nossa sociedade e alimentados pelo Estado brasileiro. A ideia é selecionar normas, políticas públicas ou tributos que geram concentração de renda e apresentar evidências de seu custo – fiscal ou social. Proponho chamar a atenção dos leitores para uma espécie de programa de governo voltado para tentar mitigar a imensa desigualdade de renda brasileira.

Mas de antemão já aviso que se trata de um exercício utópico. Mesmo se algum louco decidisse assumir essa agenda, ele estaria fadado ao fracasso. Afinal de contas, ninguém ganha eleição defendendo a eliminação de privilégios de grupos poderosos ou de uma vasta parcela da população que se julga no direito de usufruir deles.

Nesse ponto, a lógica da ação coletiva é batata. De um lado, temos a imensa maioria silenciosa e desarticulada que se beneficiaria dessas mudanças, mas pouco fará para defendê-las; de outro, uma minoria ruidosa e bem organizada que se mobiliza para matar na raiz qualquer ameaça a seus benefícios. No Brasil são tantos os benefícios e privilégios oferecidos a diferentes grupos sociais que alguém que se disponha a enfrentá-los fará tantos inimigos que suas chances de vitória são reduzidas a zero.

Além disso, ainda há a ideologia cega a dificultar qualquer movimento nessa direção. Esquerdistas que bradam contra a desigualdade levantarão suas bandeiras contra medidas contrárias a alguns de seus dogmas – para boa parte deles, instituir cobrança de mensalidades para quem tem condições de pagar é uma afronta ao ideal de universidade pública e gratuita, mesmo que os recursos sejam realocados para a educação básica ou para o desenvolvimento de mais pesquisas que beneficiariam a coletividade.

Assim também acontece com a direita. Para ficar no exemplo das universidades, quantos torcem o nariz para sistemas de quotas simplesmente porque afrontam seu ideal de meritocracia, esquecendo que não existe igualdade de oportunidades num sistema tão injusto em que as chances de vencer o Enem são dadas principalmente pela sorte de ter nascido num lar abastado e, em geral, branco?

A notícia ruim, para cada um de nós, é que o limite para empurrarmos o problema da desigualdade com a barriga está bem próximo. E é bom não perder de vista que diversos estudos sérios sugerem que os instrumentos mais eficientes para reduzir a iniquidade numa sociedade são as guerras, o caos social e as grandes epidemias.

Se algum candidato se comprometesse a enfrentar esses privilégios para reduzir de forma drástica a desigualdade brasileira e evitar essa saída teria o meu voto.

Como isso não vai acontecer, nas próximas semanas tentarei discutir como esses tratamentos diferenciados recebidos do Estado são construídos e como eles afetam a concentração de renda (e poder) no Brasil.

Saudações a quem tem coragem.

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