O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O agro é tech, mas também é tóxico https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/27/o-agro-e-tech-mas-tambem-e-toxico/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/27/o-agro-e-tech-mas-tambem-e-toxico/#respond Wed, 27 Jun 2018 05:00:16 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=420 Tramitação do projeto de lei que pretende flexibilizar a comercialização de agrotóxicos mostra como grupos de interesses controlam a produção de leis no Brasil

 

Há quase um consenso de que o agronegócio é um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira. Trata-se de um caso raro em que conseguimos aprimorar nossas vantagens comparativas (território vasto, clima e solo) com inovações tecnológicas desenvolvidas no seio de centros de pesquisas de ponta, como a Embrapa, a Esalq e as Universidades Federais de Lavras e Viçosa. A representação do setor no Congresso Nacional, contudo, é a antítese desse cenário de prosperidade. Como erva daninha, a bancada ruralista se alastra sobre todos os campos de seu interesse, sufocando qualquer possibilidade de debate democrático.

Estou me referindo, obviamente, à aprovação de projeto de lei que flexibiliza a comercialização de agrotóxicos no país pela Comissão Especial encarregada de analisar o assunto na Câmara dos Deputados. No entanto, nas duas últimas décadas a bancada ruralista se tornou uma força parlamentar superior à maioria dos partidos, sendo por isso cortejada por todos os presidentes, de FHC a Temer, passando por Lula e Dilma. Em troca de apoio ao governo, os ruralistas foram capazes de aprovar uma gama imensa de benefícios setoriais, incluindo renegociações de seus empréstimos junto ao Banco do Brasil, parcelamento de suas dívidas tributárias, bem como medidas regulatórias favoráveis à comercialização de transgênicos e, agora, pesticidas.

Embora seja plenamente aceitável que um determinado setor ou grupo de interesses mobilize esforços junto ao Congresso ou ao governo para obter legislação ou políticas públicas favoráveis – isso faz parte do jogo democrático –, é preciso dizer que esse jogo, no Brasil, não tem nenhum fair play. E a tramitação do Projeto de Lei nº 6.299/2002, que regula os agrotóxicos no país, é um triste exemplo de como o processo legislativo é dominado por quem tem acesso aos donos do poder.

No meu livro “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” eu demonstro como parlamentares vinculados à Frente Parlamentar da Agropecuária dominam instâncias importantes na tramitação de projetos, como as Comissões de Agricultura e de Meio Ambiente, além de terem sido determinantes na votação de projetos sensíveis ao setor, como o novo Código Florestal. No caso do projeto de lei dos agrotóxicos não foi diferente.

Para não deixar dúvidas de suas intenções, o projeto foi proposto pelo senador Blairo Maggi, atual Ministro da Agricultura, cuja família é considerada a maior produtora de soja do mundo. Na sua versão original, a proposta tinha um único dispositivo, liberando do registro prévio nos órgãos federais (Ministérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente) os agrotóxicos cujos princípios ativos fossem “substancialmente equivalentes” a outros previamente registrados. A razão para a proposta era simplificar o processo e, assim, estimular a concorrência e baixar os preços dos pesticidas.

Uma vez aprovado no Senado em 2002, quando chegou na Câmara dos Deputados o projeto foi designado para tramitar em quatro comissões permanentes: i) a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, ii) a Comissão de Seguridade Social e Família, iii) a Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural e, finalmente, iv) a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Em cada uma delas, a proposta deveria ser analisada por um relator, cujo parecer seria submetido à votação de seus membros.

Embora teria sido extremamente salutar debater o assunto profundamente em ambientes tão distintos como as comissões de agricultura, meio ambiente e seguridade social – aliás, a essência do processo legislativo é justamente essa –, optou-se por evitar a “morosidade” da tramitação regular e recorreu-se a um poderoso atalho previsto no Regimento Interno da Câmara: a criação de uma comissão especial, ou temporária, que substitui todas as demais.

No caso do PL dos agrotóxicos, a comissão especial criada para analisá-lo em caráter terminativo tem como presidente a deputada Tereza Cristina (DEM/MS), que não por acaso também é presidente da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, braço institucionalizado da bancada ruralista no Congresso. No parlamento brasileiro, as escolhas em geral não são gratuitas – e é sintomático que matéria de tamanha relevância social tenha sido entregue à representante máxima dos interesses do agronegócio no Congresso Nacional.

Aliás, o primeiro vice-presidente da comissão, Valdir Colatto (MDB/SC) também pertence à frente de apoio aos ruralistas. Assim como o segundo vice-presidente, deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB/CE). E também o relator do projeto, o paranaense Luiz Nishimori (PR).

Entre os cargos de direção da comissão especial, apenas o deputado Bohn Gass (PT/RS) não está ligado oficialmente à bancada ruralista. Ele está do outro lado da disputa, pois milita na Frente Parlamentar pelo Desenvolvimento da Agroecologia e Produção Orgânica. Ou seja, na condução da comissão destinada a analisar uma mudança dessa importância no setor, atribuiu-se para aqueles que defendem o fim do uso dos agrotóxicos nas plantações um cargo em cinco, não por acaso o mais baixo na hierarquia. Um verniz de pluralidade sempre foi apreciado na democracia brasileira.

Na composição total da comissão especial que decide o futuro do uso de agrotóxicos no Brasil, o placar também é bastante favorável aos ruralistas. Dos 27 membros titulares, nada menos que 20 filiam-se à frente parlamentar da agropecuária – o dobro daqueles que defendem os interesses da agricultura sem agrotóxicos. A comissão tem ainda 15 integrantes da Frente Parlamentar Ambientalista.

A tabela mostra a vinculação dos deputados titulares da Comissão Especial que analisou o projeto de lei sobre agrotóxicos às frentes parlamentares da agropecuária, ambientalista e de produção orgânica.
Fonte: Elaboração do autor a partir de informações da Câmara dos Deputados.

Mas é preciso ter cuidado com a tabela acima. O Congresso Nacional está repleto de parlamentares que se filiam a toda e qualquer frente parlamentar no afã de garantir votos e doações de campanha nas eleições futuras. No caso da comissão especial dos agrotóxicos, temos oito membros que se autoproclamam apoiadores, ao mesmo tempo, da agropecuária, da agricultura orgânica e do meio ambiente – e mais três que são ao mesmo tempo ruralistas e ambientalistas.

Embora, em tese, não seja impossível defender o agronegócio e o meio-ambiente simultaneamente, a rigor as pautas defendidas por cada um desses grupos é antagônica – em especial quando se trata do uso de pesticidas nas lavouras. Nesse caso, há evidências suficientes para desconfiar de que, entre esses parlamentares que acendem vela para deus e o diabo, o interesse dos ruralistas fale mais alto: afinal de contas, dos 11 parlamentares que estão vinculados a mais de uma frente, nada menos que 7 são, eles próprios, produtores rurais. E isso dá uma boa dica sobre de que lado eles estarão na hora de votar.

Mesmo se considerarmos como autênticos apenas os parlamentares que se filiam apenas a uma frente parlamentar, a comissão especial é dominada amplamente pelos ruralistas. Nela estão presentes 9 “ruralistas-raiz” contra apenas cinco adversários do uso de agrotóxicos – dois defensores da agricultura orgânica (Padre João e Bohn Gass) e três ambientalistas (Alessandro Molon, Jandira Feghali e Sarney Filho). É praticamente o dobro.

Para oferecer parecer ao projeto, a Comissão designou como relator o deputado Luiz Nishimori (PR). Na página oficial da Câmara o deputado se autodeclara “agricultor e comerciante” e, do ponto de vista da associação a frentes parlamentares, ele apoia tanto a causa dos ruralistas, quando dos ambientalistas e da produção orgânica. Mas não se engane com essa aparência de isenção. Ao longo das duas últimas legislaturas, o deputado paranaense relatou outras importantes proposições de interesse do agronegócio, como renegociações de dívidas, concessão de subvenções ao crédito rural e até (surpresa!) a isenção de tributos sobre a comercialização de fertilizantes e defensivos agrícolas.

Apesar de gerar tanta controvérsia na comunidade científica e na sociedade em geral, a Comissão Especial realizou poucas audiências públicas sobre o assunto. Em geral, houve uma atenção desmedida a agentes do setor e a dirigentes do Ministério da Agricultura, inclusive o agora ministro Blairo Maggi. Também foram convidados representantes de órgãos estrangeiros (EUA, Canadá e Austrália) que defenderam maior celeridade na liberação dos registros de princípios ativos.

A oposição bem que tentou fomentar o debate, mas a maioria dos requerimentos para a realização de audiências com representantes de visões divergentes não foi adiante. A situação chegou a tal ponto que, para dar voz a representantes do Ibama, Fiocruz, Idec e outras entidades contrárias à proposta, foi necessário recorrer à Comissão de Desenvolvimento Urbano, que não tinha nada a ver com a tramitação do projeto – uma vez que a Comissão Especial, dominada pelos ruralistas, interditou o debate.

Para encurtar a conversa, a Comissão Especial aprovou o parecer do deputado Luiz Nishimori na última segunda-feira, dia 25/06/2018. Ao final do processo, o projeto que na sua versão inicial tinha um único dispositivo tornou-se uma massa de 68 artigos, com repercussões sobre o setor, a segurança alimentar e o meio ambiente que carecem de uma urgente mobilização da comunidade científica e da sociedade em geral para avaliar as suas consequências.

O resultado da votação foi 18 a 9 pela aprovação do projeto. Entre os 18 parlamentares que votaram a favor, apenas um deputado não era vinculado à bancada ruralista. No lado contrário, 7 eram ambientalistas e mais um era defensor dos orgânicos – sendo apenas um signatário da Frente de Apoio à Agricultura.

O projeto que pretende regular a comercialização de agrotóxicos no Brasil pode até ser bom – eu não tenho conhecimento técnico para opinar a respeito. Mas a forma como ele foi conduzido, com evidente domínio da bancada ruralista, gera bastante desconfiança.

A matéria ainda vai a votação em Plenário, e pode até ser derrotada. Mas é urgente repensarmos o processo legislativo brasileiro para equilibrar o direito a voz na tramitação de projetos de lei, pois o quadro atual é altamente tóxico.

 

Post anterior: Mais algumas reflexões sobre a crise

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Compra-se tudo, tudo se vende https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/#respond Fri, 21 Jul 2017 11:48:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=105 Tramitação da Medida Provisória que pretendia reduzir os setores beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos revela como as leis no Brasil são mal feitas e movidas pelo interesse econômico

Está ao alcance das mãos, experimente
Como é antigo o passado recente
Dentro de mais alguns instantes
De novo tudo igual ao que era antes
[…]
Compra-se tudo, tudo se vende
É conversando que a gente se entende
[…]
Dinheiro é bom, dinheiro é bom até assim
Ainda é muito bom mesmo quando é ruim
Se você não provou, um dia ainda vai provar
É fácil dizer, difícil é acreditar
E quem é que quer ver as coisas como realmente são?

“Qualquer Negócio” (Britto, Miklos, Gavin, Belloto, Mello, Fromer)

 

No último post, demonstrei como a decisão do governo Dilma de migrar a base de tributação das empresas da folha salarial para o faturamento – conhecida popularmente como desoneração da folha de pagamentos – tornou-se um grande negócio para diversos setores e um problema fiscal bilionário que afeta o financiamento da Previdência Social.

O roteiro é bastante típico da forma como fazemos políticas públicas no Brasil, principalmente aquelas relacionadas a incentivos fiscais: i) pega-se uma ideia que pode até ser boa, ii) edita-se uma medida provisória sem nenhum estudo sério sobre suas consequências, iii) a MP é desvirtuada no Congresso para ampliar seus benefícios ou beneficiários e iv) depois de virar lei, editam-se outras MPs para prorrogar prazos de vigência e aumentar ainda mais os incentivos e quem tem direito a recebê-los.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, a ideia inicial era que atendesse 6 setores e gerasse um impacto fiscal de R$ 1,43 bilhão por ano a partir de 2012. No final de 2015 já eram mais de 50 os segmentos contemplados e a conta paga por todos nós chegou a R$ 25 bilhões anuais.

O propósito deste texto é demonstrar como é difícil desarmar essas bombas fiscais que são criadas para atender ao interesse de alguns, com o pagamento a cargo de milhões de contribuintes.

Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma 2, bem que tentou. A duras penas, aprovou a Lei nº 13.161/2015, aumentou as alíquotas e reduziu o rombo para R$ 15 bilhões em 2016.

Agora é a vez de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Temer: editou a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos. Seu plano era reduzir o rombo da desoneração fiscal para menos de R$ 10 bilhões neste ano e abaixo de R$ 2 bilhões em 2018. Ou seja, voltaríamos ao plano original lá de 2011.

De acordo com a Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República para justificar a MP, a restrição da desoneração deve-se a “necessidade de redução do déficit da Previdência Social pela via da redução do gasto tributário, com o consequente aumento da arrecadação”.

Pela leitura desse documento, aliás, vê-se que continuamos tomando medidas importantes sem o necessário estudo prévio – ou, se ele existe, não é transparente e passível de debate pela sociedade.

A Exposição de Motivos, exigida pela legislação para dar satisfação ao público quanto aos requisitos de “urgência” e “relevância” de uma MP, é lacônica (oito parágrafos curtos), não faz menção a qualquer análise técnica e não apresenta justificativas para a escolha dos setores que vão continuar com a desoneração na folha.

Sobre esse aspecto, os dados disponibilizados pela Receita Federal aqui revelam que a geração de emprego parece não ter sido o critério dominante para se manter a desoneração para os setores de transporte terrestre, construção civil e infraestrutura e empresas jornalísticas, em detrimento dos demais. No gráfico abaixo, o tamanho dos polígonos representa o volume de empregados afetados pela medida em cada setor, sendo que a cor verde demonstra aqueles que continuarão tendo direito à desoneração da folha salarial:

 

 

Da mesma forma, tampouco a renúncia fiscal parece ser a razão dominante para a escolha feita pelo governo de preservar alguns setores e acabar com a desoneração de outros:

Mesmo relevando essa falha do governo em realizar estudos prévios ou, talvez, não torná-los públicos, a intenção de rever a desoneração da folha neste cenário de grave crise fiscal é bem-vinda.

Mas querer não é poder. Do outro lado existem interesses muito bem organizados e articulados com quem realmente decide: nossos representantes no Congresso. Pera lá! Representantes de quem?!?!?!

Analisando a tramitação da MP nº 774 no Congresso, é possível concluir, mais uma vez, como o processo de elaboração das leis brasileiras é extremamente permeável à ação de grupos de interesses econômicos. E é importante deixar claro como tudo isso é realizado sob um verniz de democracia e participação social.

Tome-se o caso da audiência pública realizada para discutir a matéria. Observando-se a lista dos participantes, vemos a predominância de representantes dos setores prejudicados pela extinção da desoneração da folha de pagamentos. Convidados pelos parlamentares, esses empresários ou representantes de entidades de representação empresarial têm uma grande oportunidade de estar frente a frente com os parlamentares e ter voz ativa no processo legislativo – vozes que são amplificadas pela cobertura da mídia no Congresso e pelas transmissões da TV Câmara e TV Senado.

Da relação de 11 participantes da audiência pública, apenas um do governo (Receita Federal) e dois representantes dos trabalhadores. Vê-se, portanto, como as audiências públicas no Congresso são um simulacro de canal de participação social, uma vez que a distribuição de suas vagas é extremamente desigual, sendo favorecidos os grupos com maior articulação e acesso aos parlamentares.

Aliás, a apresentação do Coordenador-adjunto do Dieese foi a única a transmitir uma visão relativamente abrangente da questão em debate, revelando como a desoneração da folha de pagamentos não tem efeitos claros sobre a geração de empregos tanto na experiência internacional quanto nos poucos estudos sérios realizados sobre o tema no Brasil até o momento. As demais foram falas interessadas dos setores afetados, com visões catastrofistas sobre os impactos da MP sobre o emprego e a produção – tudo para justificar a manutenção do incentivo.

Outro mito da democracia brasileira desmascarado pelos dados da tramitação legislativa é o da representatividade: em geral os parlamentares são representantes de setores específicos, e não do seu eleitorado ou – suprema ilusão! – da população em geral.

Tome-se o caso das emendas propostas pelos deputados com o objetivo de alterar o texto da MP nº 774. Das 90 emendas propostas, 67 destinavam-se explicitamente (sim, caro(a) leitor(a), eu li todas as emendas!!!) a beneficiar determinado setor, mantendo seu direito à desoneração da folha.

Frise-se que essas emendas não foram propostas com base em critérios técnicos: nas justificativas às emendas não há menção a estudos confiáveis sobre a relação custo-benefício da medida, donde se conclui que o propósito era simplesmente manter o privilégio.

A situação fica mais complicada quando verificamos que, em geral, há um estreito vínculo prévio entre o parlamentar que propõe a emenda e o setor beneficiado por ela.

Como pode ser visto na tabela abaixo, na maioria das vezes o senador ou deputado que propõe uma emenda destinada a manter a desoneração para um setor já tem um relacionamento com ele. Essa relação é expressa tanto em termos de uma participação em frentes parlamentares de apoio ao segmento (as famosas “bancadas” empresariais) ou, pela via mais direta, doações de campanha vindas de empresas que atuam naquele ramo.

 

Fonte: Dados coletados pelo autor, a partir de informações das páginas da Câmara, do Senado e do TSE.

Na tabela acima pode-se ver emenda de deputado que recebeu doações da Embraer propondo a manutenção da desoneração para a indústria aeronáutica, parlamentar que é presidente da Frente de Apoio ao Setor Calçadista defendendo a continuidade do benefício para as empresas do setor de calçados e couros, emendas voltadas para o setor frigorífico – carnes e derivados, suínos e avicultura – sendo propostas por congressistas da frente ruralista que receberam doações da JBS e da BR Foods (Sadia, Perdigão e etc).

E por aí vai… as evidências indicam que o processo legislativo é dominado por uma relação íntima entre parlamentares e o setor empresarial, construído ao longo do mandato – as frentes parlamentares são uma indicação disso – ou que já vem desde a campanha, por meio do financiamento eleitoral.

No caso em questão não houve nenhuma emenda propondo melhorar o sistema de desoneração, aperfeiçoando seus mecanismos de funcionamento ou eliminando eventuais distorções. A discussão se pautou apenas para tentar manter o incentivo fiscal para este ou aquele setor.

Aliás, quanto mais analiso os dados de comportamento parlamentar mais eu me convenço que ele é pautado estritamente pelo vínculo entre políticos e empresários. Proposição de projetos, relatorias, apresentação de emendas, votação em plenário, etc. não são frutos do debate de ideias, mas sim da retribuição por apoio financeiro nas campanhas ou pela expectativa de recebimento no futuro.

A tramitação da MP nº 774/2017 ainda não terminou. O parecer apresentado pelo relator, senador Airton Sandoval (PMDB/SP, suplente de Aloysio Nunes Ferreira), ainda será debatido em Plenário e, se aprovado, seguirá para o Senado. Mas já podemos ver que a toada é a mesma. As emendas acatadas restituem a desoneração para os principais setores – têxteis, calçados, couro, tecnologia da informação e comunicação e call centers – e ainda inclui as chamadas “empresas estratégicas de defesa”.

Não é por acaso que os setores reincluídos na desoneração estiveram presentes na audiência pública. E certamente não deve ser por acaso que os novos beneficiários (o parecer cita nominalmente a Embraer, a Iveco e a Avibrás) foram colocadas lá.

Como diria a canção dos Titãs que abre este artigo, no processo legislativo brasileiro “tudo se compra, tudo se vende; é conversando que a gente se entende”. “De novo tudo igual ao que era antes”.

 

O que você achou do texto? Compartilhe, comente ou mande um email com a sua opinião! brunocarazza.oespiritodasleis@gmail.com

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Desoneração de alguns e oneração de milhões https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/#respond Fri, 14 Jul 2017 08:30:30 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=90 Enquanto acompanhamos o julgamento de nossos malvados favoritos, a agenda empresarial avança a toda velocidade no Congresso

O pato vinha cantando alegremente, “quem, quem”
Quando o marreco sorridente pediu
Pra entrar também no samba, no samba, no samba
O ganso gostou da dupla e fez também, “quem, quem”
Olhou pro cisne e disse assim “vem, vem”
Que o quarteto ficará bem, muito bom , muito bem

“O Pato” (Jayme Silva & Neuza Teixeira)

 

Lula, Aécio, Temer, Rodrigo Maia…  Como discutimos sobre o destino que merecem nossos “malvados favoritos” nas investigações e processos que compõem a novela da nossa situação política!

Enquanto nossa atenção se concentra no noticiário político-policial, uma intensa agenda legislativa rentista avança a toda velocidade no Congresso Nacional. Nossos capitalistas que tanto criticam a carga tributária mas que adoram um benefício fiscal e um crédito subsidiado do BNDES têm se movimentado bastante em Brasília – e isso não tem a ver apenas com a manutenção ou substituição de Michel Temer na Presidência da República.

Hoje vou chamar a sua atenção para a reação empresarial contrária à proposta da equipe econômica de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

Para quem não sabe, a partir de 2011, visando estimular o emprego e a produção nacional, o governo mudou a lógica de tributação destinada ao financiamento de nossa Previdência Social. Em inúmeros setores empresariais, a dupla Dilma-Mantega trocou o modelo baseado na folha de pagamentos (com alíquotas em torno de 20%, incluindo contribuições de empregados e empregadores) para um sistema de tributação sobre o faturamento das empresas (atualmente de 1,5% a 4,5%, dependendo do setor).

Essa decisão de política econômica é um exemplo claro de como atua nosso capitalismo rentista, e como é complicado desativar seu funcionamento. Vou explicar por quê.

 

“O pato vinha cantando alegremente”

No início não era o verbo.

Em termos de desoneração da folha de pagamentos, ao editar a Medida Provisória nº 540/2011 a intenção era beneficiar apenas alguns setores bem específicos: TI, equipamentos de comunicação, vestuário, calçados, móveis, couro e peles – segmentos que, na visão do governo à época, estavam tendo dificuldades de recuperar o nível de atividade que tinham atingido antes da crise de 2008/2009.

O programa de desoneração destinava-se a ser temporário (de agosto de 2011 a dezembro de 2012) e ter um impacto orçamentário de R$ 214 milhões em 2011 e R$ 1,43 bilhão no ano seguinte.

Já dizia Caetano que “a vida é real e de viés”, e a verdade é que, em se tratando de medidas provisórias concedendo benefícios, quando passa um boi, passa também uma boiada. E o lobby empresarial tratou rapidamente de mobilizar seus contatos no Congresso para expandir os limites da medida provisória durante a sua tramitação.

 

“Quando o marreco sorridente pediu pra entrar também no samba”

Enquanto a MP nº 540/2011 percorria seu caminho no Congresso Nacional, outros setores pegaram carona nela.

Empresas de call center, de projetos e circuitos integrados, de artigos para academias de ginástica e até de botões, grampos e ilhoses também conseguiram o benefício da desoneração da folha de pagamentos com a conversão na MP na Lei nº 12.546/2011.

E ainda tiveram um bônus adicional: deputados e senadores estenderam o prazo de vigência do programa de 2012 para o final de 2014.

Se você vai seguir este blog, vai ver que isto é muito comum em se tratando de tramitação legislativa no Congresso: ampliação de benefícios, extensão de beneficiários e prorrogação de prazos.

É o rent seeking brasileiro atuando na elaboração de leis.

 

“O ganso gostou da dupla e fez também, ‘quem, quem’ / Olhou pro cisne e disse assim ‘vem, vem’”

Com o programa de desoneração na rua, o pessoal começou a ver que ele valia a pena e seria um excelente negócio.

E por causa disso, até o final de 2014 foram editadas mais seis normas tratando da desoneração da folha de pagamentos: Leis nº 12.715/2012, 12.794/2013, 12.844/2013, 12.873/2013, 12.995/2014 e 13.043/2014.

Todas elas resultantes de medidas provisórias – com tramitação rápida e, portanto, pouco debate junto à sociedade.

Todas elas com pouquíssimos vetos presidenciais – o que demonstra que havia concordância da Presidência da República com o crescimento dos benefícios fiscais.

Todas elas expandindo os setores beneficiados, chegando a milhares de códigos da Tipi, a tabela utilizada para classificar os setores para fins tributários. Eram 28 na primeira MP!!!

Todas elas abaixando as alíquotas de pagamento ou ampliando (até eliminarem) o fim da vigência do programa.

Olhando pra trás, estava na cara que a situação sairia de controle.

 

“Que o quarteto ficará bom, muito bom, muito bem”

Um problema comum nos programas de benefícios fiscais é que a conta geralmente não fecha. E ela sobra para o contribuinte comum – você e eu, pobres mortais do Sistema Tributário Nacional.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, o governo comprou uma promessa (feita pelas empresas beneficiadas, de gerarem ou garantirem empregos) e entregou algo concreto: alívio fiscal para os empresários.

O programa foi concebido deliberadamente para ser deficitário: as alíquotas aplicadas sobre a folha de pagamentos foram trocadas por outras incidentes sobre a receita bruta das empresas, mas num patamar abaixo do que seria neutro do ponto de vista fiscal. O nome disso é renúncia fiscal.

No gráfico abaixo você tem uma dimensão de como o governo abriu mão de recursos crescentes com a desoneração da folha de pagamentos (veja as barras azuis) até o final de 2014, quando terminou a parceria Dilma-Mantega. Esse movimento foi fruto da ampliação do programa para muitos setores (a linha laranja mostra o número de empresas beneficiadas) e da redução das alíquotas (os dados são da Receita Federal e podem ser encontrados aqui):

Como você pode conferir, a renúncia tributária com a desoneração da folha de pagamento para aproximadamente 80 mil empresas superou R$ 25 bilhões em 2015 – um valor equivalente ao orçamento do programa Bolsa Família, que faz a diferença para 14 milhões de famílias no país.

A situação chegou a tal ponto que o Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, Joaquim Levy, chamou a desoneração da folha de uma brincadeira grosseira e bilionária.

Para minorar o problema Levy até conseguiu aumentar as alíquotas sobre o faturamento com a MP nº 669/2015 e a aprovação da Lei nº 13.161/2015, mas o rombo continuou.

 

“A voz do pato era mesmo um desacato, jogo de cena com o ganso era mato”

Não sei se você está acompanhando o raciocínio até agora, por isso vou te relembrar de um fato muito importante: quando falamos de desoneração da folha de pagamentos, estamos tratando de um tributo destinado a financiar a Previdência Social. Sim, amiga(o), a desoneração aumentou o déficit da previdência.

Tanto é assim que a redação original da MP nº 540, em seu art. 9º, IV, já previa que “a União compensará o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da desoneração, de forma a não afetar a apuração do resultado financeiro do Regime Geral de Previdência Social”.

Traduzindo o fiscalês para leigos: o que as empresas deixaram de pagar à Previdência Social em função da desoneração da folha de pagamentos teve que ser compensado por toda a sociedade – seja por meio da redução do orçamento de outros programas governamentais, seja mediante o aumento da dívida pública.

Você pode não ter sentido, mas o dinheiro saiu do seu bolso e foi direto para o empresariado nacional. E a situação é tão grave que você será obrigado a trabalhar alguns anos a mais, porque a conta não fecha.

Com a intenção de corrigir essa distorção – e conseguir uns bilhões extras para atingir a meta de déficit deste ano e do próximo – a equipe de Henrique Meirelles convenceu o Presidente da República a editar, no final de março, a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos.

Como seria de se esperar, o empresariado chiou. Pato, marreco, ganso e cisne – reunidos na Fiesp e em outras entidades patronais – posicionaram-se contra o fim da desoneração da folha.

Se você reparar bem, o discurso dos rentistas é sempre mascarado por algum objetivo público (manutenção do emprego, combate à inflação, aumento da produção nacional, etc.) que esconde seu real interesse: o ganho individual financiado por uma perda coletiva e difusa.

No caso da desoneração da folha, o objetivo do programa era que os empresários utilizassem o ganho fiscal para aumentar a produção e, consequentemente, o emprego.

Na prática, muita gente boa suspeita que isso não tem ocorrido – pelo menos não a ponto de ficar demonstrado que o programa tem dado um resultado social superior ao déficit fiscal que ele alimenta.

É por isso que o Ministério da Fazenda quer botar ordem na casa e cortar a desoneração de muitos setores. Afinal de contas, seria bastante incoerente exigir da sociedade um sacrifício tamanho como a reforma da Previdência e manter um benefício fiscal para empresas que pressiona o déficit previdenciário.

Mas o lobby do empresariado está atento e se mobiliza para barrar ou esvaziar a proposta do governo de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

E é sobre isso que vamos conversar no próximo texto: como se articulam os interesses empresariais na tramitação da MP nº 774/2017.

O objetivo é não deixar o assunto passar em branco. Porque eles pensam, ao final, que os verdadeiros patos somos todos nós.

 

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