O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O presente de grego do Congresso para Bolsonaro https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/11/09/o-presente-de-grego-do-congresso-para-bolsonaro/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/11/09/o-presente-de-grego-do-congresso-para-bolsonaro/#respond Fri, 09 Nov 2018 04:00:24 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/sessao_senado-320x213.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=564 Votação do reajuste do Judiciário é um retrato de como são produzidas nossas leis, e do que nos espera em 2019

A aprovação, pelo Senado Federal, dos projetos de lei que reajustam a remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República para R$ 39.293,32 é muito mais grave do que se imagina.

As redes sociais repercutiram a indignação coletiva. Como um Congresso que acaba de levar uma sova nas urnas, num claro recado de que a população não aguenta mais privilégios, aprova um reajuste de 16,8% para o Judiciário, no meio de uma crise fiscal gravíssima que será o grande desafio para o próximo governo?

Não se iluda, caro leitor que espalhou para todos os seus contatos a lista dos traidores da Pátria que votaram a favor do reajuste. Tudo que é ruim, pode piorar. A verdade dói – e é no seu bolso que você vai sentir.

Para o presidente eleito, e seu ministro da Economia, o recado também parece claro: é assim que a banda sempre tocou e o jogo é bem mais complicado do que parece.

Vamos aos fatos.

  1. Não acredite nas justificativas

Regra de ouro para quem se interessa por acompanhar o Congresso Nacional: sempre desconfie das justificativas apresentadas por autores e relatores de projetos de lei. Em geral, o indefensável vem embalado com palavras bonitas, argumentos falseados e muito senso comum.

No parecer do senador José Maranhão (MDB/PB), relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, consta que o reajuste deveria ser aprovado porque, “como é sabido, a remuneração dos membros da nossa Suprema Corte se encontra defasada”.

O relator parte de uma verdade (desde 01/01/2015, data do último reajuste, a inflação já acumula 25,7%), mas esconde o todo: o projeto não se restringe aos ministros do STF, pois nossa Constituição determina que ele seja o teto da remuneração de todo o funcionalismo público brasileiro. Em outras palavras, aumentar o subsídio dos ministros do STF tem efeitos em cascata sobre toda a estrutura de cargos e salários na União, Estados e municípios. E sobre isso o ilustre relator simplesmente silenciou.

  1. Desconfie dos números

Assim como não podemos nos fiar nas palavras, em geral os números apresentados (quando são apresentados) costumam sub ou superestimar a realidade, de acordo com o interesse defendido.

Instado a se manifestar sobre o impacto orçamentário do reajuste, o Conselho Nacional de Justiça misturou as contas do projeto de reajuste do subsídio dos ministros do STF com outro, relativo aos seus servidores, de modo a não deixar claro o impacto isolado de cada um deles. Mais uma lição: transparência, principalmente quanto a seus rendimentos, não é o forte de nosso Judiciário.

No voto em separado apresentado pelo senador Valdir Raupp (MDB/RO) há uma estimativa de que o impacto da elevação do teto do STF seria de R$ 813,14 milhões por ano no Judiciário.

Insatisfeito com as estimativas apresentadas pelos principais interessados no reajuste, o senador Ricardo Ferraço (PSDB/ES) acionou a Consultoria de Orçamento do Senado para elaborar um cálculo envolvendo os reais efeitos do reajuste para os cofres públicos.

Os técnicos do Senado levaram em conta o efeito cascata do reajuste sobre todo o Judiciário, o Ministério Público e os Tribunais de Contas, inclusive os estaduais, e também seu impacto sobre os servidores dos outros Poderes que têm seus rendimentos limitados pelo teto do STF.

Levando em conta todas as suas repercussões, o reajuste custará à União e aos Estados a exorbitância de R$ 5,3 bilhões anuais.

  1. A Lei de Responsabilidade Fiscal é para inglês ver

Quando foi aprovada, a Lei de Responsabilidade Fiscal foi festejada como um grande marco em nossa lenta caminhada rumo à seriedade no trato do dinheiro público. Na prática, ela tem sido solenemente descumprida quando se trata de impor travas ao descontrole de gastos.

Relator do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), o senador Ricardo Ferraço chamou a atenção para o fato de que, uma vez aplicado, o reajuste levará ao descumprimento dos limites de alerta, prudenciais ou máximos permitidos pela LRF nos Tribunais de Justiça de 13 Estados (RR, MG, SP, MT, CE, RJ, BA, SE, SC, ES, RO, TO e PB) e nos Ministérios Públicos Estaduais de outros 21 Estados – nos cálculos da Consultoria de Orçamento, apenas os MPs gaúcho, pernambucano, baiano, amazonense e paulista sobreviveriam.

Afora o estrondoso impacto nos combalidos orçamentos da União e do Estado, o descumprimento dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal deveria ser suficiente para levar ao arquivamento do projeto de reajustar o teto do funcionalismo.

Como a verdade é muitas vezes inconveniente, o parecer de Ferraço nunca foi votado – numa manobra regimental, foi substituído em plenário por outro texto, de autoria do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), bem mais ameno.

Por incrível que pareça, o parlamento brasileiro é o primeiro a descumprir as leis que ele próprio cria.

  1. Esse rombo não será coberto pelo fim do auxílio-moradia

Você já deve ter ouvido ministros do STF, membros do Ministério Público e parlamentares dizerem que o reajuste não impactará o orçamento, pois será compensado pelo fim do auxílio-moradia.

Em primeiro lugar, não temos garantia nenhuma de que o auxílio-moradia será mesmo extinto. Afinal de contas, a ação que questiona sua constitucionalidade vem sendo cuidada com carinho pelo ministro Luiz Fux há anos no STF. Mas mesmo que, num arroubo de civismo, o STF decida proibir o pagamento desse penduricalho, ele será insuficiente para cobrir o rombo de R$ 5,3 bilhões no orçamento.

A conta pode ser feita num guardanapo de papel. De acordo com os últimos dados divulgados, o Brasil tem 18.168 magistrados e 13.087 membros do Ministério Público na ativa. Basta multiplicar a soma das duas categorias pelo valor do auxílio (R$ 4.377,73) para verificar que a economia com a sua extinção seria de R$ 1,6 bilhão em 12 meses – menos de um terço, portanto, da despesa extra a ser criada com o reajuste.

  1. Que Bolsonaro e Paulo Guedes aprendam a lição

A aprovação do reajuste do teto do funcionalismo dá uma pequena mostra do que o novo governo vai enfrentar no Congresso a partir de janeiro. Embora conte com uma boa base de apoio formada por parlamentares de partidos aliados, agregados do Centrão e membros das bancadas ruralista, evangélica e da segurança pública, não será fácil para o presidente eleito (como não foi para nenhum dos seus antecessores) enfrentar os fortes interesses corporativos no Congresso.

Uma coisa será aprovar uma pauta de projetos relacionados à agenda conservadora de Bolsonaro (escola sem partido, diminuição da maioridade penal, estatuto do desarmamento); outra bem mais difícil será cortar privilégios e aprovar medidas de contenção fiscal.

A votação do reajuste do teto do STF demonstra exatamente isso: a proposta recebeu votos contrários de apenas 5 senadores que continuarão exercendo seus mandatos em 2018, contra 18 votos favoráveis (entre os que não foram reeleitos, houve 11 votos contrários e 23 apoios).

O gráfico mostra o número de votos favoráveis e contrários ao projeto de reajuste do subsídio dos ministros do STF entre os senadores que terão e não terão mandato a partir de 2019.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Senado.
  1. Não conte com a oposição (aliás, onde estavam PT e PSDB para impedir responsavelmente a aprovação do projeto?)

Analisando os dados da votação por partido, podemos observar melhor como se comportou o Senado.

O gráfico mostra os votos favoráveis e contrários por partido.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Senado.

Como pode ser visto no gráfico acima, o bloco dos partidos do centro e da direita, onde deve se localizar a base de sustentação de Bolsonaro, votou em peso a favor do reajuste do Judiciário (com exceção do DEM). Isso é um péssimo sinal a respeito de seu comprometimento com a pesada agenda de ajuste proposta por Paulo Guedes.

Do lado de uma virtual “oposição responsável” no governo Bolsonaro, a postura do PSDB foi lamentável. O partido ofereceu a maior quantidade de votos favoráveis ao reajuste (10 a favor, apenas um contra), o que demonstra que a responsabilidade fiscal há muito deixou de ser um valor para o partido que criou a LRF.

O outro ponto negativo é o PT. Além de ter rachado entre senadores a favor e contra o reajuste (situação rara para um dos partidos com maior disciplina partidária no país), o partido apresentou um alto índice de parlamentares ausentes à votação – o que pode ser mais uma evidência de que o partido está muito mais interessado com o que acontece em Curitiba do que com os destinos do país sendo decididos em Brasília.

O gráfico mostra o número de ausentes na votação por partido.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Senado.
  1. Veta Temer?

Por fim, é preciso lembrar que Temer iniciou seu “mandato-tampão” referendando aumentos salariais concedidos de modo irresponsável por Dilma a carreiras da elite do funcionalismo.

Mais tarde, em troca de salvar seu mandato depois do Joesley Day, o presidente, já manco, cedeu ao fisiologismo e aceitou toda sorte de pressões corporativas, das novas edições do Refis ao recentíssimo Rota 2030 para a indústria automobilística.

Diante desse histórico de leniência com a ação dos grupos de interesse, caberia agora a Temer um último gesto de responsabilidade fiscal, aliviando um pouco a carga que recairá sobre o governo Bolsonaro?

Uma dica: seu partido, o MDB, esteve por trás de todas manobras e ofereceu a maior parte dos votos e ausências que contribuíram para a aprovação do reajuste do Judiciário e de todo o teto do funcionalismo.

 

Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.

 

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O novo trem da alegria de Jucá, Randolfe e companhia ilimitada https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/03/o-novo-trem-da-alegria-de-juca-randolfe-e-companhia-ilimitada/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/03/o-novo-trem-da-alegria-de-juca-randolfe-e-companhia-ilimitada/#respond Fri, 03 Aug 2018 05:00:36 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=436 Emenda Constitucional aprovada no final do ano passado cria a possibilidade de admissão de milhares de servidores públicos sem concurso, ameaçando situação fiscal no próximo governo

Devido a condições especiais de relevo e correntes marítimas, o litoral da Califórnia é rico em diversidade marinha. Com a corrida do ouro, no final do século XIX, uma colônia de imigrantes chineses, e depois italianos, se estabeleceu na região de Monterey, passando a viver da pesca de sardinhas. Em 1902, um norueguês montou a primeira fábrica de latas, resolvendo o problema da perecibilidade do produto e ampliando consideravelmente o mercado consumidor.

Durante as duas guerras mundiais, as sardinhas de Monterey aplacaram a fome dos exércitos aliados com suas latinhas práticas e ricas em proteína. Com a demanda em alta, dezenas de fábricas foram abertas, milhares de pessoas migraram para a região para trabalhar na pesca e no processamento do produto e uma nova tecnologia de barcos foi desenvolvida para capturar os imensos cardumes da região. Em 1946 chegaram a ser pescadas 142 mil toneladas de sardinhas na região.

Em 1953, subitamente, as sardinhas desapareceram. Os loucos anos anteriores não respeitaram o tempo de reprodução da espécie, levando as fábricas à falência e milhares de pessoas ao desemprego. A decadência da região de Monterey perdurou por décadas, até o turismo surgir como opção, já no final do século XX. No antigo cais da cidade, as antigas fábricas de sardinhas deram lugar a restaurantes e a um imenso aquário criado por David Packard, um dos criadores da HP, para celebrar a importância da diversidade marinha. Sinal dos tempos.

O caso da indústria de sardinhas no litoral da Califórnia é um exemplo clássico da “tragédia dos comuns”, uma expressão cunhada pelo economista britânico William Forster Lloyd no século XIX e, muito tempo depois, em 1968, popularizado pelo filósofo e ecologista Garrett Hardin: recursos naturais à disposição de todos tendem a ser extintos porque não há limites à ganância humana. Na lógica do cada um por si, da maximização do lucro individual, acabamos matando nossas galinhas dos ovos de ouro. Em outras palavras, um recurso de uso coletivo está fadado à escassez se não houver regras claras de propriedade ou de regulação que limitem a sanha individualista e garantam a sua exploração sustentável ao tempo. 

No Brasil do início do século XXI, porém, estamos sujeitos a outro problema, que eu chamarei aqui de “tragédia dos incomuns”: um bem de uso coletivo (os recursos públicos) vem sendo explorado de modo desenfreado por políticos e grupos de pressão (os incomuns) que agem visando estritamente seu interesse particular em detrimento da coletividade. E assim estamos avançando de modo acelerado rumo a uma tragédia social de escassez e crise, onde em breve não teremos recursos para mais nada.

Quem acompanha este blog é testemunha de como, no último ano, venho chamando a atenção para diversos aspectos dessa superexploração dos recursos públicos pelos incomuns da política brasileira. De subsídios governamentais a regras especiais de imposto de renda para setores com grande poder de pressão, passando por políticas de incentivo sem qualquer avaliação de sua eficácia, nosso orçamento público vem sendo comprometido pelo apetite voraz de quem só enxerga seu benefício privado.

Para demonstrar como nossos políticos incomuns estão levando o país à tragédia de modo sorrateiro, veja o caso da Emenda Constitucional nº 98/2017, promulgada pelo Congresso no final do ano passado. O objetivo dessa emenda foi possibilitar a qualquer pessoa que tenha participado da criação dos Estados de Roraima e Amapá ser admitido, sem concurso público, como servidor da União.

Se você é experiente o suficiente para se lembrar da Assembleia Constituinte ou acompanha minimamente a política brasileira, deve se recordar do famoso “trem da alegria”, um dispositivo colocado na Constituição de 1988 que permitiu a milhares de pessoas serem admitidas no serviço público federal sem passar por concurso. 

No caso dos servidores dos ex-territórios transformados em Estados naquele período (Roraima, Amapá e Rondônia), ainda houve duas novas partidas do trem da alegria, sempre patrocinadas por influentes políticos da região, com as Emendas Constitucionais nº 19/1998 e 79/2014.

A nova EC nº 98, por sua vez, abriu a maior de todas as janelas para quem quer se tornar servidor público federal nos estados de Roraima e Amapá sem precisar recorrer a editais, cursinhos preparatórios ou meses de estudo. Pela sua redação e forma de tramitação fica evidente como a atuação descompromissada de políticos e grupos de interesses está levando o país à exaustão de seus recursos orçamentários.

A proposta foi capitaneada pelo senador Romero Jucá (MDB) e faz um agrado ao seu curral eleitoral à custa de todos os brasileiros. Em tempos de Lava Jato e com os velhos caciques políticos na berlinda, o senador de Roraima agiu estrategicamente visando o benefício próprio para angariar milhares de votos oferecendo a seus eleitores a possibilidade de se tornarem servidores públicos federais, com estabilidade no emprego e salários acima do mercado.

Segundo a justificativa da medida, “muito embora as normas constitucionais vigentes tenham procurado dispor, de forma exaustiva, sobre a situação das pessoas que hajam mantido relações ou vínculos de trabalho com o Estado ou o ex-Território de Roraima, assim como com o do Amapá, durante a fase de sua implantação, a complexidade e as especificidades de cada caso vertente impediram que se o fizesse de maneira absolutamente perfeita e exata”. 

Embora aponte que existiam falhas na legislação anterior que deixaram lacunas em relação a quem atuou na transição dos ex-Territórios para os atuais Estados, os senadores não apontam quais são elas ou quais as causas das citadas injustiças. Também não há estimativa nenhuma de quantas pessoas estariam sendo prejudicadas. O texto de apresentação da PEC tem apenas quatro parágrafos, uma coleção de frases vagas e vazias de conteúdo, culminando com um comovente “precisamos, agora, retribuir, ao menos parcialmente, o muito que essas pessoas contribuíram não apenas para que se implantasse o poder público local, mas, principalmente, para que Roraima e o Amapá se erguessem como unidades da federação”.

Se a justificativa é vazia, a redação dos dispositivos é repleta de conceitos indeterminados e bastante elástica. É só dar uma olhada na amplidão (de tamanho e de sentidos) do art. 31, que designa quem tem direito a virar servidor da União com a nova regra:

“Art. 31. A pessoa que revestiu a condição de servidor público federal da administração direta, autárquica ou fundacional, de servidor municipal ou de integrante da carreira de policial, civil ou militar, dos ex-Territórios Federais do Amapá e de Roraima e que, comprovadamente, encontrava-se no exercício de suas funções, prestando serviço à administração pública dos ex-Territórios ou de prefeituras neles localizadas, na data em que foram transformados em Estado, ou a condição de servidor ou de policial, civil ou militar, admitido pelos Estados do Amapá e de Roraima, entre a data de sua transformação em Estado e outubro de 1993, bem como a pessoa que comprove ter mantido, nesse período, relação ou vínculo funcional, de caráter efetivo ou não, ou relação ou vínculo empregatício, estatutário ou de trabalho com a administração pública dos ex-Territórios, dos Estados ou das prefeituras neles localizadas ou com empresa pública ou sociedade de economia mista que, constituída pelo ex-Território ou pela União para atuar no âmbito do ex-Território Federal, haja sido extinta, poderá integrar, mediante opção, quadro em extinção da administração pública federal.” Colorir.

Traduzindo o texto (propositalmente?) confuso, a nova legislação permite que três grupos distintos de pessoas possam optar para fazer parte como servidores da Administração Pública Federal:

i) Qualquer servidor público federal ou municipal (incluindo autarquias e fundações, policiais civis e militares) que estivem prestando serviço aos ex-Territórios de Roraima e Amapá ou às prefeituras dos municípios localizados lá na data em que foram transformados em Estado;

ii) servidores (incluindo policiais civis e militares) admitidos pelos Estados de Roraima e Amapá entre a criação dos Estados e outubro de 1993; e o mais chocante deles:

iii) qualquer pessoa que comprove ter mantido relação, vínculo funcional ou relação de emprego ou trabalho para os ex-territórios, Estados, prefeituras, inclusive empresas públicas ou sociedades de economia mista até outubro de 1993.

Pela extensão dessas hipóteses e o caráter indeterminado das condições, imagino que não será difícil para um cidadão residente em Roraima ou no Amapá no período pleitear sua passagem no trem da alegria de Jucá, principalmente porque os meios comprobatórios são igualmente frouxos e as benesses são imensas.

De acordo com os parágrafos 4º e 5º do citado artigo, vale praticamente qualquer meio de prova para ter direito aos benefícios: contrato, convênio, ajuste, ato administrativo, contrato de cooperativa, recibo, comprovante de depósito em conta bancária, emissão de ordem de pagamento ou nota de empenho. A única condição é que os serviços tenham sido prestados por, pasmem, 90 dias. 

Mas o melhor da festa está no primeiro parágrafo: uma vez feita a opção, o enquadramento se dará em cargo equivalente da Administração Federal em reação aos serviços prestados. Ou seja: se um médico foi contratado por apenas 90 dias para atender em um posto de saúde nos ex-Territórios, ele terá direito a se tornar um membro da carreira federal de médicos (perito do INSS, talvez…). O mesmo vale para quem foi contratado para prestar um serviço como advogado de uma prefeitura qualquer nesses antigos territórios; esses sortudos cidadãos poderão pleitear receber como advogados da União, fazendo jus a salários de quase R$ 30 mil mensais. 

E ainda tem mais: pelo parágrafo 3º, todo esse contingente indeterminado de pessoas poderá ser cedido aos Estados de Roraima e do Amapá ou a seus municípios, sendo custeados pela União. Uma bela sacada para aliviar a grave crise fiscal enfrentada por esses Estados, não? 

O impacto dessa Emenda Constitucional promete ser brutal e é assustador o fato de que nenhum deputado ou senador tenha se dado ao trabalho de solicitar uma avaliação de seu efeito sobre as contas públicas. Aliás, é assustador o fato de que praticamente nenhum parlamentar tenha levantado a voz contra esse absurdo fiscal.

A análise da tramitação legislativa dessa PEC revela, ainda, que, quando se trata de lesar os cofres públicos, direita e esquerda se abracem fraternalmente, deixando de lado qualquer diferença ideológica ou animosidade em relação à situação política recente. Aliás, o trem da alegria de Jucá foi relatado simplesmente por Randolfe Rodrigues (Rede/AP), severo crítico das articulações do MDB no impeachment de Dilma. 

Deixando qualquer desavença política de lado, o senador amapaense emitiu seu primeiro parecer no tempo recorde de 24 horas, tendo ainda trabalhado em versões posteriores buscando a expansão das benesses do texto inicial. Seu voto é repleto de afirmações genéricas e elogiosas, abusando de expressões como ˜interesse público e social˜, “tratamento isonômico” e “viabilidade financeira”, mas sem se dar ao trabalho de demonstrá-las concretamente.

Ao longo do trâmite legislativo, a proposta recebeu 6 emendas no Senado e 12 na Câmara, todas destinadas a ampliar os seus efeitos e tornar as suas condições mais vantajosas. Nenhum parlamentar se esforçou para propor dispositivos para fechar um pouco a porteira por onde podem passar milhares de novos servidores públicos federais sem concurso.

Aliás, no afã de assaltar o Erário para fins políticos e eleitorais, vale até mesmo jogar na lata de lixo discursos históricos em favor da responsabilidade fiscal. Afinal, como explicar a presença, como co-autores do trem da alegria de Jucá, paladinos da moralidade nas finanças públicas como José Serra, Antonio Anastasia ou Aloysio Nunes Ferreira, todos do PSDB? 

É bom lembrar também que a proposta de Jucá (aquele do “acordo nacional, com o Supremo, com tudo”)  também foi subscrita por petistas representativos como Paulo Paim e Walter Pinheiro, bem como a aliada de primeira hora Vanessa Grazziotin (PCdoB),  formando uma composição suprapartidária contra as contas públicas.

Para quem acompanha o processo legislativo brasileiro, não há surpresa nenhuma: quando é possível das privilégios para alguns e apresentar a conta para a sociedade em geral, nossos políticos e partidos são bastante coerentes e atuam em sintonia.

Por falar em coerência partidária, TODOS os líderes de partidos se posicionaram a favor do trem da alegria na votação da Câmara (para ser justo, o PPS liberou seus membros a votarem como bem entendessem, o que dá no mesmo). A proposta foi aprovada de forma quase unânime em dois turnos nas duas Casas legislativas, praticamente sem qualquer oposição ou questionamento.

Com parlamentares tão vorazes em atacar nossos limitados recursos públicos em prol de sua sobrevivência política, só podemos esperar nossa completa extinção como nação num futuro breve. Essa é a tragédia dos incomuns para a qual estamos condenados.

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Tem auxílio-moradia, mas tem também 60 dias de férias e recesso https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/23/tem-auxilio-moradia-mas-tem-tambem-60-dias-de-ferias-e-recesso/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/23/tem-auxilio-moradia-mas-tem-tambem-60-dias-de-ferias-e-recesso/#respond Fri, 23 Mar 2018 05:00:00 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=324 Já é chegada a hora de reduzirmos a distância entre os setores público e privado, e isso passa também pelo simbolismo das férias, recessos e licenças

No ano dois mil e um
Se juntar algum
Eu peço uma licença
E a dançarina, enfim
Já me jurou
Que faz o show
Pra mim

Ela é dançarina
Eu sou funcionário
Quando eu não salário
Ela, sim, propina

(Ela é Dançarina, Chico Buarque)

A surpreendente decisão do Supremo Tribunal Federal de conceder liminar para impedir uma eventual prisão de Lula até a próxima sessão da Corte, agendada para 04/04/2018, expõe um outro aspecto do sistema de privilégios e regalias do setor público brasileiro.

O julgamento foi suspenso em função do “adiantado da hora” da sessão de ontem, bem como dos feriados da Semana Santa – que para o Judiciário começam na quarta-feira.

De acordo com o relatório Justiça em Números, havia 79.662.896 processos pendentes de decisão definitiva na Justiça brasileira no final de 2016. A despeito de todos os problemas estruturais de nosso sistema judicial (insegurança jurídica, excesso de recursos, burocracia sufocante), é difícil fechar os olhos para as generosas folgas concedidas aos juízes a cada ano.

De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a famosa Loman, juízes de todo o país têm direito a 60 dias de férias anuais. Além disso, uma lei de 1966 também estabelece um recesso judiciário que vai de 20/12 a 06/01 de cada ano, mais a quarta e a quinta-feira da Semana Santa e as datas comemorativas de 11/08 (Dia do Advogado), 01/11 (Dia de Todos os Santos) e 08/12 (Dia da Justiça) – além dos demais feriados nacionais, obviamente.

Não estamos aqui desmerecendo a responsabilidade e a elevada carga de trabalho dos juízes brasileiros – segundo o levantamento do Conselho Nacional de Justiça, cada magistrado tem em média sob sua guarda 6.696 processos pendentes. A questão é que não faz sentido esperar que a pilha de processos diminua enquanto os membros do Poder Judiciário trabalharem, a cada ano, pelo menos 50 dias a menos do que os demais trabalhadores brasileiros.

Essa distorção com o setor privado, entretanto, não é exclusividade do Poder Judiciário. A Constituição Federal estabelece o recesso das atividades do Legislativo nos períodos de 18 a 31 de julho e de 23/12 a 1º de fevereiro do ano seguinte e o Tribunal de Contas da União também “fecha as portas” de 17 de dezembro a 16 de janeiro.

No campo dos servidores públicos da União, a Lei nº 8.112/1990 também é pródiga no tratamento diferenciado para a categoria. Afinal, não há justificativa para o trabalhador do setor público ter direito a 8 dias de faltas em função de seu casamento ou do falecimento de cônjuge, pais, filhos ou irmãos, enquanto no setor privado os benefícios são de apenas 3 dias para casamento e 2 no caso de falecimento de membros da família.

No caso das licenças maternidade e paternidade, enquanto o Poder Executivo estendeu a sua vigência quase automaticamente para mães (por 60 dias) e pais (15 dias a mais) que são servidores públicos, no setor privado exige-se que a empresa adira a um regime tributário especial, o Programa Empresa Cidadã – com resultados bastante tímidos.

Ainda no campo das licenças e afastamentos, a Lei nº 8.112/1990 também assegura licença remunerada para os servidores que decidirem se candidatar – no período entre o registro da candidatura e o décimo dia posterior à eleição – e a possibilidade, sujeita a aprovação da chefia superior, de uma licença de até três meses a cada 5 anos para o servidor se capacitar.

Como podemos ver, a decisão do Supremo de suspender um julgamento crucial para o futuro imediato do país para que os Ministros gozem o feriadão de Páscoa escancara um sistema de privilégios que vai muito além da questão do teto salarial e dos seus penduricalhos.

Enquanto reduzir as distorções salariais e de regime previdenciário entre trabalhadores dos setores público e privado se faz urgente diante do colapso fiscal que se aproxima, eliminar tratamentos diferenciados como os regimes de férias e licenças tem um valor simbólico muito grande num país em que há tanta descrença no Estado e nas instituições.

A propósito, nunca é demais recordar: por quanto tempo ainda teremos que esperar pelo julgamento do auxílio-moradia?

 

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O auxílio-moradia, a inveja e outras mumunhas mais https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/02/09/o-auxilio-moradia-a-inveja-e-outras-mumunhas-mais/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/02/09/o-auxilio-moradia-a-inveja-e-outras-mumunhas-mais/#respond Fri, 09 Feb 2018 04:30:24 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=282 O debate sobre distorções salariais nos altos cargos do serviço público não pode ficar restrita ao auxílio-moradia de juízes e procuradores

“A inveja é o pecado mais adequado a um mundo que
estimula a competitividade e a superação.
Que diz a todo momento:
seja um vencedor, inveje o próximo para superá-lo e,
se possível, arrasá-lo”. 

(Zuenir Ventura. Mal Secreto: A Inveja)

 

Na capa do primeiro número da Folha da Noite, jornal que foi o precursor da Folha, há o relato da reunião que fundou a associação dos funcionários municipais em São Paulo. Corria o ano de 1921.

Como resultado da assembleia, foi enviada uma representação à Câmara Municipal reivindicando o aumento de seus vencimentos. O expediente começa da seguinte forma: “Sabem v.v. exas. que, para bom desempenho de funcções e melhor aproveitamento da atividade humana é de necessidade absoluta a serenidade de espírito, e quando as asperezas da vida e as aperturas da necessidade acompanham um indivíduo, falece ao seu espírito a serenidade e ele não póde produzir com abundância e bôa qualidade.

Quase cem anos depois, o país desperta para discutir o auxílio-moradia de juízes e membros do Ministério Público – servidores públicos que ganham em torno de R$ 30 mil e ainda recebem esse “penduricalho” de mais 4.300 e poucos reais. A despeito desse movimento saudável de abrir a caixa preta para criticar os inúmeros benefícios da magistratura e do Ministério Público, é importante ter um olhar mais amplo para o processo que gera distorções como o auxílio-moradia.

O economista Dan Ariely, professor de psicologia e economia comportamental da Duke University, em uma das deliciosas histórias do livro “Previsivelmente Irracional”, conta como uma regulação no mercado de capitais americano acabou se revelando um tiro que saiu pela culatra. Em reação a escândalos na mídia que denunciavam os exorbitantes salários e benefícios dos executivos de grandes empresas, baixou-se uma norma determinado que toda companhia aberta deveria publicar os rendimentos de seus CEOs.

O objetivo governo com a determinação de tornar públicas todas as regalias era constranger as empresas e, assim, estimulá-las a cortar os abusos. O resultado: em 1993 um CEO americano ganhava, em média, 131 vezes mais que os demais empregados da empresa. Em 2008, quando o livro foi publicado, a diferença passou a ser de 369 vezes.

Para Ariely, esse resultado aparentemente contraditório pode ser explicado pelo ciúme e pela inveja. Na sua visão, nós, humanos, preocupamos mais com nossa posição relativa do que a absoluta. Além disso, miramos sempre para nossos pares e para quem se encontra acima de nós, quase nunca para baixo. No caso dos executivos americanos, quando os ganhos dos demais CEOs tornaram-se públicos, cada um passou a se comparar aos outros, e isso gerou uma corrida para assegurar a si mesmo os benefícios usufruídos pelos seus semelhantes. Em vez de reduzir a média, a decisão estimulou uma corrida para o topo.

A recente polêmica envolvendo o auxílio-moradia no Judiciário tem um pouco a ver com essa história contada pelo economista Dan Ariely. Buscando dar um basta a históricos abusos remuneratórios no setor público, as Emendas Constitucionais nº 19/1998 e 41/2003 definiram como teto remuneratório, em todos os poderes e níveis federativos da República, o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

No entanto, assim como no caso dos executivos americanos, o que era para ser teto passou a ser encarado por diversas corporações como uma meta. Na queda de braço com o governo em suas negociações salariais, o anseio de toda categoria é sempre ficar próximo do limite máximo legal – aliás, inúmeras propostas legislativas buscam vincular, na Constituição, as remunerações das carreiras mais fortes (as ditas “carreiras típicas de Estado”) a determinado percentual do subsídio dos ministros do Supremo. Os juízes estaduais conseguiram – sua remuneração está fixada em 90,25% do que ganham os membros do STF. Por simetria, membros do Ministério Público, ministros do TCU e conselheiros dos TCEs seguem a mesma regra.

Para as demais carreiras vale a lei do mais forte: quanto maior o poder de pressão, melhores os reajustes. No governo Lula, muitas dessas carreiras conseguiram expressivos ganhos salariais. Surfando nos anos de bonança, esses servidores da “elite” do Poder Executivo (os do Legislativo e TCU idem) conseguiram bem mais do que uma recomposição inflacionária dos anos de achatamento de FHC: sua remuneração passou a tangenciar o teto remuneratório, como pode ser visto no gráfico abaixo.

O gráfico mostra a evolução da remuneração de diversas carreiras do Poder Executivo Federal
Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal, diversos números. Elaboração do autor.

 

Analisando o gráfico anterior, vemos que a remuneração dos ministros do Supremo está estacionada em R$ 33.763 desde 01/01/2015. Com o agravamento da crise fiscal, o governo tem segurado reajustes no teto, justamente para conter o efeito cascata que ele induz direta ou indiretamente sobre todo o funcionalismo público. O auxílio-moradia, portanto, é uma forma de auto concessão de um reajuste salarial disfarçado, burlando o teto. Seu uso tornou-se disseminado a partir da decisão liminar do ministro Luiz Fux validando regulamentação do Conselho Nacional de Justiça de 2014.

 

O gráfico mostra a evolução das despesas com auxílio-moradia nos principais Poderes da República.
Fonte: Siga Brasil. Inclui restos a pagar. Elaboração do autor.

 

O gráfico acima demonstra, no entanto, que o problema do auxílio-moradia não é exclusivo do Judiciário – em termos absolutos, o Executivo gasta mais do que os demais poderes com essa rubrica (mas lembrando que no gráfico acima não se encontram os gastos com o Judiciário e o MP estaduais). E se você acha que a situação do auxílio-moradia é um absurdo, é bom saber que essa estratégia de criar penduricalhos salariais tem se espalhado por outras carreiras poderosas em Brasília.

Em 2016 os membros das carreiras jurídicas vinculadas à Advocacia Geral da União conseguiram em lei o direito a receber honorários de sucumbência nas causas ganhas pela União. De acordo com dados do Portal da Transparência, de fevereiro a novembro de 2017 essa rubrica engordou os contracheques de procuradores e advogados públicos, na média, em R$ 3.800 mensais – R$ 480 milhões ao todo em 10 meses.

Já em 2017 foi a vez dos auditores e analistas da Receita Federal garantirem, também em lei, um bônus de eficiência e produtividade na atividade tributária. Enquanto o governo federal não regulamenta a forma de cálculo e distribuição desse extra salarial, auditores vêm recebendo R$ 3 mil mensais (os analistas tributários R$ 1,8 mil). E tem um detalhe importante: assim como no caso dos honorários de sucumbência da AGU, o bônus da Receita é pago também aos servidores aposentados.

A grande diferença entre a história contada por Dan Ariely e os penduricalhos na remuneração de servidores do topo do funcionalismo brasileiro é que, no primeiro caso, trata-se do setor privado – ou seja, as exorbitantes remunerações de CEOs são bancadas pelos acionistas, e não pelo conjunto da sociedade. Por esse motivo, temos que romper urgentemente a lógica das corporações de servidores que só olham para o lado e para cima, nunca para os milhões de brasileiros que estão bem abaixo.

Uma rápida conta de guardanapo de bar para dar noção do quanto essas distorções representam.

  • O Brasil tinha em 2016, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 18.011 juízes. Sendo o auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais, essa regalia para os magistrados pode chegar a custar R$ 946,2 milhões aos Erários federal e estaduais.
  • Somemos aí os 12.816 membros do Ministério Público, perfazendo mais R$ 673,3 milhões.
  • Apenas com os honorários de sucumbência da AGU temos pelo menos mais uns R$ 580 milhões anuais – extrapolando para um ano inteiro os números de fevereiro a novembro de 2017.
  • No caso da Receita Federal, a Exposição de Motivos da MP nº 765/2016, que instituiu o bônus, previa despesas de R$ 2 bilhões por ano entre 2017 e 2019 para estimular a eficiência e a produtividade de auditores e analistas.

Resumo da ópera: Tomando apenas esses benefícios extras para as quatro carreiras citadas, temos despesas que podem chegar a R$ 4,2 bilhões por ano. Só para você ter ideia do quanto representa esse agrado, se olharmos lá pra baixo da pirâmide de distribuição de renda no Brasil, o orçamento para o Bolsa Família em 2018 é de R$ 28,7 bilhões.

Ou seja: levando em conta apenas três penduricalhos salariais para servidores que já têm rendimentos que beiram ou ultrapassam os R$ 30 mil (e estão entre os 2% ou 3% mais ricos da população brasileira), a União e os Estados despendem um montante igual a 15% do maior programa social do governo, que atende quase 14 milhões de famílias miseráveis no país.

Essa distorção gritante entre poucos milhares que ganham muito e milhões de miseráveis e desempregados que dependem de transferências do governo para sobreviver deveria mobilizar candidatos ao Legislativo e ao Executivo em 2018. Defender uma revisão completa da política remuneratória no serviço público, visando erradicar toda forma de penduricalhos e pagamentos indevidos, deveria ser uma importante bandeira a ser levantada nos programas de governo.

Mas realizar uma reforma dessa magnitude é tarefa extremamente complexa. Não é nem um pouco trivial definir um sistema de remuneração que seja capaz de atrair bons quadros para o serviço público, coibir os incentivos à corrupção e ainda levar em conta a produtividade e o retorno para o cidadão. Em outras palavras, é necessário definir salários despidos de privilégios, mas também sem o sucateamento de outros tempos.

Para piorar a situação, não temos no horizonte nem um nome que demonstre ter força para implementar essa reforma contra a incrível resistência exercida por categorias tão poderosas. O caso mais provável é que essas medidas terão que ser tomadas a força, quando explodir a hecatombe fiscal que se avizinha.

A culpa da crise obviamente não é apenas dos servidores públicos. Afinal, junto com o R$ 1 bilhão anual do auxílio-moradia vieram centenas de bilhões em incentivos fiscais concedidos a grandes empresas nos últimos 20 anos. No entanto, na hora em que a crise chegar (e isso está bem próximo), vai sobrar para todos – mas principalmente para o contribuinte e o cidadão comum, que paga a conta desses privilégios e não tem retorno algum.

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