O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mais algumas reflexões sobre a crise https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/mais-algumas-reflexoes-sobre-a-crise/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/08/mais-algumas-reflexoes-sobre-a-crise/#respond Fri, 08 Jun 2018 05:00:31 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=406 Desfecho da greve dos caminhoneiros mostra como decisões tomadas sob pressão geram distorções e incentivos perversos. Mas nem tudo está perdido.

 

A convulsão nacional provocada pela greve dos caminhoneiros provocou uma ampla discussão sobre os impactos das medidas adotadas pelo governo após a pressão da categoria e do setor transportador. Seguem algumas breves reflexões sobre aspectos importantes que não podemos deixar passar batidos.

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A decisão do governo de reduzir a tributação sobre o óleo diesel para atender as reivindicações dos caminhoneiros também vai beneficiar 46.118 brasileiros que adquiriram automóveis de alto luxo (SUVs e jipes) em 2017. Diminuir a taxação sobre o segmento mais rico da população e seus objetos de desejo é apenas um dos efeitos indesejados quando se governa sob pressão de grupos de interesses.

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Não são apenas os caminhoneiros e as grandes transportadoras que ganharam com a redução do diesel: quanto maior o peso desse insumo na estrutura de custos do setor, maior o presente dado pelo governo. Às vésperas da comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente, o governo não apenas reduziu a tributação sobre um combustível não renovável e altamente poluente. Por tabela, a medida agradou dois dos setores que mais contribuem para a degradação ambiental no país: mineração e agropecuária.

O gráfico mostra os setores que mais dependem do óleo diesel em sua estrutura de custos.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, Sistema de Contas Nacionais 2015.

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A explicação de que a greve foi gestada pelo excesso de oferta de caminhões a juros subsidiados tornou-se quase consensual entre os analistas. E os dados do IBGE indicam que o percentual da riqueza do setor de transportes gerada por caminhoneiros autônomos ou informais vinha caindo ano a ano até 2015 (último dado disponível).

O gráfico mostra a participação de autônomos e trabalhadores informais no faturamento do setor de transporte terrestre.
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Por um lado, esses números podem ser sinal da queda do valor do frete derivada da alta concorrência no setor. Vistos por outro prisma, podem significar também um fortalecimento do poder das transportadoras, impulsionado inclusive pela desoneração da folha de pagamentos. É uma outra dimensão para o problema que merece ser pesquisada com mais profundidade.

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Nas duas últimas semanas não faltaram comparações entre o movimento dos caminhoneiros e as manifestações de junho de 2013. O assunto é complexo e merece um longo ensaio explorando suas diferenças e semelhanças. Por ora aqui vão apenas duas que considero fundamentais para entender o Brasil atual.

Junho de 2013 e maio de 2018 têm naturezas bastante distintas no que se refere à lógica da ação coletiva de Olson. Enquanto há cinco anos as ruas foram tomadas por um movimento difuso em termos dos manifestantes e suas reivindicações, as estradas foram bloqueadas nas semanas anteriores por um grupo muito bem definido, organizado e articulado, com um objetivo muito claro: reduzir a carga tributária incidente sobre o setor.

De igual, em ambos os casos o maior vencedor foi o setor de transportes. Há cinco anos, as empresas de ônibus se aproveitaram do pânico do governo para arrancar uma redução de impostos sob a promessa de garantir os tais R$ 0,20 nas passagens. Nas últimas semanas, a história se repetiu. E todas as categorias e grupos de interesses do Brasil aprenderam como vale a pena emparedar governos fracos.

O gráfico mostra a queda da carga tributária do setor de transporte de passageiros.
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Não devemos nos iludir a respeito da propagada espontaneidade do movimento dos caminhoneiros. Seu poder de organização vai muito além das redes sociais cultivadas desde os tempos do rádio amador. Apenas para ilustra, existem atualmente no Congresso Nacional três frentes parlamentares que defendem os interesses dos transportadores: a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Setor de Transporte Rodoviário de Cargas, a Frente Parlamentar Mista de Transporte e Logística (Translog) e a Frente Parlamentar Mista de Logística de Transportes e Armazenagem (Frenlog).

Juntas, essas bancadas de defesa do transporte de cargas congregam aproximadamente 350 deputados, praticamente três em cada cinco parlamentares. Desses, 78 estão vinculados às três frentes de apoio ao setor – ou seja, tendem a ser altamente engajados na causa. E para demonstrar como essa cadeia produtiva está bem articulada, desse grupo de deputados que está fechado com os rodoviários, 46 também participam da toda poderosa Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPA), a famosa bancada ruralista.

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Se me pedissem para indicar uma coisa boa de toda esta crise, ousaria dizer que foi destacar temas que normalmente não pautam a cobertura da imprensa ou as discussões nas redes sociais.

Expressões como “custos difusos e benefícios concentrados” e “rent seeking” foram frequentemente utilizadas como chaves interpretativas para o movimento dos caminhoneiros, suas reivindicações e conquistas. Da mesma forma, gerou-se um debate importante sobre nossa estrutura tributária e a incômoda pergunta: “quem vai pagar a conta”? E esse é um papo fundamental nestes 4 meses que nos separam das eleições.

O gráfico mostra o aumento de buscas no Google para termos como rent seeking, carga tributária, regressividade, etc.
Fonte: Elaboração própria a partir de resultados de buscas no Google Trends.

 

 

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]]> 0 Com ou sem nota, PJ? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/11/com-ou-sem-nota-pj/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/05/11/com-ou-sem-nota-pj/#respond Fri, 11 May 2018 05:00:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=355 Dados sobre pagamento de Imposto de Renda são um retrato de como o Brasil é uma máquina na criação de privilégios públicos e privados


Mas não se preocupe, meu amigo,
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente, quer dizer
A vida é muito pior

(“Apenas um rapaz latino americano” – Belchior)

Desde a semana passada uma tabela apareceu recorrentemente na “timeline” das minhas redes sociais, compartilhada tanto por amigos de direita quanto por esquerdistas. Tratava-se da compilação de um documento da Receita Federal contendo as quinze ocupações com maiores rendas médias anuais de acordo com a declaração de Imposto de Renda Pessoa Física de 2013.

Reproduzo abaixo o ranking, atualizando-o com os últimos dados disponíveis (2016) e expandindo a lista para as 20 categorias com maior rendimento:

O gráfico mostra o ranking das 20 categorias com maiores rendimentos médios segundo o IRPF.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

O principal motivo para a indignação que uniu os defensores do Estado Mínimo aos seus adversários que pregam contra a “casta judicial que condenou Lula sem provas” está no fato de que a lista acima é dominada por categorias do funcionalismo público.

Eles têm razão na revolta. Como já demonstrei aqui, sindicatos de algumas carreiras públicas vêm atacando com voracidade o Orçamento Público para assegurar rendimentos que são, na imensa maioria dos casos, muito superiores ao seu retorno para a sociedade.

O gráfico acima, portanto, é um retrato do processo de caça à renda (rent seeking) levado a cabo diuturnamente pela elite do funcionalismo público no Brasil. O problema é que ele só conta uma parte da história: uma outra elite, esta no setor privado, também se utiliza habilmente de mecanismos de concentração de renda para se dar bem.

Se o rent seeking dos servidores públicos consiste em ameaçar a cúpula dos Três Poderes para aprovar projetos de lei ou obter decisões judiciais concedendo-lhes aumentos salariais e toda sorte de penduricalhos, categorias do setor privado se valem do sistema tributário e da legislação trabalhista para pagar bem pouco imposto.

Falo aqui das incríveis vantagens da “pejotização”, principalmente quando combinada com os regimes tributários de lucro presumido e Simples e a isenção de Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos.

Bernard Appy, ex-Secretário de Política Econômica no governo Lula e atual diretor do Centro de Cidadania Fiscal, fez as contas numa entrevista aqui na Folha.  O mesmo profissional, prestando o mesmo serviço, contratado por R$ 30 mil brutos por mês, pode receber, líquidos, R$ 15.109 se for celetista, R$ 24.508 se constituir uma PJ tributada segundo o lucro presumido ou R$ 26.563 se for uma PJ enquadrada como Simples.

“Aqui há um problema distributivo claríssimo. É injustificável que duas pessoas que façam a mesma coisa, prestando exatamente o mesmo serviço, tenham uma diferença tão grande de tributação”, avalia Appy.

Para jogar um pouco de luz nesse “lado escuro da Lua” da tributação de pessoas físicas no Brasil, fui atrás dos dados e cheguei a algumas constatações. A primeira delas é que esse sistema deve realmente valer a pena, pois o número de pessoas que adere à pejotização, principalmente em categorias de maior qualificação profissional, cresce vertiginosamente nos últimos 10 anos.

O gráfico mostra o crescimento da pejotização em diversas categorias profissionais entre 2007 e 2016.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

O gráfico acima revela que, de duas, uma: ou o Brasil sofreu um surto empreendedor sem precedentes nos últimos anos, ou houve uma alteração significativa nos incentivos que levam as pessoas a se tornar PJs.

É verdade que muitas vezes a opção pela pejotização é uma imposição do empregador, que busca aliviar sua folha de pagamentos, acarretando inclusive a precarização do trabalho. Mas também é inegável que diversas categorias de maior qualificação têm pressionado o Legislativo em busca da extensão de hipóteses de adesão aos sistemas de lucro presumido e a possibilidade de opção pelo Simples nos últimos anos.

De acordo com dados de 2014 compilados num relatório da Comissão de Assuntos Econômicos que avaliou a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, só 3% das empresas brasileiras são tributadas com base no lucro real, sendo responsável por 80% da arrecadação do IRPJ. Os outros 97% são imunes, isentos ou optantes pelo Simples ou pelo regime de lucro presumido – razão pela qual respondem por apenas 20% do valor auferido pelo Fisco junto às empresas.

O problema dos regimes do Simples e do lucro presumido é que o ganho da empresa é arbitrado abaixo da realidade. Desse modo, o sócio ganha duplamente: sua empresa paga bem menos imposto, e ele pode distribuir o lucro excedente para si próprio, de forma totalmente isenta.

A característica notável desse sistema é que ele gera injustiça: profissionais semelhantes são tributados de modo muito díspare em função exclusivamente do regime contratual e tributário ao qual estão vinculados. O gráfico abaixo mostra justamente isso. Para cada categoria (localizada nos vértices do gráfico), os PJs (linha azul) pagam uma alíquota efetiva bem menor do que seus colegas que têm tributação na fonte (linha laranja).00

O gráfico mostra a diferença de tributação entre PJs e demais profissionais em diversas categorias.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

A consequência disso é a criação de um fosso dentro de cada categoria profissional: os rendimentos médios dos PJs são significativamente superiores aos dos seus colegas celetistas:

O gráfico mostra a diferença nos rendimentos médios entre PJs e demais profissionais em diversas categorias.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

Ao beneficiar com impostos menores justamente quem já se encontra no topo da pirâmide, a pejotização agrava a desigualdade de renda. Assim, se refizermos o ranking das 20 categorias com maiores rendimentos do Brasil levando em conta a pejotização, vamos verificar que jornalistas, médicos, engenheiros, executivos e advogados constituídos em PJs disputam os postos mais altos com a nata dos servidores públicos – com a diferença de que pagam significativamente menos imposto de renda.

O gráfico mostra novo ranking das categorias de maiores rendimentos segundo o IRPF, levando em conta a pejotização
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (Ano-Calendário 2016) – Receita Federal do Brasil.

A conclusão dessa história não deve servir para rebater críticas aos inúmeros privilégios do funcionalismo público brasileiro, os quais me beneficiam diretamente. Os números demonstram, na verdade, que do outro lado também há um sistema criado para beneficiar a elite privada.

E no meio dessas duas engrenagens concentradoras de renda, subsiste uma imensa massa de brasileiros que sustenta em suas costas um Estado inchado, mas sem ter acesso às brechas tributárias que jogam sobre si também a carga dos mais ricos.

 

 

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Deveríamos pagar mais imposto https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/04/24/deveriamos-pagar-mais-imposto/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/04/24/deveriamos-pagar-mais-imposto/#respond Tue, 24 Apr 2018 05:00:55 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=345 O sistema de deduções e isenções do imposto de renda de pessoas físicas amplia a desigualdade no Brasil

Não fui eu, nem Deus, não foi você, nem foi ninguém
Tudo o que se ganha nessa vida é pra perder
Tem que acontecer, tem que ser assim
Nada permanece inalterado até o fim

Se ninguém tem culpa não se tem condenação
Se o que ficou do grande amor é solidão
Se um vai perder, outro vai ganhar
É assim que eu vejo a vida, e ninguém vai mudar

 (“Tem que Acontecer”. Sérgio Sampaio)

 

Saiu na última piauí um dos melhores textos que li recentemente sobre a sociedade brasileira. Tomando como mote uma pichação que se espalhou pela Zona Sul do Rio, o cineasta João Moreira Salles faz uma análise melancólica sobre como recorrentemente nos eximimos da responsabilidade coletiva por sermos quem nos tornamos.

O “não fui eu” pintado nos muros e tapumes cariocas tem potencial para entrar no rol das expressões que nos representam, como a lei de Gérson, o “você sabe com quem está falando?”, de Roberto Damatta, ou “o país da meia-entrada“, de Marcos Lisboa e Zeina Latif. A frase não é mera declaração de inocência. Significa também tirar o corpo fora, atribuir ao outro (ou ao Estado ou aos políticos) a responsabilidade pelas nossas mazelas sociais, é não se sentir cúmplice das tragédias que nos rodeiam. Representa o desinteresse pelos problemas comuns – é, em última análise, a negação do sentido de coletividade e da própria política.

Na lógica do “não fui eu” todos nós, ditos cidadãos de bem, lavamos as mãos sobre o país desigual e extremamente violento em que vivemos. Jogamos a culpa nos políticos corruptos, ou no nosso passado escravocrata. Criticamos o governo por gastar mal, mas justificamos com convicção nossos próprios privilégios.

Não importa se coxinhas (“a culpa não é minha, eu votei no Aécio”), petralhas (“não reconheço governo golpista”) ou isentões, todos gritamos, de olhos fechados para a realidade que nos cerca: “não fui eu”.

Nesse último fim de semana eu fiz a minha declaração de imposto de renda. E ainda afetado pelo artigo, pensei no quanto de “não fui eu” deve ter sido proferido enquanto dezenas de milhões de pessoas juntavam documentos para acertar as suas contas com o leão. Afinal, quem paga tanto imposto não pode ser culpado por um Estado tão ineficiente e corrupto.

A maioria de nós, que nos autoproclamamos classe média (embora quem ganhe acima de R$ 5.700 por mês pertença aos 5% mais ricos da população), reclama dos altos impostos. E malandramente fingimos não saber que, para o país se tornar mais justo, deveríamos pagar muito mais.

O sistema tributário é uma das grandes máquinas de criação de desigualdade no Brasil. Nossa carga de impostos é de país desenvolvido (32% do PIB, contra a média de 34,3% na OCDE), mas nossa estrutura tributária é horrivelmente iníqua: taxamos muito o consumo e a massa salarial, e bem menos a renda e os lucros. O resultado disso é que penalizamos os assalariados e pobres (cuja maior parte da renda é gasta no consumo), enquanto aliviamos a barra dos mais ricos. Nos países desenvolvidos, ao contrário, o peso maior está na renda e nos lucros.

O gráfico mostra o perfil do sistema tributário brasileiro em comparação à média dos países da OCDE
Fonte: OECD. Revenue Statistics in Latin America and the Caribbean 2018.

Voltando à minha declaração do imposto de renda, uma inovação dos técnicos da Receita Federal oferece um bom retrato de como o “não fui eu” funciona no sistema tributário. Trata-se do cálculo da alíquota efetiva, a relação entre o imposto devido e os rendimentos tributáveis, que aparece no canto inferior esquerdo da tela da declaração.

Grosso modo, a alíquota efetiva calcula o quanto de imposto de renda pagamos sobre nossos rendimentos, descontadas as deduções. No meu caso específico, abatidas as despesas com a escola dos meus filhos, os gastos com plano de saúde e consultas médicas e mais a previdência oficial e complementar, a alíquota efetiva ficou em 16,68% – bem abaixo da alíquota máxima, que é de 27,5%.

Muitos dirão que isenções e deduções do imposto de renda são um mecanismo justo para um Estado que oferece tão pouco para os cidadãos. É aí que mora o pensamento do “não fui eu”.

Ao longo das últimas décadas, a chamada “classe média” brasileira passou a achar normal pagar duas ou três vezes pelos mesmos serviços. Pagamos um sistema de educação pública por meio de tributos, mas matriculamos nossos filhos em escolas particulares. E como essas ainda são insuficientes, recorremos a extras como reforço escolar, aula de inglês, esportes…

Na saúde acontece o mesmo. O SUS é ruim? Contratamos um plano de saúde. Mas quando o médico só atende pelo convênio daqui a dois meses, uma consulta particular garante vaga para o dia seguinte. Ou seja, pagamos três vezes pelo mesmo serviço devido a uma combinação de sistema público ineficiente com falhas na regulação e na fiscalização do setor privado.

Como solução, em vez de cobrar serviços públicos de melhor qualidade, exigimos do Estado compensações por termos de recorrer ao setor privado em razão de sua falência.

O gráfico mostra o percentual de deduções e isenções sobre o total de rendimentos dos contribuintes, por faixa de renda.
Receita Federal do Brasil Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas. Ano Calendário 2016.

O gráfico acima dá uma dimensão do quanto as classes mais altas são eficientes em aprovar leis que lhes concedam isenções e deduções para pagarem menos imposto de renda sobre pessoas físicas. A linha indica que, depois de atingir um mínimo de descontos na faixa de renda de 2 a 3 salários mínimos por mês, em geral quanto mais alta a renda, maior a sua proteção contra as mordidas do leão.

Especialmente neste ano de eleição onde a maioria de nós quer renovação e mudança, é chegada a hora de buscarmos um sistema tributário mais justo. Isso passa pelo combate à sonegação, pela redução drástica dos subsídios e incentivos fiscais, mas também por mais progressividade dos tributos.

Faz-se urgente, portanto, combater o “não fui eu” de nossa pseudo classe média que abate despesas de médicos, dentistas, fisioterapeutas e psicólogos do imposto de renda – benefício que atinge uns poucos milhares, enquanto a imensa maioria da população simplesmente não tem dinheiro para esses “luxos”. E o que dizer da educação privada: permitir a dedução de despesas com esses serviços não desequilibra o jogo em favor de quem já tem mais renda?

Deduções e isenções no imposto de renda são vantagens criadas para quem está no topo da pirâmide de renda, e acabam minando o princípio da progressividade, segundo o qual quem ganha mais deve pagar proporcionalmente mais impostos.

Permitir o desconto de tais despesas dos mais ricos representa, de duas uma: ou menos dinheiro para investir em serviços melhores para a população, em especial os mais pobres; ou mais tributos sobre o consumo e os salários, prejudicando justamente a camada de baixo da pirâmide de renda.

Na hora de fazer a sua declaração anual do IRPF, portanto, deixe de lado o “não fui eu” e admita que, pelo bem do país e de si próprio, você deveria pagar mais imposto.

 

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