O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Quem quer acabar com os privilégios? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/27/quem-quer-acabar-com-os-privilegios/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/27/quem-quer-acabar-com-os-privilegios/#respond Mon, 27 Aug 2018 05:00:03 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/urna_eletronica-320x213.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=461 Programas de governo dos principais presidenciáveis conta com o fim de privilégios para resolver problemas do déficit fiscal à reforma da previdência

“Saúde, educação e segurança” sempre foi um trinômio fácil de encontrar nas propagandas de políticos em tempos de eleição. Neste ano, podemos acrescentar mais um: a eliminação de privilégios aparece com destaque em todos os planos de governo dos candidatos à Presidência, embora não haja consenso sobre o que isso quer dizer e, pior ainda, como será feito.

Em boa parte das propostas, o tema aparece como saída para a crise fiscal do Estado. Nas propostas de Alckmin, Álvaro Dias, Ciro Gomes e Bolsonaro, o combate aos privilégios é visto como o caminho para um Estado mais eficiente e com orçamento equilibrado.

No plano de Henrique Meirelles, o fim dos privilégios deve ser a pedra de toque da reforma da previdência, igualando o regime dos servidores públicos ao INSS – embora o projeto encaminhado pelo candidato, enquanto ministro da Fazenda, tenha mantido a aposentadoria especial dos militares.

Na proposta de Lula/Haddad o foco está no Ministério Público e no Judiciário. Eliminar privilégios, no programa do PT, seria uma espécie de acerto de contas daqueles que se sentem perseguidos pelo sistema judicial.

Curiosamente, as concepções mais amplas do que seja combater privilégios vêm dos representantes dos partidos mais novos e, de certa forma, mais programáticos. Somente Boulos (Psol), Marina (Rede) e Amoêdo (Novo), cada um na sua posição no espectro ideológico, apresentam propostas para atacar o problema em suas três dimensões: políticos, a elite do funcionalismo público e o alto empresariado dependente de subsídios e benefícios fiscais.

O termo “privilégio” vem do latim privatus legium. Lei privada. No Brasil, sob o pretexto de conceder direitos, garantias e incentivos a categorias profissionais, setores econômicos e grupos sociais, criamos um emaranhado de normas especiais que fragilizam o preceito de que as leis devem ser gerais e abstratas.

Com o tempo, setores econômicos foram identificando no Estado uma fonte quase inesgotável de receitas. Obter acesso privilegiado ao poder tornou-se uma estratégia de negócios para grandes grupos econômicos (rent seeking). Com a justificativa de incentivar a economia nacional, transferimos renda para o topo da pirâmide por meio de regimes tributários especiais, crédito subsidiado em bancos públicos, subvenções e regulação favorável.

Em outra direção, em tempos de farinha pouca, a elite do funcionalismo público nos três Poderes tratou de garantir o seu pirão primeiro. Além de defender com unhas e dentes seu regime previdenciário especial, obtiveram toda sorte de penduricalhos salariais: auxílio-moradia, bônus de produtividade, honorários de sucumbência aumentam em alguns milhares de reais os rendimentos que já se encontram muito acima da média do setor privado.

Atacar os privilégios, portanto, é urgente na estratégia de superar a grave crise fiscal e nossa indecente desigualdade social. O grande problema é que poucas tarefas são mais difíceis do que extinguir benesses e monopólios. O poder de articulação e pressão desses grupos de interesses é imenso. Exemplos não faltam.

O projeto de lei sobre o cadastro positivo encontra-se estagnado no Congresso por força do lobby dos cartórios, que veem na troca de informações sobre o histórico creditício dos consumidores uma ameaça aos seus ganhos milionários. Devido à resistência de grupos de interesses, propostas recentes de reforma fiscal como a reoneração da folha de pagamentos, o fim dos regimes especiais do cinema e do audiovisual e a suspensão dos reajustes do funcionalismo público foram derrotadas no Congresso. Na direção oposta, o Centrão patrocinou, à custa de toda a sociedade, uma verdadeira farra na concessão de diversos Refis a devedores contumazes da Receita.

Diante desse cenário de “salve-se quem puder”, ver os principais candidatos à Presidência pregando o fim dos privilégios é um sinal de evolução. A grande questão é saber se algum deles está disposto a colocar o guiso no gato.

Texto originalmente publicado na versão impressa da Folha no dia 27/08/2018.

 

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Tem auxílio-moradia, mas tem também 60 dias de férias e recesso https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/23/tem-auxilio-moradia-mas-tem-tambem-60-dias-de-ferias-e-recesso/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/23/tem-auxilio-moradia-mas-tem-tambem-60-dias-de-ferias-e-recesso/#respond Fri, 23 Mar 2018 05:00:00 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=324 Já é chegada a hora de reduzirmos a distância entre os setores público e privado, e isso passa também pelo simbolismo das férias, recessos e licenças

No ano dois mil e um
Se juntar algum
Eu peço uma licença
E a dançarina, enfim
Já me jurou
Que faz o show
Pra mim

Ela é dançarina
Eu sou funcionário
Quando eu não salário
Ela, sim, propina

(Ela é Dançarina, Chico Buarque)

A surpreendente decisão do Supremo Tribunal Federal de conceder liminar para impedir uma eventual prisão de Lula até a próxima sessão da Corte, agendada para 04/04/2018, expõe um outro aspecto do sistema de privilégios e regalias do setor público brasileiro.

O julgamento foi suspenso em função do “adiantado da hora” da sessão de ontem, bem como dos feriados da Semana Santa – que para o Judiciário começam na quarta-feira.

De acordo com o relatório Justiça em Números, havia 79.662.896 processos pendentes de decisão definitiva na Justiça brasileira no final de 2016. A despeito de todos os problemas estruturais de nosso sistema judicial (insegurança jurídica, excesso de recursos, burocracia sufocante), é difícil fechar os olhos para as generosas folgas concedidas aos juízes a cada ano.

De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a famosa Loman, juízes de todo o país têm direito a 60 dias de férias anuais. Além disso, uma lei de 1966 também estabelece um recesso judiciário que vai de 20/12 a 06/01 de cada ano, mais a quarta e a quinta-feira da Semana Santa e as datas comemorativas de 11/08 (Dia do Advogado), 01/11 (Dia de Todos os Santos) e 08/12 (Dia da Justiça) – além dos demais feriados nacionais, obviamente.

Não estamos aqui desmerecendo a responsabilidade e a elevada carga de trabalho dos juízes brasileiros – segundo o levantamento do Conselho Nacional de Justiça, cada magistrado tem em média sob sua guarda 6.696 processos pendentes. A questão é que não faz sentido esperar que a pilha de processos diminua enquanto os membros do Poder Judiciário trabalharem, a cada ano, pelo menos 50 dias a menos do que os demais trabalhadores brasileiros.

Essa distorção com o setor privado, entretanto, não é exclusividade do Poder Judiciário. A Constituição Federal estabelece o recesso das atividades do Legislativo nos períodos de 18 a 31 de julho e de 23/12 a 1º de fevereiro do ano seguinte e o Tribunal de Contas da União também “fecha as portas” de 17 de dezembro a 16 de janeiro.

No campo dos servidores públicos da União, a Lei nº 8.112/1990 também é pródiga no tratamento diferenciado para a categoria. Afinal, não há justificativa para o trabalhador do setor público ter direito a 8 dias de faltas em função de seu casamento ou do falecimento de cônjuge, pais, filhos ou irmãos, enquanto no setor privado os benefícios são de apenas 3 dias para casamento e 2 no caso de falecimento de membros da família.

No caso das licenças maternidade e paternidade, enquanto o Poder Executivo estendeu a sua vigência quase automaticamente para mães (por 60 dias) e pais (15 dias a mais) que são servidores públicos, no setor privado exige-se que a empresa adira a um regime tributário especial, o Programa Empresa Cidadã – com resultados bastante tímidos.

Ainda no campo das licenças e afastamentos, a Lei nº 8.112/1990 também assegura licença remunerada para os servidores que decidirem se candidatar – no período entre o registro da candidatura e o décimo dia posterior à eleição – e a possibilidade, sujeita a aprovação da chefia superior, de uma licença de até três meses a cada 5 anos para o servidor se capacitar.

Como podemos ver, a decisão do Supremo de suspender um julgamento crucial para o futuro imediato do país para que os Ministros gozem o feriadão de Páscoa escancara um sistema de privilégios que vai muito além da questão do teto salarial e dos seus penduricalhos.

Enquanto reduzir as distorções salariais e de regime previdenciário entre trabalhadores dos setores público e privado se faz urgente diante do colapso fiscal que se aproxima, eliminar tratamentos diferenciados como os regimes de férias e licenças tem um valor simbólico muito grande num país em que há tanta descrença no Estado e nas instituições.

A propósito, nunca é demais recordar: por quanto tempo ainda teremos que esperar pelo julgamento do auxílio-moradia?

 

Post anterior: “O sistema é foda”

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Os cartórios e o preço da fé pública no Brasil https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/13/os-cartorios-e-o-preco-da-fe-publica-no-brasil/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/10/13/os-cartorios-e-o-preco-da-fe-publica-no-brasil/#respond Fri, 13 Oct 2017 06:00:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=197 Cartórios são um bom exemplo de como o Estado brasileiro é arcaico e transfere renda da maioria para beneficiar a si mesmo e a uma minoria de privilegiados

Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
“Samba da Benção” (Baden Powell e Vinicius de Morais)

 

Numa coluna escrita para a Folha há exatos 13 anos, Janio de Freitas contou que o escritor Fernando Sabino, recém casado com a filha do governador mineiro Benedito Valadares, recebeu um presente insólito do sogro: a titularidade de um cartório no Rio de Janeiro. Findo o casamento, o autor de “O Encontro Marcado” devolveu o cartório ao sogro, por entender que lhe fora dado não por seus méritos, mas para garantir o sustento e bem-estar da filha do governador, já que ela havia se casado com um reles aspirante a escritor em início de carreira.

Passado o tempo, o Brasil evoluiu. A Constituição de 1988 estabeleceu que os serviços notariais e de registros não podem mais ser distribuídos aos amigos e parentes do rei, mas concedidos mediante concursos públicos de provas e títulos. Na essência, porém, continuam sendo um mecanismo burocrático de transferir renda da maioria dos cidadãos para uma minoria de privilegiados – sem falar que o Estado é um sócio nesse processo. É por esse motivo que eu escolhi começar minha série de textos sobre os privilégios estatais brasileiros com os serviços notariais e de registro.

O Estado brasileiro é cartorial. A partir de nossa herança portuguesa, construímos ao longo dos séculos uma complexa estrutura para “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, tal qual estabelece a lei.

Em determinado momento da nossa história (algum historiador do direito pode esclarecer quando?) atribuímos para agentes privados as atividades de registrar e atestar a veracidade dos fatos mais importantes de nossa vida civil (nascimento, casamento e morte) e negocial (contratos, procurações, dívidas, aquisição de imóveis, criação de empresas).

No imaginário popular, cartórios são vistos como minas de ouro. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, muitos deles são mesmo. O 9º Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro faturou R$ 40 milhões num único semestre. Mesmo se considerarmos que boa parte dessa arrecadação é transferida ao Estado e outro tanto é utilizado no pagamento de funcionários e na manutenção do cartório, é inegável que o detentor desse serviço público encontra-se nos extratos mais altos da distribuição de renda no Brasil – aquele 0,1% de nossa pirâmide de distribuição de renda.

E ele não está só. No gráfico abaixo eu plotei o desempenho de todos os cartórios brasileiros que arrecadaram mais de R$ 500 mil no último semestre informado ao CNJ. Se você tiver interesse em verificar a situação dos notários e registradores na sua cidade, basta selecionar o município no topo do gráfico.

 

Tomando como base apenas os 611 cartórios dispostos no gráfico acima, os brasileiros transferem para o Estado e os “donos dos cartórios” mais de R$ 2 bilhões a cada semestre. R$ 4 bilhões por ano. Considerando os demais registros de menor arrecadação, o valor passa facilmente dos R$ 5 bilhões anuais! Esse é o custo da fé pública no Brasil.

Essa massa considerável de dinheiro é transferida de todos os brasileiros para o Estado e para poucos milhares de agentes privados encarregados de prestar um serviço que, embora importante, poderia ser drasticamente reduzido, principalmente diante do avanço tecnológico das últimas décadas.

Uma das formas, portanto, de interromper a cadeia de transmissão de renda para os detentores desse serviço público seria limitar seus ganhos, após descontadas as taxas estatais e de suas despesas operacionais, ao teto da remuneração do serviço público. Com essa medida, cartórios deixariam de ser vistos como minas de ouro. Existem projetos dessa natureza em tramitação no Congresso, mas você pode imaginar a resistência dos titulares dos cartórios…

Mas uma reforma do sistema de ateste da autenticidade de documentos que realmente visasse a coletividade poderia ir muito além. Muitas das atividades desempenhadas hoje pelos notários poderiam muito bem ser exercidas pelo próprio Estado, sem a intermediação de terceiros – como acontece em vários países. Nascimentos, casamentos e mortes poderiam ser registrados num sistema informatizado nacional pelas prefeituras, assim como a propriedade dos imóveis – o que, aliás, faz bastante sentido, pois é o município que se encarrega de definir o zoneamento urbano e o plano diretor. Da mesma forma, a criação de empresas poderia ficar a cargo da Receita – que já emite o CNPJ – e a cobrança de dívidas nem precisaria ser desempenhada pelo Estado, sendo desempenhada pelos sistemas de proteção ao crédito.

Outra questão é a burocratização da vida privada no país. Muitos dos atos que hoje devem ser levados a cartório poderiam ter essas exigência extinta, reduzindo os custos para se fazer negócios por aqui. Não faz muito sentido, por exemplo, que a compra de um imóvel necessite tramitar num cartório de notas e num registro de imóveis para ser concretizada, dobrando o pagamento de emolumentos e taxas. Isso sem falar na emissão de certidões, autenticações e reconhecimentos de firmas. Além da despesa financeira, temos o custo do tempo despendido para atestarmos a verdade. Não é à toa que criamos a figura do despachante.

Embora eu reconheça ser praticamente impossível no curto prazo que surja um governante capaz de levar a cabo medidas que reformulem de forma drástica o sistema cartorial brasileiro para reduzir significativamente esses custos de transação, deveríamos pelo menos exigir uma melhor regulação dessa atividade. O CNJ deveria capitanear os Tribunais de Justiça para definirem critérios uniformes de estrutura de atendimento em todo o país, como metragem mínima para os estabelecimentos, horário de funcionamento (existem cartórios que fecham para almoço até hoje!), informatização, número mínimo de funcionários, etc. Também é fundamental estender o sistema concorrencial para os cartórios: não é possível que registros de imóveis e de pessoas naturais sejam realizados de acordo com a região geográfica; se os cartórios tiverem que competir pelos clientes, o atendimento certamente melhorará.

E o que é fundamental: em pleno século XXI, os sistemas precisam estar interligados para a realização de consultas amplas em nível nacional, propiciando identificar, a baixo custo, a real situação pessoal e patrimonial das pessoas com quem se negocia, para não falar de devedores, sonegadores, corruptos e outros criminosos.

Como não acredito que governante ou Congresso algum terá a coragem de enfrentar o lobby dos cartórios, minhas esperanças estão depositadas na tecnologia. Espero que num futuro breve o desenvolvimento tecnológico extermine esse legado colonial assim como os aplicativos de transporte estão fazendo com os táxis. De certificações digitais ao blockchain, as tecnologias disruptivas poderão romper essas estruturas arcaicas que, sob a justificativa de proteger a fé pública dos documentos, acabam transferindo bilhões de reais da população em geral para o Estado e os donos dessas verdadeiras minas de ouro.

PS: Meus agradecimentos ao prof. Brunello Stancioli (Faculdade de Direito da UFMG) pela lembrança da deliciosa história do Fernando Sabino.

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