O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Fim da série? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/04/02/fim-da-serie/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/04/02/fim-da-serie/#respond Mon, 02 Apr 2018 05:00:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=326 Na semana em que se cumpre a profecia de Sérgio Machado e Romero Jucá, o Supremo mostra como o Mecanismo é mesmo implacável no Brasil.

“O Michel forma um governo de união nacional, faz um grande acordo, protege o Lula, protege todo mundo. [Assim] esse país volta à calma; ninguém aguenta mais”.
(Sérgio Machado, na mesma gravação em que trocou ideias com Romero Jucá sobre “o grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”)

Como no samba de João Bosco e Aldir Blanc, a série O Mecanismo acabou no melhor pedaço. Concentrada na formação da Força Tarefa da Operação Lava Jato e na caçada a Alberto Youssef e a Paulo Roberto Costa, a primeira temporada fechou com o cerco ao cartel de empreiteiras que lesava a Petrobrás em tenebrosas transações.

Noves fora os graves erros de atribuir a Lula a frase sobre “estancar a sangria” e de não deixar claro que o esquema do Banestado se desenrolou na era FHC, o fio condutor da série é bem condizente com a descoberta do maior escândalo de corrupção do país.

No último episódio (atenção para o spoiler!) Ruffo revela o funcionamento do mecanismo. Trata-se de uma simplificação da teoria de Daron Acemoglu e James Robinson no livro Por que as Nações Fracassam: grandes grupos econômicos se aliam à elite política para desviar recursos públicos e, assim, concentrarem mais renda e mais poder em suas mãos e contas na Suíça.

Ruffo está certo: no Brasil, sempre foi assim. Tome os grandes escândalos de corrupção da Nova República – caso PC Farias, Anões do Orçamento, Banestado, privatizações, Satiagraha, Castelo de Areia, Mensalão, Petrolão – e veja que o modus operandi é basicamente o mesmo.

Muitas vezes até os personagens se mantêm. Se você tiver o trabalho de ler o relatório das CPMIs que investigaram Collor e PC Farias ou a gangue de políticos de baixa estatura que desviava recursos do Orçamento, encontrará envolvidos na lama, desde aquela época: Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, Geddel Vieira Lima, Edson Lobão, Eduardo Cunha…

Como o sistema se perpetua no tempo, filhos sucedem os pais na mesma forma de jogar. Na política isso acontece desde os tempos dos coronéis. Do lado de quem corrompe, a linhagem é tecida de Norberto para Emílio e depois Marcelo. Cláudio Melo era o lobista da Odebrecht na época de PC Farias. 30 anos depois, quem acompanhou o patrão na reunião com Temer e Padilha no Palácio do Jaburu para selar a doação de R$ 10 milhões para a campanha de 2014 também foi Cláudio Melo, mas o filho.

A operação também é praticamente a mesma: doleiros, contas no exterior, tráfico de influência, propinas travestidas de doações de campanha, empresas de fachada, laranjas, malas de dinheiro.

A primeira leva de episódios produzidos por José Padilha termina no ponto em que começam a se descortinar as engrenagens do sistema político brasileiro. Ao que tudo indica, a segunda temporada vai mostrar como dinheiro lícito e ilícito de empresários abastece campanhas eleitorais, ajudando a eleger políticos que retribuem o apoio com licitações fraudulentas, dinheiro barato de bancos oficiais e outras benesses.

Um dos indicadores de como esse sistema funciona – pelo menos na sua roupagem oficial – está no gráfico abaixo. Nele eu comparo a participação dos principais setores econômicos no PIB com o peso que tiveram nas doações de campanha em 2014:

O gráfico mostra a participação dos setores econômicos no PIB e no financiamento eleitoral em 2014.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do TSE e do IBGE.

Confrontando o tamanho das barrinhas, é possível perceber que alguns setores doaram para as campanhas eleitorais proporcionalmente muito mais dinheiro do que a sua importância econômica poderia justificar. Construção civil, alimentos e bebidas, bancos, siderúrgicas e mineradoras investem pesado nos políticos porque esperam retorno financeiro na forma de obras públicas, crédito subsidiado do BNDES, benefícios tributários, Refis, regulação branda, proteção contra a concorrência estrangeira.

Não é à toa que líderes desses setores têm frequentado as páginas policiais no lastro das investigações da Lava Jato, Zelotes, Greenfield. A classe política atual chegou e se manteve no poder turbinada com os milhões doados por esses setores.

Se for seguir essa trilha das relações entre as elites econômica e política que ficaram claras até aqui nas investigações da Operação Lava Jato, O Mecanismo repetirá a fórmula de sucesso de Tropa de Elite, em que a continuação é muito superior ao primeiro filme justamente porque expôs as vísceras do sistema político. Polêmicas muito maiores certamente virão.

Fico preocupado em saber, no entanto, é se teremos uma terceira temporada do seriado. Afinal de contas, nesta semana estaremos próximos de ver realizada a profecia de Sérgio Machado e de Romero Jucá – aquela do “grande acordo nacional, com o Supremo e com tudo”. Se colocar fim à possibilidade em prisão após decisão judicial em segunda instância, o STF praticamente jogará uma pá de cal sobre a Operação Lava Jato.

É só olhar a evolução dos fatos em perspectiva. No início, tivemos uma liquidação de penas e multas para os altos executivos e empresas envolvidas no escândalo que firmaram acordos de leniência e de delação premiada. Livrou-se, assim, os agentes econômicos que praticaram corrupção ativa.

De uns tempos para cá, com a concessão de habeas corpus generosos, recursos intermináveis, indultos natalinos, prisões domiciliares para tratamento de saúde e, para completar, o fim das prisões em segunda instância, o Supremo tem se encarregado de livrar de punições severas também a elite política que se deixou corromper. O mecanismo é implacável, meus caros.

“E o que a gente faz com isso?”, pergunta desolada a esposa do protagonista da série ao ficar sabendo como funcionam os fractais da corrupção brasileira.

Ruffo não deu a resposta, mas para mim é muito claro que temos que pressionar por mudanças institucionais que façam o mecanismo girar ao contrário, passando do modo “concentração de renda e poder” para o estágio “mais igualdade e democracia”.

De um lado, precisamos de um sistema eleitoral menos dependente de dinheiro, adotando o sistema distrital misto, cláusulas de barreiras mais severas, o fim das coligações em eleições para o parlamento e limites ao financiamento de campanha.

Para atingir o outro lado do mecanismo, temos que fechar as torneiras do dinheiro público para as grandes empresas, com o fim de subvenções, regimes tributários especiais, crédito subsidiado e programas de refinanciamento de dívidas fiscais (Refis).

Na articulação entre as engrenagens política e econômica, são necessários aprimoramentos institucionais no relacionamento entre empresas e os Três Poderes da República, atacando as moedas de trocas à disposição deles: redução dos cargos em comissão, privatização de muitas estatais, regras orçamentárias mais transparentes, fim de medidas provisórias e regulação do lobby, reforma do sistema recursal e de regras de prescrição, limitação drástica do foro privilegiado, entre outras medidas.

Sem reformas concretas que ataquem o modo de funcionamento desse sistema, continuaremos nesse roteiro arrastado do combate à corrupção no país – em que foros privilegiados, embargos, indultos e habeas corpus concedidos pelo Judiciário farão o mocinho sempre levar a pior no final.

 

Post anterior: O feriadão do Supremo

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Flechada no próprio pé: uma pequena análise econômica das delações premiadas https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/07/flechada-no-proprio-pe-uma-pequena-analise-economica-das-delacoes-premiadas/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/07/flechada-no-proprio-pe-uma-pequena-analise-economica-das-delacoes-premiadas/#respond Thu, 07 Sep 2017 05:00:57 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=152 O vazamento do áudio de Joesley Batista e a intenção de Rodrigo Janot e de ministros do Supremo de invalidar o acordo com a JBS dizem muito sobre o uso ineficiente das delações premiadas na Lava Jato

De tanto levar frechada do seu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Tauba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

“Tiro ao Álvaro” (Adoniran Barbosa)

Sempre a meta de uma seta no alvo
mas o alvo na certa não te espera
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada
Quando se parte rumo ao nada.

“A Seta e o Alvo” (Nilo Romero e Paulinho Moska)

 

“Enquanto houver bambu, lá vai flecha. Até o dia 17 de setembro, a caneta está na minha mão”. Rodrigo Janot era só auto-confiança no dia 1º de julho, quando foi a estrela maior do 12º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Entrevistado por Renata Lo Prete, o Procurador-Geral da República estava leve e fazia brincadeiras em várias perguntas, conforme destacou a reportagem da Folha.

Ao ser questionado sobre o suposto excesso de benefícios dos acordos de delação e leniência firmados com os executivos do grupo J&F, a holding que controla a JBS, Janot foi peremptório: “Se você me perguntar se eu faria de novo, hoje afirmo tranquilamente que faria.”

Dois meses depois, os procuradores ouviram um novo áudio de Joesley e seu braço-direito Ricardo Saud. No meio da gravação, entre uma dose e outra de whisky, comentários impublicáveis sobre mulheres e ministros do STF e a revelação de que um dos principais auxiliares de Janot tinha feito jogo duplo durante as negociações do polêmico acordo de colaboração premiada. A poucos dias do final do seu mandato, a caneta continua na mão de Janot. Mas agora ele considera rever o acordo.

A reviravolta no caso JBS revela muito sobre a falta de critério na utilização do instrumento mais poderoso no combate à corrupção e ao crime organizado já introduzido no arcabouço jurídico brasileiro.

Comum em outras jurisdições, a concessão de vantagens para criminosos que colaborem com a Justiça é uma prática relativamente recente no Brasil. Surgiu com a Lei nº 10.149/2000, que criou o programa de leniência no âmbito do combate a cartéis – posteriormente aprimorado com a Lei nº 12.529/2011, que reestruturou o CADE. Mais de uma década depois, e no calor das manifestações de junho de 2013, o Congresso aprovou a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e uma legislação contra as organizações criminosas (Lei nº 12.850/2013).

Todas essas normas contêm incentivos como redução ou eliminação de penas para pessoas físicas e jurídicas que colaborem com as investigações no âmbito do combate a cartéis, à corrupção e ao crime organizado, respectivamente. E, como tudo em economia, se os incentivos não forem colocados de maneira apropriada, o resultado pode ser bem ruim – por melhores que sejam as intenções.

A seguir, reapresento algumas considerações sobre a lógica econômica dos acordos de colaboração premiada – e como ela vem sendo desvirtuada pelo Ministério Público por uma visão de curto prazo na Operação Lava Jato, que pode inclusive comprometer o desestímulo à corrupção no futuro.

Ao negociar com os donos e principais executivos da JBS, a equipe de Janot fez uma aposta ambiciosa: em troca das informações do maior doador de campanhas de 2014, ela não apresentaria denúncia contra os crimes cometidos pelo grupo goiano e aplicaria multas num patamar bem inferior aos benefícios recebidos com a corrupção.

De acordo com o art. 4º da Lei nº 12.850/2013, o benefício do não oferecimento da denúncia está sujeito a duas condições: que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e que seja o primeiro a propor o acordo. No caso da JBS, o atendimento a esses requisitos não está nem um pouco claro.

Em primeiro lugar, com base em que podemos afirmar que Joesley Batista e companhia não eram os líderes de uma organização criminosa que montou um super esquema de compra de apoio político para obter benefícios estatais variados, de fiscalização sanitária frouxa a empréstimos bilionários subsidiados pelo BNDES?

Da mesma forma, em que sentido os executivos da JBS foram os primeiros a contribuir no caso em análise na Procuradoria-Geral da República? A Lava Jato já teve dezenas de acordos firmados, com doleiros, executivos da Petrobrás, empreiteiros e alguns políticos. Sendo assim, esse pioneirismo exigido pela lei não parece ter sido atendido.

Essa falta de critérios quanto à concessão dos benefícios dos acordos de colaboração premiada tem sido recorrente ao longo de toda a Operação Lava Jato – e, por causa dela, a Operação Lava Jato pode se tornar apenas um evento episódico, e não um ponto de inflexão na prevenção a desvios de recursos públicos no Brasil.

Nos países mais rigorosos, a regra é conceder os benefícios apenas àqueles chegarem primeiro com um proposta de delatar para as autoridades. Essa regra constitui um importante pilar no combate à corrupção e outros delitos, pois ela busca desestabilizar a estrutura da organização criminosa. Ao prever que “o vencedor leva tudo”, a lei cria um ambiente de insegurança entre os criminosos, estimulando que algum deles traia seus comparsas em busca dos benefícios máximos da lei. Teoria dos jogos na veia, né?

No caso da Operação Lava Jato essa regra foi afastada. A Força Tarefa em Curitiba optou por ir puxando a extensa e bem entrelaçada teia de relacionamentos entre grandes grupos econômicos e a elite política brasileira propondo o abrandamento das punições à medida que os personagens foram aparecendo: primeiro no núcleo entre Alberto Yousseff e os diretores e gerentes da Petrobrás (Paulo Roberto Costa, Pedro Barusco, Nestor Cerveró, etc.), passando por operadores financeiros do esquema, depois envolvendo as empreiteiras e assim por diante.

É fato que essa estratégia teve o mérito de expandir as investigações e revelar ao país como nosso sistema político está carcomido, mas ela certamente tem importantes efeitos colaterais.

Em primeiro lugar, não é certo que todos os acordos de delação cumprem a exigência legal de trazer contribuições substantivas para as investigações a ponto de justificarem seus generosos benefícios. Tome-se o caso da Odebrecht: a partir do momento em que a Polícia Federal e as agências americana e suíça descobriram o tal Departamento de Operações Estruturadas da empreiteira, obtendo o sistema de contabilidade das propinas, restou muito pouco a ser esclarecido. Sob esse aspecto, as penas aos executivos e as multas impostas ao grupo econômico poderiam ser bem mais pesadas, até mesmo para cumprirem seu caráter pedagógico.

Além disso, diante das significativas reduções de penas e multas para mais de uma centena de agentes envolvidos diretamente com corrupção bilionária, não é difícil perceber à nossa volta o sentimento de que o crime compensa no Brasil. Afinal, dezenas desses personagens passaram períodos relativamente curtos na prisão e agora desfrutam de boa parte do patrimônio obtido com os crimes praticados. Veja que incentivo a Lava Jato está, paradoxalmente, dando para os corruptores de amanhã!

E há um fator adicional: ao sinalizar com substantivas reduções de penas e multas para executivos e empresários que apresentarem indícios de compra de favores, a Operação coloca praticamente toda a responsabilidade pela corrupção nos políticos, quando na verdade esse é um crime que tem oferta e demanda. Nesse sentido, a Lava Jato faria um grande favor ao país se aplicasse multas tão elevadas a ponto de que seus controladores fossem forçados a vender seus ativos para outros investidores, conseguindo inclusive manter as unidades produtivas e os empregos. Se os controladores da JBS, Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez e demais fossem forçados a abrir mão de suas empresas em troca de sua liberdade, teríamos um sinal claro de que o crime não compensa.

Imagino que, a essa altura dos fatos, Rodrigo Janot não tenha mais tanta convicção de que faria tudo de novo com relação à JBS. Sua caneta deve estar pesando para propor ao STF a revisão do acordo firmado. Eu não sei como a História vai avaliar a Operação Lava Jato, mas eu temo que o excesso de benevolência para com os grandes grupos econômicos não terá contribuído para romper a cultura de corrupção que impregna as relações entre o público e o privado no país.

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O “grande acordo nacional” passa pela reforma política https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/#respond Fri, 07 Jul 2017 02:11:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=81 A esta altura do campeonato já está claro que a “Operação Machado-Jucá” encontra-se em curso acelerado. Para quem não se lembra, trata-se do diálogo entre o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o senador Romero Jucá para fazer “um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, porque “aí parava tudo”, “delimitava onde está, pronto”.

Nas últimas semanas, tivemos a absolvição da chapa Dilma-Temer por “excesso de provas”, a Segunda Turma do STF concedendo habeas corpus para libertar várias figuras sob prisão preventiva (Genu, Bumlai, Eike Batista, José Dirceu), a indicação ultra-rápida de uma nova Procuradora-Geral da República que não é alinhada com o atual chefe do MP (e, por tabela, da Lava Jato) Rodrigo Janot, a sucessão de decisões do Supremo e do Senado aliviando a barra de Aécio Neves e sua família, a decisão da Polícia Federal de encerrar as atividades da sua força-tarefa na Lava Jato em Curitiba…

O processo está tão engrenado que nem a peça central do plano Machado-Jucá parece tão imprescindível assim, uma vez que crescem as movimentações para que Rodrigo Maia, o Botafogo, substitua Michel Temer, que se mostra menor a cada dia.

Nesse cenário, a aprovação de uma nova reforma política se prestaria a garantir que tudo continue como dantes no quartel de Abrantes.

No último post deste blog defendi que a proposta de criação do “distritão” e de um fundo de R$ 3,5 bilhões para financiar as campanhas eleitorais é uma estratégia de sobrevivência dos políticos enrolados com a Operação Lava Jato.

A lógica é simples: como os partidos receberão uma bolada de recursos públicos para gastar nas eleições e os caciques regionais continuarão tendo liberdade para distribuir o dinheiro entre os candidatos, é muito provável que os maiores beneficiados sejam eles mesmos. Com isso, aumentam suas chances de reeleição e, assim, permanecem com todas as regalias, proteções e, o que é mais importante, o foro privilegiado – pois do jeito que as coisas vão ele não será extinto nunca.

Para ilustrar meu raciocínio, fiz um gráfico mostrando como os partidos distribuíram seus recursos de forma extremamente desigual entre os candidatos de cada Estado nas eleições de 2014, com um detalhe importante: destaquei os deputados federais envolvidos na Lava Jato, segundo levantamento feito pela Folha.

No gráfico acima as bolinhas representam, em cada Estado, o valor repassado pelos partidos políticos a seus candidatos. Vê-se que há uma disparidade imensa, com alguns poucos privilegiados recebendo valores extraordinários – Benito Gama (PTB/BA) é o campeão, com quase R$ 6 milhões – e a maioria recebendo muito pouco, ou nada.

Em amarelo estão destacados os deputados federais investigados na Lava Jato por receber propinas ou dinheiro de caixa dois. Como pode ser visto, a maioria deles figura entre os principais beneficiários na partilha de recursos arrecadados pelos partidos.

Se você tiver a curiosidade de analisar a situação por partido (selecionando na caixa no topo do gráfico), vai ver que muitos dos artífices do “grande acordo nacional” estão nesse grupo: Eduardo Cunha (o pai do impeachment), o próprio Rodrigo Maia, Rodrigo Rocha Loures (o da mala de dinheiro, à época um dos braços direitos de Temer), Paulinho da Força, Bruno Araújo (PSDB/PE, ministro das Cidades, o homem do “sim” decisivo no impeachment), além de figuras proeminentes da oposição que estão se prestando a esse papel, como Vicente Cândido (PT/SP, relator da reforma política) e Carlos Zarattini (PT/SP).

Todos eles investigados.

Todos eles de olho na bolada de recursos públicos que será destinada aos partidos caso a reforma política seja aprovada.

Todos eles buscando a reeleição e a manutenção do foro privilegiado.

Todos eles personagens-chave no “grande acordo nacional” para barrar a Lava Jato.

Essa é a reforma política do projeto Machado-Jucá. “Pra parar tudo”. Pra “estancar a sangria”. “Pra chegar do outro lado da margem”.

Caro(a) leitor(a), não se perca no noticiário frenético da política. Não desperdice seu ímpeto cívico atacando petralhas ou coxinhas. Preste atenção na reforma política – o diabo mora nos detalhes.

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Distritão e dinheirama: a “reforma política” dos políticos da Lava Jato https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/29/distritao-e-dinheirama-a-reforma-politica-dos-politicos-da-lava-jato/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/29/distritao-e-dinheirama-a-reforma-politica-dos-politicos-da-lava-jato/#respond Thu, 29 Jun 2017 06:00:56 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=59 Proposta de reforma política quer destinar R$ 3,5 bilhões para partidos e criar sistema eleitoral que prejudicará a governabilidade e beneficiará caciques políticos envolvidos com a Operação Lava Jato

“Money don’t get everything it’s true
What it don’t get, I can’t use
Now give me money
That’s what I want”

[Money (that’s what I want) – J. Bradford/B. Gordy Jr.]

Money (That’s what I want) foi composta em 1959 e, na voz de Barrett Strong, tornou-se o primeiro sucesso da gravadora Motown. O hit atravessou o Atlântico e, em 1º de janeiro de 1962, foi uma das canções que John, Paul, George e Pete Best (Ringo só veio depois) submeteram aos executivos da gravadora Decca na tentativa de assinar um contrato. Mas os homens da Decca disseram que os Beatles não tinham futuro porque as bandas de guitarras em breve sairiam de moda. #sqn.

Tentando se redimir de um dos maiores erros da história do show business, no ano seguinte a Decca assinou com os Rolling Stones. E advinha qual foi uma das primeiras gravações de Mick Jagger, Keith Richards e cia? Money! Yeah, that was what all of them wanted!

Ao analisar a atual proposta de reforma política, podemos dizer que dinheiro também é tudo o que os nossos parlamentares querem. Ainda não refeitos do baque da proibição das doações de empresas pelo Supremo Tribunal Federal, deputados e senadores querem a todo custo saciar sua fome de recursos para as campanhas eleitorais.

Conforme relato da Folha, esse assunto foi o prato principal de um jantar oferecido pelo Ministro Gilmar Mendes (STF) a Michel Temer, Rodrigo Maia (DEM/RJ, presidente da Câmara), Eunício Oliveira (PMDB/CE, presidente do Senado), Aécio Neves (PSDB/MG) e um seleto grupo de comensais em março passado. A ideia, àquela altura, era instituir o financiamento público de campanhas, combinado com um sistema de eleição por lista fechada para deputados federais, estaduais e vereadores.

A proposta de Gilmar Mendes foi encampada pelo relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT/SP) [veja aqui o seu terceiro relatório]. Para quem não está por dentro, funcionaria assim: partido definiria em convenção uma lista de candidatos classificados por ordem de preferência. No dia da eleição, nós votaríamos num partido, e não mais num candidato específico. Após a contagem de votos, seria definido o número de cadeiras a que cada legenda teria direito e elas seriam ocupadas pelos candidatos designados na lista do partido. Só para ficar claro, se o hipotético partido PQP recebeu votos suficientes para ter 3 vagas na Câmara dos Deputados, elas seriam ocupadas pelos três primeiros candidatos da sua lista prévia.

Um detalhe importantíssimo: já que o dinheiro das empresas secou, para custear as campanhas seria criado o Fundo de Financiamento da Democracia, composto por R$ 2 bilhões para ser distribuído entre os partidos. Esse dinheiro, claro, virá “do seu, do meu, do nosso” bolso – deve ser por isso que o fundo tem “democracia” no nome.

Não sei se foi porque quase ninguém mais acredita nos partidos ou porque começaram a dizer que a proposta era uma estratégia para manter o foro privilegiado da cúpula do Congresso, mas o fato é que a ideia de lista fechada aparentemente foi abandonada. Enquanto o país acompanha o novo núcleo temático da novela da Lava Jato, o embate entre Temer e Janot, nossos representantes continuam a conversar sobre a reforma política em jantares e almoços. E a bola da vez para resolver o problema dos políticos – e não do país – é o “distritão”.

De acordo com as últimas notícias, parlamentares do governo e da oposição estão selando um pacto para colocar mais dinheiro nas eleições de 2018 (sim, pode faltar dinheiro para emitir passaporte, mas devem estar sobrando R$ 3,5 bilhões para destinar aos políticos nas próximas eleições). De quebra, estão decidindo que a disputa será na base do “ganhou mais votos, levou” –  essa é a lógica do “distritão”.

Na experiência internacional, os países definem as regras de seleção dos parlamentares tendo em vista diferentes objetivos. Alguns privilegiam a escolha de candidatos que, na média, representem o perfil da população e sua diversidade de opiniões políticas; em outros, incentiva-se o vínculo entre os candidatos e a região onde moram.

A depender das regras também podemos ter modelos mais ou menos fáceis de ser compreendidos pelo eleitorado – variável importante neste momento de falta de confiança na política.

Os sistemas eleitorais também têm impactos diretos na governabilidade do Presidente da República, na medida em que podem gerar um Congresso composto por poucos partidos ou fragmentado em inúmeras legendas – situação que eleva consideravelmente o custo de governar, como aprendemos com o Mensalão e a Lava Jato.

Além disso, dependendo das regras do jogo, temos sistemas mais caros ou mais baratos – e mais ou menos permeáveis à influência de grandes doadores privados.

No modelo do “distritão” apenas um desses 5 grandes objetivos (representatividade da população, proximidade com o eleitor, facilidade de compreensão, governabilidade e custo) é atendido.

Se o Congresso optar por ele na atual reforma política, em 2018 serão eleitos os candidatos mais votados em cada Estado, independentemente da votação total de seu partido. Para a população, será fácil entender essa regra – e aí está a sua única vantagem. No mais, o “distritão” agrava todas as mazelas do atual sistema eleitoral brasileiro – esse modelo que produz corrupção, crise de governabilidade e afasta a população da política.

As eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil são caríssimas. Disputadas nos Estados, os candidatos têm que fazer campanha em regiões muito grandes, seja em termos de território ou de população. Além disso, quem quiser se tornar deputado federal tem que vencer no voto não apenas os adversários das outras legendas, mas também os colegas do próprio partido ou coligação. No modelo atual, portanto, há um claro incentivo para que se gaste muito na campanha.

É por isso que existe uma relação positiva entre número de votos e doações eleitorais no Brasil – ou seja, as chances de ser eleito aumentam com o total de dinheiro que você consegue arrecadar, o que abre um imenso flanco para corrupção. No gráfico abaixo você consegue visualizar essa associação nas eleições para a Câmara de 2014 – basta selecionar o Estado no filtro e passar o cursor sobre as bolinhas para saber quanto cada candidato

 

Se o Congresso optar pelo “distritão” em 2018, nada disso vai mudar. Aliás, pode até piorar. No sistema atual, as vagas de deputado em cada Estado são distribuídas segundo a soma de votos de todos os candidatos de um partido ou coligação, para daí serem escolhidos os mais votados em cada “time”. Na proposta do “distritão”, valerá o salve-se quem puder – ou seja, os mais votados serão eleitos, independentemente do desempenho agregado do partido.

Assim, o dinheiro ganhará ainda mais importância na campanha, pois a conexão com os votos será potencializada, pois abriremos mão da intermediação dos partidos. Com o “distritão” não importa a força do partido e sim exclusivamente o potencial – financeiro, arrecadatório ou de popularidade – do candidato.

Essa característica do “distritão” certamente levará a um Congresso ainda mais fragmentado a partir de 2019. Na medida em que o peso do partido perderá importância nas eleições, haverá um incentivo para que candidatos fortes migrem para partidos pequenos.

Se o que vale é quem tem mais votos, tanto faz para o milionário “não-político”, a celebridade ou o líder religioso concorrer por um partido grande ou pequeno. Aliás, num partido pequeno seu trabalho será ainda mais fácil, porque não precisará se sujeitar aos mandos e desmandos dos velhos e novos caciques partidários.

A tendência, portanto, será termos ainda mais partidos com representação no Congresso e uma diminuição das bancadas das legendas tradicionais. Em outras palavras, quem quer que vença as eleições presidenciais de 2018, seu trabalho para governar será ainda maior do que agora. Sob esse ponto de vista, esperamos mais crises políticas pela frente.

Eleições mais caras, pouco vínculo com o eleitor (as eleições continuarão sendo disputadas em âmbito estadual) e pior governabilidade não são os únicos defeitos do “distritão”. A combinação de muito dinheiro público (R$ 3,5 bilhões) e a regra do “vence quem ganha mais votos” pode potencializar o grande problema do sistema eleitoral brasileiro: a seleção de parlamentares que não nos representam. E o que é pior: aumentará a probabilidade de reelegermos os políticos enrascados com a Lava Jato.

Como você pode ver no gráfico abaixo, uma das excrecências de nossas regras eleitorais é dar muito poder aos diretórios regionais na distribuição do dinheiro de campanha arrecadado pelos partidos (tanto o recebido do fundo partidário quantos o arrecadado junto a pessoas físicas e, até 2014, empresas). Os caciques regionais detêm ampla liberdade para alocar essa grana entre os candidatos, o que resulta numa distribuição extremamente desigual de recursos. Clique no gráfico abaixo e veja como cada partido repartiu o dinheiro entre os candidatos de cada Estado nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados.

 

No modelo que está sendo proposto, os líderes partidários terão R$ 3,5 bilhões para aplicar nas campanhas de seus correligionários, além das doações individuais. De acordo com a sugestão que está atualmente na mesa, 2% desse valor será distribuído igualmente entre todos os partidos e os outros 98% serão alocados conforme a bancada eleita em 2014.

E aí é que está a grande jogada. As maiores bancadas eleitas em 2014 foram, respectivamente, PT (13,3%), PMDB (12,7%), PSDB (10,5%) e, na sequência, PP, PSD, PR e PSB (todos entre 6,6% e 7,4%). Multiplique esses percentuais por R$ 3,5 bilhões e veja quanto cada um vai levar…

Essa montanha de dinheiro a ser recebida pelos grandes partidos – justamente os mais envolvidos com a Lava Jato – será distribuída (em malas, talvez…) pelos líderes dos diretórios estaduais entre os seus candidatos.

Como no “distritão” será eleito quem ganhar mais votos independentemente do desempenho dos outros candidatos do partido, é de se esperar uma disparidade ainda maior na distribuição do dinheiro vindo do tal Fundo de Financiamento da Democracia. E, obviamente, haverá muita gente na mira da Lava Jato que vai fazer de tudo para ficar com um bom quinhão desse dinheiro público para continuar no poder.

Colocar mais dinheiro público e deixar que os partidos distribuam é, portanto, um cheque em branco para i) beneficiar os grandes partidos (que ganharão a maior fatia do bolo) e ii) privilegiar os caciques dos partidos ou seus asseclas mais próximos (justamente os que estão implicados na Lava Jato).

Reforma política (assim como a tributária) é um daqueles temas que todo mundo é a favor, mas na hora do vamos ver dá uma preguiça tremenda de acompanhar, estudar e propor soluções. Quando alguma coisa chega a ser aprovada, quase sempre acaba piorando as coisas – pois só os diretamente interessados é que se envolvem; a população em geral prefere continuar no flaflu entre petralhas e coxinhas nas redes sociais.

Nós estamos numa encruzilhada histórica e nossos parlamentares estão a ponto de aprovar uma reforma política que aumenta a quantidade de dinheiro que poderão gastar nas suas campanhas, beneficiando justamente aqueles que gostaríamos que fossem retirados de lá depois das revelações da Lava Jato.

De quebra, a proposta da “reforma política” proposta pelos políticos pode levar a um Congresso ainda mais fragmentado, menos representativo e com maiores chances de que o critério de eleição seja o dinheiro, a fama ou o tamanho do rebanho religioso – sem, com isso, aumentarmos a responsividade dos políticos ao seu eleitorado.

Temos muitos motivos para deixar de nos preocuparmos com o debate direita e esquerda e unirmos nossas forças para sepultar essa proposta de “distritão” com mais dinheiro público nas campanhas. Aliás, chega de dar dinheiro para os políticos. That’s what I don’t want.

 

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Doações (i)limitadas de campanhas: a lei do mais rico nas eleições brasileiras https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/20/doacoes-ilimitadas-de-campanhas-a-lei-do-mais-rico-nas-eleicoes-brasileiras/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/20/doacoes-ilimitadas-de-campanhas-a-lei-do-mais-rico-nas-eleicoes-brasileiras/#respond Wed, 21 Jun 2017 01:52:18 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=38 As regras eleitorais que permitem aos candidatos utilizar sua fortuna pessoal para financiar suas campanhas e vinculam as doações privadas à sua renda são injustas, antidemocráticas e estimulam a corrupção

“Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto
Até chegar o dia em que tentamos ter demais
Vendendo fácil o que não tinha preço

Eu sei, é tudo sem sentido
[…]

Nada mais vai me ferir, é que eu já me acostumei
Com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei”

(Andrea Doria – Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá)

 

A promiscuidade entre público e privado no financiamento das eleições no Brasil vem de tempos imemoriais. Para compreender como chegamos até a Lava Jato, e tentar vislumbrar aonde queremos (ou podemos) chegar, vou me concentrar apenas na chamada Nova República (depois de 1985).

Do ponto de vista da legislação sobre doações de campanhas, podemos dividir esse período em três momentos distintos.

Ironicamente, o Brasil emergiu da ditadura militar mantendo as mesmas regras eleitorais da fase autoritária. De acordo com a extinta Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 5.682/1971), eram proibidas as doações de empresas privadas nas eleições.

Esse era o regime que permitiu a eleição de Fernando Collor em 1989. Logo depois, num desses escândalos que de tempos em tempos “abalam a República”, ficamos sabendo que a vedação legal não impediu o uso de recursos empresariais naquela campanha. Se você der uma passada de olhos no Relatório da CPMI do Caso PC Farias, estão lá muitos dos nomes e elementos que vemos hoje na Operação Lava Jato: Odebrecht, Andrade Gutierrez, doleiros, paraísos fiscais, caixa dois, dinheiro para lá e para cá.

Determinado a “acabar com a hipocrisia” e dar mais “moralidade e transparência às campanhas eleitorais” (expressões extraídas do relatório do Caso PC Farias), o Congresso Nacional liberou as doações de empresas para candidatos e partidos – primeiro com a Lei nº 8.713/1993, que regulou as eleições gerais de 1994, e definitivamente com a Lei nº 9.504/1997.

Esse foi o sistema que gerou todos os grandes esquemas de corrupção que temos visto nos últimos anos com as operações Trensalão Tucano, Zelotes, Greenfield, Acrônimo e, claro, a Lava Jato. As evidências obtidas por meio das delações premiadas e das investigações dos órgãos de controle indicam o mesmo roteiro: grandes empresas ofertando propinas, contribuições oficiais e doações via caixa dois para políticos se enriquecerem e se perpetuarem no poder, em troca de favores governamentais (licitações, benefícios fiscais, decisões administrativas favoráveis, crédito barato, etc.). Fazendo a articulação entre os lados da oferta e da demanda por corrupção, uma intrincada rede de doleiros, contas em paraísos fiscais e lobistas.

Buscando por fim nessa “plutocracia” (o governo do dinheiro), o Supremo Tribunal Federal declarou, em 2015, que as doações de empresas eram inconstitucionais. Entramos, então, na atual fase de relacionamento entre dinheiro e eleições no Brasil, em que as campanhas só podem ser custeadas por recursos públicos do Fundo Partidário e por doações de pessoas físicas.

A inauguração dessa nova fase se deu nas eleições municipais de 2016. Não por acaso, o grande nome dessa eleição foi João Doria (PSDB), eleito prefeito de São Paulo ainda no primeiro turno. Para além do marketing e de seu discurso de “gestor” e de “não político”, Doria se beneficiou de uma particularidade da legislação eleitoral brasileira: a possibilidade de utilizar sua fortuna pessoal para cobrir os gastos de sua candidatura.

De acordo com o art. 23 , §§ 1º e 1º-A, da Lei nº 9.504/1997, as pessoas físicas podem destinar até 10% dos rendimentos brutos recebidos no ano anterior para financiar candidatos ou partidos. Se o sujeito for candidato, pode utilizar sua renda e o seu patrimônio até o limite máximo de gastos autorizado pela Justiça Eleitoral.

Essa regra de financiamento de campanhas é extremamente injusta e antidemocrática. Enquanto um assalariado pode doar no máximo R$ 1.249 nas eleições (10% de 12 salários mínimos, mais 13º salário e adicional de férias), Joesley Batista, por exemplo, poderia aplicar até R$ 221.433,33 (10% dos seus rendimentos brutos, conforme cópia da sua declaração de Imposto de Renda anexada no acordo de delação premiada).

No caso de candidatos, a regra é ainda mais desproporcional, pois sequer existe o limite de 10% dos rendimentos do ano anterior. O aspirante a um cargo público pode financiar toda a sua campanha com recursos próprios, desde que respeitado o teto de gastos definido pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Foi essa regra que permitiu que Doria utilizasse R$ 4,4 milhões de seu patrimônio para se tornar prefeito de São Paulo. E ele não foi o que mais gastou. Vitorio Medioli (PHS) desembolsou quase R$ 4,5 milhões para se tornar prefeito de Betim/MG e Rodrigo Pacheco (PMDB) queimou R$ 4,7 milhões na sua tentativa frustrada de se tornar prefeito de Belo Horizonte/MG.

Na lista dos 10 maiores doadores de 2016, figuram Carlos Enrique Amastha (PSB, prefeito de Palmas/TO, R$ 4,4 milhões), Luiz Binotti (PSD, prefeito de Lucas do Rio Verde/MT, R$ 3,2 milhões), Alcides Ribeiro Filho (Professor Alcides, PSDB, candidato derrotado à prefeitura de Aparecida de Goiânia/GO, R$ 2,26 milhões), Vanderlan Vieira Cardoso (PSDB, candidato derrotado à prefeitura de Goiânia/GO, R$ 2,2 milhões) e Alexandre Kalil (PHS, prefeito de Belo Horizonte/MG, R$ 2,2 milhões). Todos empresários e autoproclamados “não-políticos” e “gestores”.

Entre os top 10 do financiamento eleitoral em 2016, apenas dois não estavam na disputa: os gêmeos Pedro e Alexandre Grendene, que aportaram respectivamente R$ 2,48 milhões e R$ 1,82 milhão no último pleito.

Para dar uma dimensão do montante doado, elaborei o quadro abaixo com todas as pessoas físicas que investiram mais de R$ 100.000,00 nas eleições municipais de 2016.

 

Permitir que os mais ricos possam aportar mais dinheiro nas eleições – e, o que é ainda mais grave, que candidatos milionários tenham mais chances de ser eleitos – é uma agressão aos princípios democráticos de nossa Constituição.

Mais do que isso, a regra brasileira que estabelece a própria condição financeira do doador como limite para doações é também uma aberração em termos internacionais.

Para mostrar como os diversos países limitam (ou não) a influência do dinheiro nas eleições, utilizei a base de dados sobre financiamento eleitoral do Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral (International IDEA, em inglês). O resultado está no mapa abaixo:

 

No mapa acima, classifiquei os países de acordo com dois critérios: i) se permitem ou não doações de empresas para partidos ou candidatos; e ii) se há limites para doações de pessoas físicas e jurídicas.

Comecemos pelos países mais liberais, destacados com a cor verde. São os países que permitem doações de pessoas jurídicas e não impõem limites às contribuições de indivíduos ou empresas. Nesse grupo destacam-se países de tradição anglo-saxã (EUA, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia), países europeus desenvolvidos (Suécia, Noruega, Alemanha, Holanda, Suíça, Áustria), boa parte da África e a nossa vizinha Venezuela.

Um degrau abaixo no grau de liberalidade no financiamento eleitoral estão os países marcados em laranja. Eles permitem doações de empresas, mas com um teto para o valor a ser aplicado por pessoas físicas e jurídicas nas eleições. É o modelo dominante na América do Sul, na Rússia e no leste europeu, assim como em alguns países desenvolvidos, como Japão, Itália e Finlândia.

O grupo mais restritivo (vermelho), é o dos países que adotam o mesmo sistema que o Brasil escolheu a partir de 2015: vedação de contribuições feitas por empresas, com limites para doações de pessoas físicas. Entre as nações mais relevantes nesse grupo estão Canadá, Coreia, Portugal, Espanha, França e Bélgica, mas também países com histórico de instabilidade política e corrupção, como Grécia, Egito, Tunísia e Afeganistão.

Acontece, porém, que o Brasil pertence ao grupo mais restritivo apenas no papel. Isso se dá porque o tipo de limite que nossa legislação estabelece – baseado na renda do doador – é totalmente diferente dos demais países do mundo que fazem essa opção legislativa. Dê uma olhada na tabela abaixo, elaborada a partir da mesma base de dados do International IDEA [para facilitar a leitura, clique com o botão direito do mouse na tabela e abra-a em outra guia, aumentando o zoom]:

Limites para Doações de Pessoas Físicas e Jurídicas na Experiência Internacional

Como pode ser visto na tabela acima, a maioria dos países estabelece algum tipo de teto nominal para as doações de pessoas físicas e empresas. Esses limites podem ser estabelecidos em termos de um valor máximo (US$ 735 em Trinidad e Tobago, US$ 900 mil no Japão), de “x” salários mínimos (10 na Eslovênia e 5.000 no Paraguai e no Quirguistão) ou como porcentagem do valor máximo de despesas autorizadas para os candidatos (1% na Argentina e 10% na Guatemala e na Mauritânia).

O único país que tem um sistema parecido com o brasileiro, de colocar o limite em termos de um percentual dos ganhos do doador, é a Índia. Ainda assim, ela apresenta um limite bem inferior, pois se baseia no lucro líquido (7,5%, no caso), e não nos rendimentos brutos, como é o caso do Brasil (10%).

Na verdade, a jabuticaba do teto de doações brasileiro é quase como se não houvesse limite à influência do dinheiro nas campanhas eleitorais, principalmente se levarmos em conta os super-ricos. E, se eles são candidatos então… o poder é ainda maior. Doria que o diga.

Ao não dispor de um limite efetivo às doações privadas, é como se o Brasil migrasse para um grupo bastante particular no comparativo internacional: um país com vedação às doações de empresas, mas praticamente sem limite para doações de pessoas físicas (inclusive candidatos). Esse tipo de modelo de financiamento de campanhas é tão pouco significativo que apenas com muito esforço se consegue identificá-lo no mapa acima. Analisando a questão sob esse prisma, deveríamos estar destacados no mapa com a cor rosa, ao lado apenas de Honduras, Libéria e Filipinas – nações com pouca probabilidade de serem que consideradas exemplos a serem seguidos nessa matéria.

A simples adoção deste ou daquele modelo institucional obviamente não é garantia de sucesso no combate à corrupção. O que chama a atenção, no entanto, é como o modelo brasileiro continua permissivo à influência do dinheiro nas eleições, mesmo com a proibição das doações empresariais.

De um lado, vedamos as contribuições de empresas sem dispor de um aparato estatal para punir efetivamente o financiamento ilegal – vide o recente julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE e a proposta de Janot para suspender os processos envolvendo caixa dois na Lava Jato. Por outro, limites baseados na renda do indivíduo favorecem os milionários – sejam eles superdoadores, sejam candidatos. A combinação desses dois fatores estimula a permeabilidade da política ao poder do dinheiro.

Como tudo o que está ruim pode piorar, segundo reportagem da Folha o relator da reforma política na Câmara, Vicente Cândido (PT/SP), pretende propor o aumento do teto para doações de que pessoas físicas (ele será superior a 10% dos rendimentos brutos, portanto). A se confirmar essa tendência, vamos esperar que novos milionários aportem recursos na política brasileira. Roberto Justus e Luciano Huck já ensaiaram alguns passos nessa direção.

Como diria a canção da Legião – por coincidência chamada Andrea Doria, em homenagem ao príncipe da Sereníssima República de Gênova, terra de banqueiros e mercadores – eu já me acostumei com a estrada errada que tomamos e com a nossa própria lei.

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