O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O agro é tech, mas também é tóxico https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/27/o-agro-e-tech-mas-tambem-e-toxico/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/06/27/o-agro-e-tech-mas-tambem-e-toxico/#respond Wed, 27 Jun 2018 05:00:16 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=420 Tramitação do projeto de lei que pretende flexibilizar a comercialização de agrotóxicos mostra como grupos de interesses controlam a produção de leis no Brasil

 

Há quase um consenso de que o agronegócio é um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira. Trata-se de um caso raro em que conseguimos aprimorar nossas vantagens comparativas (território vasto, clima e solo) com inovações tecnológicas desenvolvidas no seio de centros de pesquisas de ponta, como a Embrapa, a Esalq e as Universidades Federais de Lavras e Viçosa. A representação do setor no Congresso Nacional, contudo, é a antítese desse cenário de prosperidade. Como erva daninha, a bancada ruralista se alastra sobre todos os campos de seu interesse, sufocando qualquer possibilidade de debate democrático.

Estou me referindo, obviamente, à aprovação de projeto de lei que flexibiliza a comercialização de agrotóxicos no país pela Comissão Especial encarregada de analisar o assunto na Câmara dos Deputados. No entanto, nas duas últimas décadas a bancada ruralista se tornou uma força parlamentar superior à maioria dos partidos, sendo por isso cortejada por todos os presidentes, de FHC a Temer, passando por Lula e Dilma. Em troca de apoio ao governo, os ruralistas foram capazes de aprovar uma gama imensa de benefícios setoriais, incluindo renegociações de seus empréstimos junto ao Banco do Brasil, parcelamento de suas dívidas tributárias, bem como medidas regulatórias favoráveis à comercialização de transgênicos e, agora, pesticidas.

Embora seja plenamente aceitável que um determinado setor ou grupo de interesses mobilize esforços junto ao Congresso ou ao governo para obter legislação ou políticas públicas favoráveis – isso faz parte do jogo democrático –, é preciso dizer que esse jogo, no Brasil, não tem nenhum fair play. E a tramitação do Projeto de Lei nº 6.299/2002, que regula os agrotóxicos no país, é um triste exemplo de como o processo legislativo é dominado por quem tem acesso aos donos do poder.

No meu livro “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” eu demonstro como parlamentares vinculados à Frente Parlamentar da Agropecuária dominam instâncias importantes na tramitação de projetos, como as Comissões de Agricultura e de Meio Ambiente, além de terem sido determinantes na votação de projetos sensíveis ao setor, como o novo Código Florestal. No caso do projeto de lei dos agrotóxicos não foi diferente.

Para não deixar dúvidas de suas intenções, o projeto foi proposto pelo senador Blairo Maggi, atual Ministro da Agricultura, cuja família é considerada a maior produtora de soja do mundo. Na sua versão original, a proposta tinha um único dispositivo, liberando do registro prévio nos órgãos federais (Ministérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente) os agrotóxicos cujos princípios ativos fossem “substancialmente equivalentes” a outros previamente registrados. A razão para a proposta era simplificar o processo e, assim, estimular a concorrência e baixar os preços dos pesticidas.

Uma vez aprovado no Senado em 2002, quando chegou na Câmara dos Deputados o projeto foi designado para tramitar em quatro comissões permanentes: i) a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, ii) a Comissão de Seguridade Social e Família, iii) a Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural e, finalmente, iv) a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Em cada uma delas, a proposta deveria ser analisada por um relator, cujo parecer seria submetido à votação de seus membros.

Embora teria sido extremamente salutar debater o assunto profundamente em ambientes tão distintos como as comissões de agricultura, meio ambiente e seguridade social – aliás, a essência do processo legislativo é justamente essa –, optou-se por evitar a “morosidade” da tramitação regular e recorreu-se a um poderoso atalho previsto no Regimento Interno da Câmara: a criação de uma comissão especial, ou temporária, que substitui todas as demais.

No caso do PL dos agrotóxicos, a comissão especial criada para analisá-lo em caráter terminativo tem como presidente a deputada Tereza Cristina (DEM/MS), que não por acaso também é presidente da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, braço institucionalizado da bancada ruralista no Congresso. No parlamento brasileiro, as escolhas em geral não são gratuitas – e é sintomático que matéria de tamanha relevância social tenha sido entregue à representante máxima dos interesses do agronegócio no Congresso Nacional.

Aliás, o primeiro vice-presidente da comissão, Valdir Colatto (MDB/SC) também pertence à frente de apoio aos ruralistas. Assim como o segundo vice-presidente, deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB/CE). E também o relator do projeto, o paranaense Luiz Nishimori (PR).

Entre os cargos de direção da comissão especial, apenas o deputado Bohn Gass (PT/RS) não está ligado oficialmente à bancada ruralista. Ele está do outro lado da disputa, pois milita na Frente Parlamentar pelo Desenvolvimento da Agroecologia e Produção Orgânica. Ou seja, na condução da comissão destinada a analisar uma mudança dessa importância no setor, atribuiu-se para aqueles que defendem o fim do uso dos agrotóxicos nas plantações um cargo em cinco, não por acaso o mais baixo na hierarquia. Um verniz de pluralidade sempre foi apreciado na democracia brasileira.

Na composição total da comissão especial que decide o futuro do uso de agrotóxicos no Brasil, o placar também é bastante favorável aos ruralistas. Dos 27 membros titulares, nada menos que 20 filiam-se à frente parlamentar da agropecuária – o dobro daqueles que defendem os interesses da agricultura sem agrotóxicos. A comissão tem ainda 15 integrantes da Frente Parlamentar Ambientalista.

A tabela mostra a vinculação dos deputados titulares da Comissão Especial que analisou o projeto de lei sobre agrotóxicos às frentes parlamentares da agropecuária, ambientalista e de produção orgânica.
Fonte: Elaboração do autor a partir de informações da Câmara dos Deputados.

Mas é preciso ter cuidado com a tabela acima. O Congresso Nacional está repleto de parlamentares que se filiam a toda e qualquer frente parlamentar no afã de garantir votos e doações de campanha nas eleições futuras. No caso da comissão especial dos agrotóxicos, temos oito membros que se autoproclamam apoiadores, ao mesmo tempo, da agropecuária, da agricultura orgânica e do meio ambiente – e mais três que são ao mesmo tempo ruralistas e ambientalistas.

Embora, em tese, não seja impossível defender o agronegócio e o meio-ambiente simultaneamente, a rigor as pautas defendidas por cada um desses grupos é antagônica – em especial quando se trata do uso de pesticidas nas lavouras. Nesse caso, há evidências suficientes para desconfiar de que, entre esses parlamentares que acendem vela para deus e o diabo, o interesse dos ruralistas fale mais alto: afinal de contas, dos 11 parlamentares que estão vinculados a mais de uma frente, nada menos que 7 são, eles próprios, produtores rurais. E isso dá uma boa dica sobre de que lado eles estarão na hora de votar.

Mesmo se considerarmos como autênticos apenas os parlamentares que se filiam apenas a uma frente parlamentar, a comissão especial é dominada amplamente pelos ruralistas. Nela estão presentes 9 “ruralistas-raiz” contra apenas cinco adversários do uso de agrotóxicos – dois defensores da agricultura orgânica (Padre João e Bohn Gass) e três ambientalistas (Alessandro Molon, Jandira Feghali e Sarney Filho). É praticamente o dobro.

Para oferecer parecer ao projeto, a Comissão designou como relator o deputado Luiz Nishimori (PR). Na página oficial da Câmara o deputado se autodeclara “agricultor e comerciante” e, do ponto de vista da associação a frentes parlamentares, ele apoia tanto a causa dos ruralistas, quando dos ambientalistas e da produção orgânica. Mas não se engane com essa aparência de isenção. Ao longo das duas últimas legislaturas, o deputado paranaense relatou outras importantes proposições de interesse do agronegócio, como renegociações de dívidas, concessão de subvenções ao crédito rural e até (surpresa!) a isenção de tributos sobre a comercialização de fertilizantes e defensivos agrícolas.

Apesar de gerar tanta controvérsia na comunidade científica e na sociedade em geral, a Comissão Especial realizou poucas audiências públicas sobre o assunto. Em geral, houve uma atenção desmedida a agentes do setor e a dirigentes do Ministério da Agricultura, inclusive o agora ministro Blairo Maggi. Também foram convidados representantes de órgãos estrangeiros (EUA, Canadá e Austrália) que defenderam maior celeridade na liberação dos registros de princípios ativos.

A oposição bem que tentou fomentar o debate, mas a maioria dos requerimentos para a realização de audiências com representantes de visões divergentes não foi adiante. A situação chegou a tal ponto que, para dar voz a representantes do Ibama, Fiocruz, Idec e outras entidades contrárias à proposta, foi necessário recorrer à Comissão de Desenvolvimento Urbano, que não tinha nada a ver com a tramitação do projeto – uma vez que a Comissão Especial, dominada pelos ruralistas, interditou o debate.

Para encurtar a conversa, a Comissão Especial aprovou o parecer do deputado Luiz Nishimori na última segunda-feira, dia 25/06/2018. Ao final do processo, o projeto que na sua versão inicial tinha um único dispositivo tornou-se uma massa de 68 artigos, com repercussões sobre o setor, a segurança alimentar e o meio ambiente que carecem de uma urgente mobilização da comunidade científica e da sociedade em geral para avaliar as suas consequências.

O resultado da votação foi 18 a 9 pela aprovação do projeto. Entre os 18 parlamentares que votaram a favor, apenas um deputado não era vinculado à bancada ruralista. No lado contrário, 7 eram ambientalistas e mais um era defensor dos orgânicos – sendo apenas um signatário da Frente de Apoio à Agricultura.

O projeto que pretende regular a comercialização de agrotóxicos no Brasil pode até ser bom – eu não tenho conhecimento técnico para opinar a respeito. Mas a forma como ele foi conduzido, com evidente domínio da bancada ruralista, gera bastante desconfiança.

A matéria ainda vai a votação em Plenário, e pode até ser derrotada. Mas é urgente repensarmos o processo legislativo brasileiro para equilibrar o direito a voz na tramitação de projetos de lei, pois o quadro atual é altamente tóxico.

 

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