Depois da crise, é hora de escolher os perdedores
Impasse com os caminhoneiros indica que aumentar a carga tributária não funciona mais
“De nada adianta ficar-se de fora
A hora do ‘sim’ é um descuido do ‘não’”.
[Sei lá… A Vida tem Sempre Razão – Vinícius & Toquinho]
O economista Eduardo Giannetti foi o primeiro a levantar, aqui na Folha, que a greve dos caminhoneiros pode ser o embrião de uma rebelião tributária. Depois de expandir a carga tributária de forma praticamente ininterrupta desde 1988 e sem entregar segurança, educação, saúde e outros serviços públicos de qualidade, o país é sacudido novamente por segmentos da população que dizem não aguentar mais “tudo o que está aí”.
Michel Temer e seu núcleo político cederam a praticamente todas as reivindicações dos caminhoneiros: isenções tributárias, redução nos pedágios, subsídios para a Petrobrás não reajustar os preços do petróleo. Em nome da paz nas estradas, a conta sairá bastante salgada. Restará à equipe econômica atual, e sobretudo a do próximo governo, decidir se joga gasolina no incêndio ou se enfrentará o desafio sempre adiado de encarar a responsabilidade e escolher os perdedores dessa disputa.
O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, prometeu compensar as benesses de reduzir na marra o custo do frete com reoneração da folha de pagamentos e fim de alguns benefícios fiscais. Seria uma solução pouco usual na história brasileira, em que a conta costuma ser repassada para toda a coletividade, e não imposta sobre alguns setores. Num governo comandado pelo MDB e que desde a sua posse cedeu a pressões de diversos grupos de interesse (vide os reajustes de servidores públicos, os vários Refis e a demora na aprovação da, veja você, reoneração da folha), estou pagando pra ver.
A grande vantagem da crise atual é que parece estar ficando claro para a população que as finanças públicas são um campo de batalha no qual se desenrola o conflito distributivo. As discussões sobre quem vai pagar a conta dos benefícios dados aos caminhoneiros e as grandes transportadoras ocuparam a imprensa, as redes sociais e os almoços familiares nos últimos dias. E podem dar força para a tal rebelião tributária prevista por Giannetti.
Com o total de tributos consumindo mais de um terço de tudo o que é produzido no país, o grau de liberdade do governo reduziu-se bastante nos últimos anos. Uma das saídas disponíveis para aliviar o peso sobre boa parte da população seria alterar a composição dessa carga tributária. Como pode ser visto no gráfico abaixo, no Brasil nós tributamos muito o consumo (essa é uma das causas para os produtos serem tão mais caros aqui do que no exterior) e a folha de pagamentos, aliviando a renda e o patrimônio. Para agravar a situação, como o governo não é bobo, ele tenta maximizar sua receita pegando ainda mais pesado nos bens que são essenciais, como, olha só, combustíveis!
Uma das formas de aliviar a carga tributária sobre combustíveis e outros bens e serviços, fazendo com que seus preços fiquem próximos ao patamar internacional, seria aumentar a tributação sobre patrimônio e a renda. Mas isso é inadmissível para boa parte de nossa classe alta (que se autoproclama média). Seja bem-vindo ao conflito distributivo brasileiro!
Se é difícil fazer com que aqueles de maior renda paguem proporcionalmente mais imposto, um passo alternativo seria deixar de abrir mão de receita. Há décadas o governo brasileiro concede uma série de agrados tributários para diversos setores econômicos e segmentos populacionais, aceitando com que paguem menos ou nenhum imposto.
De igrejas a empresas instaladas na Zona Franca de Manaus, passando por deficientes físicos que adquirem automóveis com desconto de IPI – e, por falar nisso, a sempre voraz indústria automobilística –, o governo federal abrirá mão de mais de R$ 280 bilhões neste ano, sem contar as concessões feitas aos caminhoneiros. Se você quer saber como o governo abdica de tanto dinheiro assim, é só passar o mouse sobre os círculos no gráfico abaixo, que indicam os programas de isenções fiscais e seus respectivos valores estimados no Orçamento de 2018:
Um fato importante sobre essas desonerações, isenções e regimes especiais de tributação, além da arrecadação bilionária que não entra nos cofres públicos, é que elas são extremamente difíceis de serem extintas – pois da mesma forma que os grupos de interesse investem pesado para instituir esses benefícios, eles também se valem do seu acesso privilegiado ao poder para prorrogá-los e evitar sua extinção. E nesse jogo vale todo tipo de pressão: lobby, ameaças, acordos por debaixo da mesa, toma-lá-dá-cá e, claro, corrupção.
Bom, se pelo lado da receita está difícil mudar, talvez pela despesa o caminho seja menos esburacado – afinal, o Orçamento brasileiro passa de R$ 3,5 trilhões! Mas as coisas não são tão fáceis assim.
Em primeiro lugar, esqueça essa história de calote (“renegociação”, segundo o eufemismo) da dívida. A maior parte do orçamento (40%) vai para o pagamento de amortizações, mas seus recursos não advêm da arrecadação de impostos, mas sim da rolagem da própria dívida – estão fora, portanto, do conflito orçamentário. Quanto à parcela de juros e demais encargos (11%), já é passada a hora de crescermos e admitirmos que essa conta se deve única e exclusivamente a nosso passado – distante e recente – de irresponsabilidade fiscal, gastanças e… calotes. Pelo bem do nosso futuro, é melhor construir uma reputação de país confiável deixando esse tipo de despesa intacto.
Outro tipo de despesa que é praticamente “imexível” no curto prazo são os gastos com pessoal e encargos sociais. De um lado, o dogma da estabilidade dos servidores públicos e, felizmente, a expansão da expectativa de vida da população tornam complicado diminuir o número de ativos e inativos. A Constituição também veda reduções nos rendimentos e proventos de servidores, aposentados e pensionistas.
Diante dessas restrições, a única saída para liberar dinheiro para reduções na carga tributária no campo das despesas de pessoal é retomar a agenda perdida por Temer no fatídico dia em que veio à tona o seu encontro com Joesley Batista na calada da noite no Palácio do Jaburu: congelar aumentos de salários das carreiras que recebem mais, aprovar a idade mínima para aposentadoria e aumentar a contribuição previdenciária de ativos e inativos para conter o rombo da previdência oficial.
Agora, convenhamos: Você acha que um governante em fim de mandato (o famoso “pato manco” dos americanos) será capaz de enfrentar poderosas corporações de servidores públicos? E mexer na previdência dos militares – algum presidenciável se habilita a defender essa proposta em campanha?
Como não há mais espaço para reduzir os investimentos públicos, que chegaram a seu piso histórico ao representar apenas 1% do Orçamento, restaria para algum governante atual ou futuro atacar as chamadas “Outras Despesas Correntes”. Para quem não sabe, residem nesse grupo aquilo que costumamos chamar de “políticas públicas”: do seguro desemprego aos programas de saúde e educação fomentados pelo governo federal, incluindo a Previdência dos trabalhadores urbanos e rurais bancados pelo INSS.
Como você pode ver passando o mouse pelos retângulos do gráfico acima, temos centenas de programas governamentais, muitos deles com cifras bilionárias. Uma racionalização nessas políticas públicas é urgente, pois todos sabemos que a ação governamental é de péssima qualidade e muitos desses programas são ralos de desperdício de dinheiro público e antros de corrupção. Mas também aqui as dificuldades são imensas.
Em primeiro lugar, não temos o hábito de avaliar o custo-benefício dos programas governamentais. Governo, universidades e sociedade civil não investem tempo e recursos humanos e financeiros para descobrir o que dá certo e o que não dá, o que compensa continuar e o que deve ser extinto porque só rasga dinheiro público.
Obviamente existem exceções, mas até elas demonstram como somos atrasados em desenvolver uma cultura de avaliação de gastos públicos. Nossa política pública mais pesquisada, no Brasil e no exterior, é uma unanimidade em termos de resultados sociais e retorno do investimento público – estou falando do Bolsa Família. No entanto, ele também é o programa governamental menos compreendido entre a população e alvo recorrente de notícias falsas, principalmente em tempos eleitorais.
Além de não costumarmos avaliar as políticas públicas que merecem ser ampliadas, reformadas ou simplesmente canceladas, a maioria delas está prevista em lei ou até mesmo na Constituição, frequentemente com normas obrigando o governante a destinar um certo percentual das receitas para financiá-las. Dessa forma, o Orçamento brasileiro é extremamente rígido, e ano após ano continuamos despejando bilhões de reais onde não deveríamos.
Por fim, extinguir programas ou reduzir drasticamente os recursos destinados a eles encontra barreiras políticas difíceis de serem transpostas. Afinal de contas, cada política pública tem a sua própria clientela, e políticos que não querem se indispor com fatias relevantes do seu eleitorado – para não falar de uma rede de agentes que se beneficiam, de modo lícito ou ilícito, do seu provimento. Como desagradar é um verbo que nós brasileiros em geral não gostamos de conjugar na primeira pessoa, ações governamentais ineficientes continuam atendendo corruptos e corruptores, em detrimento da população em geral.
Diante de tantas dificuldades institucionais nos lados da arrecadação e do gasto público, talvez não seja de todo uma má ideia enfrentarmos uma rebelião tributária no Brasil. Se nos tempos de bonança não nos prestamos a aprovar as reformas necessárias, talvez sob o calor das ruas e do colapso fiscal que se aproxima consigamos deixar de lado nossos privilégios pessoais e pensar um pouco mais no país desigual em que vivemos.
Se não for assim, a conta será paga pelos mesmos de sempre. Não será “o governo”, “o Tesouro” ou “a Viúva” – e sim a população em geral, que tem o seu bem-estar estrangulado por altos impostos sobre o consumo e serviços públicos de péssima qualidade.
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