Temer e Lula na boleia do caminhão

Bruno Carazza

Crise dos caminhoneiros é resumo de nossa história de predação política e econômica pelos grupos de interesses


“A população que paga.
Na verdade, tudo que acontece na política
é a população que paga.”

(Cidadão carioca no Jornal Nacional de 24/05/2018 )

Toda crise tem causas imediatas e outras que vêm de longe, corroendo sorrateiramente as estruturas até que, por um curto circuito ou uma sobrecarga qualquer, o prédio desaba.

Especialistas são então chamados a apresentar suas explicações técnicas e representantes do governo anunciam medidas emergenciais e um plano de longo prazo para que a tragédia não ocorra novamente. Imediatamente à tragédia esquerdistas e conservadores enquadram os fatos às suas visões de mundo: foi culpa dos neoliberais golpistas ou do gigantismo do Estado cevado pelos petralhas.

Não é minha pretensão discutir aqui a origem da crise dos caminhoneiros ou seus impactos sociais, políticos e econômicos. Na falta de elementos concretos, vou tentar dar um passo atrás para vê-la em perspectiva. E como os experts convocados de última hora, as autoridades atônitas e os analistas de redes sociais, darei minha contribuição – igualmente reducionista, enviesada e carente de evidências – neste caleidoscópio que é a opinião pública.

Utilizando minhas prerrogativas de profeta do acontecido e isentão assumido, aponto as origens da crise atual em três datas distintas, ao gosto do freguês: 17/05/2017, algum momento entre 06/06/2005 e 05/05/2008 ou 21/04/1500.

A primeira hipótese (a culpa é do Temer): Há pouco mais de um ano Joesley Batista revelou para o Brasil o áudio  em que acertava com Michel Temer, na calada da noite, a compra do silêncio de Eduardo Cunha e Lúcio Funaro na Lava Jato e, de quebra, combinava o pagamento de propinas por futuras benesses para suas empresas no Cade e na CVM. Naquele momento começava a desmoronar todo o trabalho de reformas fiscais desenvolvido por uma das mais bem preparadas equipes econômicas desde o Plano Real.

No desespero por salvar a própria pele, Temer revelou a plenitude de seu espírito peemedebista e vendeu sua alma para o Centrão e a todos os interesses oportunistas que ele representa. Em vez de Reforma da Previdência, Refis generalizados para grandes devedores do Fisco, prorrogação de diversos regimes fiscais especiais e uma reoneração da folha de pagamentos tardia e bem aquém do que seria necessário para corrigir abusos bilionários. No lugar da aprovação das medidas de contenção de despesas com pessoal, total conivência com generosos auxílios-moradia, honorários e bônus de produtividade para a elite corporativista do funcionalismo nos três Poderes.

Para garantir sua sobrevivência contra os avanços da Lava Jato, Temer abriu mão do poder imprescindível de dizer “não”. Em governos fracos, quem tem mais poder de pressão leva: de grandes empresas sonegadoras a magistrados, passando por caminhoneiros – e as megatransportadoras de cargas, claro. Nesse arranjo, os benefícios se concentram em poucos, e os custos são transferidos para a sociedade toda. Vide o acordo entre governo e caminhoneiros de ontem.

Segunda possibilidade (a culpa é do PT): Em algum momento entre a eclosão do Mensalão e a ordem dada a Guido Mantega para abrir os cofres do BNDES e conceder benefícios fiscais bilionários para transformar o tsunami da crise financeira internacional em marolinha, o PT jogou fora os melhores 10 ou 12 anos de nosso período republicano.

É passada a hora de despirmos nossos preconceitos ideológicos e reconhecermos os imensos avanços e a incrível complementariedade do período compreendido entre a adoção do Plano Real e o fim do primeiro mandato de Lula. Sob a batuta dos dois melhores partidos desde o fim da ditadura, domou-se o patrimonialismo atávico para aprovar medidas modernizadoras que atacavam verdadeiramente nossos maiores males: a instabilidade econômica e a desigualdade de renda.

Todo esse esforço progressista, contudo, foi por água abaixo quando, a partir do segundo mandato do PT na Presidência, imaginou-se que a saída para as graves crises de governabilidade (com o Mensalão) e financeira internacional (2008) estava na transformação do governo num balcão de negócios entre políticos e grandes empresas. A combinação da famosa “nova matriz econômica” de Mantega com a governabilidade do MDB de Temer, Cunha, Renan e Jucá gerou a Lava Jato, o impeachment de Dilma, déficits fiscais insustentáveis e 13 milhões de desempregados. Nesse período o empresariado e as corporações do serviço público nadaram de braçada no dinheiro fácil do boom das commodities e na falta de controle do governo e, quando a maré passou, a dívida explodiu. Mas a lição tinha sido muito bem ensinada para os grupos de interesses: pressione que o governo cede.

A hipótese mais plausível (sempre foi assim): Se pararmos pra pensar, desde que Pedro Álvares Cabral aportou nessas terras, funcionamos num moto-contínuo extrativista descrito de forma magistral pelos acadêmicos Daron Acemoglu e James Robinson no imperdível livro Por que as Nações Fracassam. Para os autores, a razão para o atraso de países como o Brasil está na relação simbiótica entre elites econômicas e políticas que se sucedem ao longo do tempo criando políticas públicas e legislações que levam a concentração de renda e poder.

Como ninguém é perfeito, Acemoglu e Robinson chegaram a acreditar que o Brasil tinha aprendido o caminho e iniciado uma virada no início do século XXI. Sabem nada, inocentes. Também iludidos pela bem-sucedida dobradinha FHC-Lula I, esqueceram-se que nossas escolhas sempre foram feitas sob a lógica do rent seeking: a concessão de privilégios do Estado a grupos que exercem pressão sobre políticos e autoridades.

É por causa dele que somos um dos países mais fechados do mundo, que nosso Estado presta péssimos serviços públicos mas tem corporações confortavelmente instaladas no 1% mais rico da população, que nosso Congresso é uma fábrica de benesses de toda natureza e nosso sistema tributário é regressivo e baseado no consumo, e não no patrimônio e na renda. Esqueça o que eu disse sobre os criadores do Plano Real e do Bolsa Família: pensando bem, nunca tivemos um governo com visão clara e ações fortes o bastante para reverter esse sistema de transferência de renda da coletividade para grupos com acesso privilegiado ao poder.

 

Com um sistema político com fortes tendências à fragmentação, os grupos que sabem se organizar melhor e pressionar o governo vão sempre levar vantagem nas negociações e repassar a conta de seus benefícios para a população. Foi assim quando Temer abandonou o compromisso com as reformas fiscais para ficar no poder. E quando o PT propôs ao MDB sociedade na empreitada de permanecer pelo menos 30 anos no poder. Ou quando FHC deixou de usar o capital político adquirido com o fim da inflação para realizar reformas políticas e tributárias corajosas a ponto de romper o ciclo da concentração de renda e poder. Desde tempos imemoriais, os pactos políticos geram imensas oportunidades de negócio para quem se torna íntimo dos poderosos ou consegue emparedar o governante de plantão.

Os caminhoneiros aprenderam isso e jogaram o governo à lona em poucos dias, empurrando para todos nós os custos da redução do preço do diesel e seus tributos. Foram oportunistas, abusaram do poder ao levar o país ao caos? Talvez, mas eles simplesmente agiram como os grandes empresários em busca de Refis, ruralistas renegociando subsídios de suas dívidas com o Banco do Brasil, juízes ameaçando fazer greve a favor do auxílio-moradia…

E não se iludam: daqui pra frente vai ser pior. Depois de Dilma e Temer, em 2019 vem aí mais um presidente fraco, sobrevivente numa eleição de políticos desacreditados, um Congresso cada vez mais Centrão e um colapso fiscal se aproximando em ritmo alucinante.

A disputa pelos nacos de um Orçamento cada vez menor será sangrenta e a conta você sabe que vai pagar.  Se não souber, fica a dica: está lá no início do texto, na epígrafe.

 

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