Fim da série?
Na semana em que se cumpre a profecia de Sérgio Machado e Romero Jucá, o Supremo mostra como o Mecanismo é mesmo implacável no Brasil.
“O Michel forma um governo de união nacional, faz um grande acordo, protege o Lula, protege todo mundo. [Assim] esse país volta à calma; ninguém aguenta mais”.
(Sérgio Machado, na mesma gravação em que trocou ideias com Romero Jucá sobre “o grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”)
Como no samba de João Bosco e Aldir Blanc, a série O Mecanismo acabou no melhor pedaço. Concentrada na formação da Força Tarefa da Operação Lava Jato e na caçada a Alberto Youssef e a Paulo Roberto Costa, a primeira temporada fechou com o cerco ao cartel de empreiteiras que lesava a Petrobrás em tenebrosas transações.
Noves fora os graves erros de atribuir a Lula a frase sobre “estancar a sangria” e de não deixar claro que o esquema do Banestado se desenrolou na era FHC, o fio condutor da série é bem condizente com a descoberta do maior escândalo de corrupção do país.
No último episódio (atenção para o spoiler!) Ruffo revela o funcionamento do mecanismo. Trata-se de uma simplificação da teoria de Daron Acemoglu e James Robinson no livro Por que as Nações Fracassam: grandes grupos econômicos se aliam à elite política para desviar recursos públicos e, assim, concentrarem mais renda e mais poder em suas mãos e contas na Suíça.
Ruffo está certo: no Brasil, sempre foi assim. Tome os grandes escândalos de corrupção da Nova República – caso PC Farias, Anões do Orçamento, Banestado, privatizações, Satiagraha, Castelo de Areia, Mensalão, Petrolão – e veja que o modus operandi é basicamente o mesmo.
Muitas vezes até os personagens se mantêm. Se você tiver o trabalho de ler o relatório das CPMIs que investigaram Collor e PC Farias ou a gangue de políticos de baixa estatura que desviava recursos do Orçamento, encontrará envolvidos na lama, desde aquela época: Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, Geddel Vieira Lima, Edson Lobão, Eduardo Cunha…
Como o sistema se perpetua no tempo, filhos sucedem os pais na mesma forma de jogar. Na política isso acontece desde os tempos dos coronéis. Do lado de quem corrompe, a linhagem é tecida de Norberto para Emílio e depois Marcelo. Cláudio Melo era o lobista da Odebrecht na época de PC Farias. 30 anos depois, quem acompanhou o patrão na reunião com Temer e Padilha no Palácio do Jaburu para selar a doação de R$ 10 milhões para a campanha de 2014 também foi Cláudio Melo, mas o filho.
A operação também é praticamente a mesma: doleiros, contas no exterior, tráfico de influência, propinas travestidas de doações de campanha, empresas de fachada, laranjas, malas de dinheiro.
A primeira leva de episódios produzidos por José Padilha termina no ponto em que começam a se descortinar as engrenagens do sistema político brasileiro. Ao que tudo indica, a segunda temporada vai mostrar como dinheiro lícito e ilícito de empresários abastece campanhas eleitorais, ajudando a eleger políticos que retribuem o apoio com licitações fraudulentas, dinheiro barato de bancos oficiais e outras benesses.
Um dos indicadores de como esse sistema funciona – pelo menos na sua roupagem oficial – está no gráfico abaixo. Nele eu comparo a participação dos principais setores econômicos no PIB com o peso que tiveram nas doações de campanha em 2014:
Confrontando o tamanho das barrinhas, é possível perceber que alguns setores doaram para as campanhas eleitorais proporcionalmente muito mais dinheiro do que a sua importância econômica poderia justificar. Construção civil, alimentos e bebidas, bancos, siderúrgicas e mineradoras investem pesado nos políticos porque esperam retorno financeiro na forma de obras públicas, crédito subsidiado do BNDES, benefícios tributários, Refis, regulação branda, proteção contra a concorrência estrangeira.
Não é à toa que líderes desses setores têm frequentado as páginas policiais no lastro das investigações da Lava Jato, Zelotes, Greenfield. A classe política atual chegou e se manteve no poder turbinada com os milhões doados por esses setores.
Se for seguir essa trilha das relações entre as elites econômica e política que ficaram claras até aqui nas investigações da Operação Lava Jato, O Mecanismo repetirá a fórmula de sucesso de Tropa de Elite, em que a continuação é muito superior ao primeiro filme justamente porque expôs as vísceras do sistema político. Polêmicas muito maiores certamente virão.
Fico preocupado em saber, no entanto, é se teremos uma terceira temporada do seriado. Afinal de contas, nesta semana estaremos próximos de ver realizada a profecia de Sérgio Machado e de Romero Jucá – aquela do “grande acordo nacional, com o Supremo e com tudo”. Se colocar fim à possibilidade em prisão após decisão judicial em segunda instância, o STF praticamente jogará uma pá de cal sobre a Operação Lava Jato.
É só olhar a evolução dos fatos em perspectiva. No início, tivemos uma liquidação de penas e multas para os altos executivos e empresas envolvidas no escândalo que firmaram acordos de leniência e de delação premiada. Livrou-se, assim, os agentes econômicos que praticaram corrupção ativa.
De uns tempos para cá, com a concessão de habeas corpus generosos, recursos intermináveis, indultos natalinos, prisões domiciliares para tratamento de saúde e, para completar, o fim das prisões em segunda instância, o Supremo tem se encarregado de livrar de punições severas também a elite política que se deixou corromper. O mecanismo é implacável, meus caros.
“E o que a gente faz com isso?”, pergunta desolada a esposa do protagonista da série ao ficar sabendo como funcionam os fractais da corrupção brasileira.
Ruffo não deu a resposta, mas para mim é muito claro que temos que pressionar por mudanças institucionais que façam o mecanismo girar ao contrário, passando do modo “concentração de renda e poder” para o estágio “mais igualdade e democracia”.
De um lado, precisamos de um sistema eleitoral menos dependente de dinheiro, adotando o sistema distrital misto, cláusulas de barreiras mais severas, o fim das coligações em eleições para o parlamento e limites ao financiamento de campanha.
Para atingir o outro lado do mecanismo, temos que fechar as torneiras do dinheiro público para as grandes empresas, com o fim de subvenções, regimes tributários especiais, crédito subsidiado e programas de refinanciamento de dívidas fiscais (Refis).
Na articulação entre as engrenagens política e econômica, são necessários aprimoramentos institucionais no relacionamento entre empresas e os Três Poderes da República, atacando as moedas de trocas à disposição deles: redução dos cargos em comissão, privatização de muitas estatais, regras orçamentárias mais transparentes, fim de medidas provisórias e regulação do lobby, reforma do sistema recursal e de regras de prescrição, limitação drástica do foro privilegiado, entre outras medidas.
Sem reformas concretas que ataquem o modo de funcionamento desse sistema, continuaremos nesse roteiro arrastado do combate à corrupção no país – em que foros privilegiados, embargos, indultos e habeas corpus concedidos pelo Judiciário farão o mocinho sempre levar a pior no final.
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