O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O novo trem da alegria de Jucá, Randolfe e companhia ilimitada https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/03/o-novo-trem-da-alegria-de-juca-randolfe-e-companhia-ilimitada/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/08/03/o-novo-trem-da-alegria-de-juca-randolfe-e-companhia-ilimitada/#respond Fri, 03 Aug 2018 05:00:36 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=436 Emenda Constitucional aprovada no final do ano passado cria a possibilidade de admissão de milhares de servidores públicos sem concurso, ameaçando situação fiscal no próximo governo

Devido a condições especiais de relevo e correntes marítimas, o litoral da Califórnia é rico em diversidade marinha. Com a corrida do ouro, no final do século XIX, uma colônia de imigrantes chineses, e depois italianos, se estabeleceu na região de Monterey, passando a viver da pesca de sardinhas. Em 1902, um norueguês montou a primeira fábrica de latas, resolvendo o problema da perecibilidade do produto e ampliando consideravelmente o mercado consumidor.

Durante as duas guerras mundiais, as sardinhas de Monterey aplacaram a fome dos exércitos aliados com suas latinhas práticas e ricas em proteína. Com a demanda em alta, dezenas de fábricas foram abertas, milhares de pessoas migraram para a região para trabalhar na pesca e no processamento do produto e uma nova tecnologia de barcos foi desenvolvida para capturar os imensos cardumes da região. Em 1946 chegaram a ser pescadas 142 mil toneladas de sardinhas na região.

Em 1953, subitamente, as sardinhas desapareceram. Os loucos anos anteriores não respeitaram o tempo de reprodução da espécie, levando as fábricas à falência e milhares de pessoas ao desemprego. A decadência da região de Monterey perdurou por décadas, até o turismo surgir como opção, já no final do século XX. No antigo cais da cidade, as antigas fábricas de sardinhas deram lugar a restaurantes e a um imenso aquário criado por David Packard, um dos criadores da HP, para celebrar a importância da diversidade marinha. Sinal dos tempos.

O caso da indústria de sardinhas no litoral da Califórnia é um exemplo clássico da “tragédia dos comuns”, uma expressão cunhada pelo economista britânico William Forster Lloyd no século XIX e, muito tempo depois, em 1968, popularizado pelo filósofo e ecologista Garrett Hardin: recursos naturais à disposição de todos tendem a ser extintos porque não há limites à ganância humana. Na lógica do cada um por si, da maximização do lucro individual, acabamos matando nossas galinhas dos ovos de ouro. Em outras palavras, um recurso de uso coletivo está fadado à escassez se não houver regras claras de propriedade ou de regulação que limitem a sanha individualista e garantam a sua exploração sustentável ao tempo. 

No Brasil do início do século XXI, porém, estamos sujeitos a outro problema, que eu chamarei aqui de “tragédia dos incomuns”: um bem de uso coletivo (os recursos públicos) vem sendo explorado de modo desenfreado por políticos e grupos de pressão (os incomuns) que agem visando estritamente seu interesse particular em detrimento da coletividade. E assim estamos avançando de modo acelerado rumo a uma tragédia social de escassez e crise, onde em breve não teremos recursos para mais nada.

Quem acompanha este blog é testemunha de como, no último ano, venho chamando a atenção para diversos aspectos dessa superexploração dos recursos públicos pelos incomuns da política brasileira. De subsídios governamentais a regras especiais de imposto de renda para setores com grande poder de pressão, passando por políticas de incentivo sem qualquer avaliação de sua eficácia, nosso orçamento público vem sendo comprometido pelo apetite voraz de quem só enxerga seu benefício privado.

Para demonstrar como nossos políticos incomuns estão levando o país à tragédia de modo sorrateiro, veja o caso da Emenda Constitucional nº 98/2017, promulgada pelo Congresso no final do ano passado. O objetivo dessa emenda foi possibilitar a qualquer pessoa que tenha participado da criação dos Estados de Roraima e Amapá ser admitido, sem concurso público, como servidor da União.

Se você é experiente o suficiente para se lembrar da Assembleia Constituinte ou acompanha minimamente a política brasileira, deve se recordar do famoso “trem da alegria”, um dispositivo colocado na Constituição de 1988 que permitiu a milhares de pessoas serem admitidas no serviço público federal sem passar por concurso. 

No caso dos servidores dos ex-territórios transformados em Estados naquele período (Roraima, Amapá e Rondônia), ainda houve duas novas partidas do trem da alegria, sempre patrocinadas por influentes políticos da região, com as Emendas Constitucionais nº 19/1998 e 79/2014.

A nova EC nº 98, por sua vez, abriu a maior de todas as janelas para quem quer se tornar servidor público federal nos estados de Roraima e Amapá sem precisar recorrer a editais, cursinhos preparatórios ou meses de estudo. Pela sua redação e forma de tramitação fica evidente como a atuação descompromissada de políticos e grupos de interesses está levando o país à exaustão de seus recursos orçamentários.

A proposta foi capitaneada pelo senador Romero Jucá (MDB) e faz um agrado ao seu curral eleitoral à custa de todos os brasileiros. Em tempos de Lava Jato e com os velhos caciques políticos na berlinda, o senador de Roraima agiu estrategicamente visando o benefício próprio para angariar milhares de votos oferecendo a seus eleitores a possibilidade de se tornarem servidores públicos federais, com estabilidade no emprego e salários acima do mercado.

Segundo a justificativa da medida, “muito embora as normas constitucionais vigentes tenham procurado dispor, de forma exaustiva, sobre a situação das pessoas que hajam mantido relações ou vínculos de trabalho com o Estado ou o ex-Território de Roraima, assim como com o do Amapá, durante a fase de sua implantação, a complexidade e as especificidades de cada caso vertente impediram que se o fizesse de maneira absolutamente perfeita e exata”. 

Embora aponte que existiam falhas na legislação anterior que deixaram lacunas em relação a quem atuou na transição dos ex-Territórios para os atuais Estados, os senadores não apontam quais são elas ou quais as causas das citadas injustiças. Também não há estimativa nenhuma de quantas pessoas estariam sendo prejudicadas. O texto de apresentação da PEC tem apenas quatro parágrafos, uma coleção de frases vagas e vazias de conteúdo, culminando com um comovente “precisamos, agora, retribuir, ao menos parcialmente, o muito que essas pessoas contribuíram não apenas para que se implantasse o poder público local, mas, principalmente, para que Roraima e o Amapá se erguessem como unidades da federação”.

Se a justificativa é vazia, a redação dos dispositivos é repleta de conceitos indeterminados e bastante elástica. É só dar uma olhada na amplidão (de tamanho e de sentidos) do art. 31, que designa quem tem direito a virar servidor da União com a nova regra:

“Art. 31. A pessoa que revestiu a condição de servidor público federal da administração direta, autárquica ou fundacional, de servidor municipal ou de integrante da carreira de policial, civil ou militar, dos ex-Territórios Federais do Amapá e de Roraima e que, comprovadamente, encontrava-se no exercício de suas funções, prestando serviço à administração pública dos ex-Territórios ou de prefeituras neles localizadas, na data em que foram transformados em Estado, ou a condição de servidor ou de policial, civil ou militar, admitido pelos Estados do Amapá e de Roraima, entre a data de sua transformação em Estado e outubro de 1993, bem como a pessoa que comprove ter mantido, nesse período, relação ou vínculo funcional, de caráter efetivo ou não, ou relação ou vínculo empregatício, estatutário ou de trabalho com a administração pública dos ex-Territórios, dos Estados ou das prefeituras neles localizadas ou com empresa pública ou sociedade de economia mista que, constituída pelo ex-Território ou pela União para atuar no âmbito do ex-Território Federal, haja sido extinta, poderá integrar, mediante opção, quadro em extinção da administração pública federal.” Colorir.

Traduzindo o texto (propositalmente?) confuso, a nova legislação permite que três grupos distintos de pessoas possam optar para fazer parte como servidores da Administração Pública Federal:

i) Qualquer servidor público federal ou municipal (incluindo autarquias e fundações, policiais civis e militares) que estivem prestando serviço aos ex-Territórios de Roraima e Amapá ou às prefeituras dos municípios localizados lá na data em que foram transformados em Estado;

ii) servidores (incluindo policiais civis e militares) admitidos pelos Estados de Roraima e Amapá entre a criação dos Estados e outubro de 1993; e o mais chocante deles:

iii) qualquer pessoa que comprove ter mantido relação, vínculo funcional ou relação de emprego ou trabalho para os ex-territórios, Estados, prefeituras, inclusive empresas públicas ou sociedades de economia mista até outubro de 1993.

Pela extensão dessas hipóteses e o caráter indeterminado das condições, imagino que não será difícil para um cidadão residente em Roraima ou no Amapá no período pleitear sua passagem no trem da alegria de Jucá, principalmente porque os meios comprobatórios são igualmente frouxos e as benesses são imensas.

De acordo com os parágrafos 4º e 5º do citado artigo, vale praticamente qualquer meio de prova para ter direito aos benefícios: contrato, convênio, ajuste, ato administrativo, contrato de cooperativa, recibo, comprovante de depósito em conta bancária, emissão de ordem de pagamento ou nota de empenho. A única condição é que os serviços tenham sido prestados por, pasmem, 90 dias. 

Mas o melhor da festa está no primeiro parágrafo: uma vez feita a opção, o enquadramento se dará em cargo equivalente da Administração Federal em reação aos serviços prestados. Ou seja: se um médico foi contratado por apenas 90 dias para atender em um posto de saúde nos ex-Territórios, ele terá direito a se tornar um membro da carreira federal de médicos (perito do INSS, talvez…). O mesmo vale para quem foi contratado para prestar um serviço como advogado de uma prefeitura qualquer nesses antigos territórios; esses sortudos cidadãos poderão pleitear receber como advogados da União, fazendo jus a salários de quase R$ 30 mil mensais. 

E ainda tem mais: pelo parágrafo 3º, todo esse contingente indeterminado de pessoas poderá ser cedido aos Estados de Roraima e do Amapá ou a seus municípios, sendo custeados pela União. Uma bela sacada para aliviar a grave crise fiscal enfrentada por esses Estados, não? 

O impacto dessa Emenda Constitucional promete ser brutal e é assustador o fato de que nenhum deputado ou senador tenha se dado ao trabalho de solicitar uma avaliação de seu efeito sobre as contas públicas. Aliás, é assustador o fato de que praticamente nenhum parlamentar tenha levantado a voz contra esse absurdo fiscal.

A análise da tramitação legislativa dessa PEC revela, ainda, que, quando se trata de lesar os cofres públicos, direita e esquerda se abracem fraternalmente, deixando de lado qualquer diferença ideológica ou animosidade em relação à situação política recente. Aliás, o trem da alegria de Jucá foi relatado simplesmente por Randolfe Rodrigues (Rede/AP), severo crítico das articulações do MDB no impeachment de Dilma. 

Deixando qualquer desavença política de lado, o senador amapaense emitiu seu primeiro parecer no tempo recorde de 24 horas, tendo ainda trabalhado em versões posteriores buscando a expansão das benesses do texto inicial. Seu voto é repleto de afirmações genéricas e elogiosas, abusando de expressões como ˜interesse público e social˜, “tratamento isonômico” e “viabilidade financeira”, mas sem se dar ao trabalho de demonstrá-las concretamente.

Ao longo do trâmite legislativo, a proposta recebeu 6 emendas no Senado e 12 na Câmara, todas destinadas a ampliar os seus efeitos e tornar as suas condições mais vantajosas. Nenhum parlamentar se esforçou para propor dispositivos para fechar um pouco a porteira por onde podem passar milhares de novos servidores públicos federais sem concurso.

Aliás, no afã de assaltar o Erário para fins políticos e eleitorais, vale até mesmo jogar na lata de lixo discursos históricos em favor da responsabilidade fiscal. Afinal, como explicar a presença, como co-autores do trem da alegria de Jucá, paladinos da moralidade nas finanças públicas como José Serra, Antonio Anastasia ou Aloysio Nunes Ferreira, todos do PSDB? 

É bom lembrar também que a proposta de Jucá (aquele do “acordo nacional, com o Supremo, com tudo”)  também foi subscrita por petistas representativos como Paulo Paim e Walter Pinheiro, bem como a aliada de primeira hora Vanessa Grazziotin (PCdoB),  formando uma composição suprapartidária contra as contas públicas.

Para quem acompanha o processo legislativo brasileiro, não há surpresa nenhuma: quando é possível das privilégios para alguns e apresentar a conta para a sociedade em geral, nossos políticos e partidos são bastante coerentes e atuam em sintonia.

Por falar em coerência partidária, TODOS os líderes de partidos se posicionaram a favor do trem da alegria na votação da Câmara (para ser justo, o PPS liberou seus membros a votarem como bem entendessem, o que dá no mesmo). A proposta foi aprovada de forma quase unânime em dois turnos nas duas Casas legislativas, praticamente sem qualquer oposição ou questionamento.

Com parlamentares tão vorazes em atacar nossos limitados recursos públicos em prol de sua sobrevivência política, só podemos esperar nossa completa extinção como nação num futuro breve. Essa é a tragédia dos incomuns para a qual estamos condenados.

Post anterior: Perdida a copa, é hora de cair na real

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Vai fundo! https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/28/vai-fundo/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/28/vai-fundo/#respond Thu, 28 Sep 2017 06:00:47 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=173 O projeto de lei que cria o Fundo Especial de Financiamento de Campanha aprovado no Senado é cheio de artimanhas para garantir a sua aprovação e alguns bilhões para os partidos na próxima eleição

Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal

“Homenagem ao Malandro” (Chico Buarque)

Nos últimos tempos, eles praticamente só pensam nisso. Depois que o Supremo Tribunal Federal proibiu as doações de empresas e a Lava Jato aumentou a aversão ao risco de ser pego em Caixa 2, o Congresso tenta a todo custo garantir mais dinheiro público para financiar suas campanhas.

A primeira tentativa foi com o famigerado Fundo Especial de Financiamento da Democracia, um eufemismo que pretendia tungar R$ 3,6 bilhões do Erário e destiná-los para os partidos financiarem seus candidatos em 2018. A reação da sociedade a essa proposta – e também ao distritão – foi tão grande que a proposta do relator Vicente Cândido (PT/SP) na PEC nº 77/2003 acabou empacando na Câmara.

Mas a equação da política brasileira é muito clara: mais dinheiro significa mais chances de ser reeleito – e isso ainda pode proporcionar, a quem interessar possa, a manutenção de foro privilegiado e uma maior probabilidade de escapar da prisão.

Por isso nossos parlamentares ainda não jogaram a toalha. E convocaram o Resolvedor Geral da República para elaborar uma proposta mais palatável para a opinião pública e que obtenha os votos necessários para ser aprovada até o próximo dia 07/10 – prazo máximo para que as mudanças na legislação eleitoral valham para 2018.

O substitutivo do senador Romero Jucá (PMDB/RR) ao PLS nº 206/2017, recém aprovado no Senado, contém uma série de artimanhas voltadas para garantir que o fundo público para as campanhas públicas seja finalmente aprovado. Para isso, até o nome do Fundo foi alterado: saiu o “Fundo Especial de Financiamento da Democracia” (um escárnio para o cidadão) e entrou o direto “Fundo Especial de Financiamento de Campanha”.

Denominação à parte, t00enho que reconhecer que a proposta do Senado é melhor do que a concebida na Câmara, mas contém algumas malandragens para beneficiar quem controla o jogo político.

Quem vai pagar a conta?

O grande apelo do projeto de Jucá está no impacto fiscal. Para começar, alardeia-se que o valor do fundo ficará em R$ 1,7 bilhão, o que é menos da metade do montante proposto na Câmara. Além disso, Jucá defende que o impacto fiscal da medida será nulo: os recursos viriam de emendas parlamentares e do fim da propaganda política partidária anual (que apesar de ser chamada de “gratuita”, é subsidiada por isenção fiscal para rádios e TVs). Ou seja, o dinheiro a ser destinado para o fundo das campanhas viria de despesas já existentes, não comprometendo o orçamento.

Mas temos um problema aí. O projeto prevê destinar 30% do valor das emendas das bancadas estaduais para o financiamento público das campanhas. Sim, isso quer dizer que recursos que seriam aplicados pelos parlamentares em projetos locais (estaduais e municipais) de infraestrutura, saúde, etc. seriam destinados para os políticos gastarem nas suas campanhas políticas. Isso seria legítimo? É a velha tática dos ganhos concentrados (candidatos) e dos prejuízos coletivos (a população beneficiada pelas emendas) que permeia toda a nossa política…

Nesse aspecto, a proposta original do senador Ronaldo Caiado (DEM/GO) era mais radical e não comprometia Estados e municípios: em vez de extinguir apenas as propagandas partidárias (que representam em torno de R$ 300 milhões em anos não eleitorais), acabaria também o ineficiente Horário Eleitoral “Gratuito” – transferindo mais R$ 600 milhões de compensação fiscal de rádios e TVs para o Fundo de Campanhas. Por mexer num filão das rádios e TVs, imagino que a proposta do senador goiano tenha sido alvo de forte resistência das empresas de comunicação, para as quais o horário político é um grande negócio. Frente ao lobby das emissoras o senador Romero Jucá deve ter preferido jogar a conta para a população – como sempre acontece, aliás.

A outra questão é que ninguém garante que o fundo será constituído por “apenas” R$ 1,7 bilhão. Se você olhar com atenção a redação do caput do art. 16-C do projeto, há um maroto “ao menos equivalente” na definição das fontes de recursos públicos. Ou seja, a proposta trata de um limite mínimo, e não máximo para colocação de dinheiro do contribuinte no fundo. E tem mais: como o orçamento de 2018 ainda está em elaboração, é possível que os parlamentares inflem uma expectativa de receita aqui e realoquem uma previsão de despesa acolá para destinar mais recursos para as emendas estaduais e assim, por tabela, aumentar a cota prevista para o Fundo das Campanhas. Além disso, nunca é demais lembrar que a Emenda Constitucional que estabeleceu o teto de despesas não se aplica aos gastos com eleições (veja o novo art. 107, § 6º, III, do Ato das Disposições Transitórias da  Constituição). Ou seja, o projeto de Jucá não deixa de ser um cheque em branco dado ao Congresso para definir o valor do fundo de financiamento de campanhas.

Quem sai ganhando?

A proposta de Jucá também é engenhosa no que se refere à distribuição do bolo de dinheiro do fundo das campanhas – e com isso ela pretende seduzir os amigos do rei.

Segundo a versão inicial do projeto da Câmara, relatado por Vicente Cândido (PT/SP), os recursos seriam repartidos entre os partidos da seguinte forma: 2% divididos igualmente entre todos os partidos com registro no TSE e os outros 98% segundo os votos recebidos por cada agremiação nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2014.

A fórmula de Jucá é bem mais engenhosa. Os valores serão atribuídos a cada legenda de acordo com a seguinte equação: 2% repartidos igualmente entre todos os partidos, 49% segundo a votação para deputado federal em 2014, 34% de acordo com a bancada atual na Câmara e 15% conforme a bancada atual no Senado.

Ao inserir no cálculo o resultado das mudanças de configuração na Câmara e no Senado ocorridas na atual legislatura, Jucá altera bastante a destinação de recursos para as campanhas de 2018, conforme pode ser visto no gráfico abaixo, calculado com base na estimativa total de R$ 1,7 bilhão para o fundo:

O gráfico mostra quanto cada partido ganha ou perde com a criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha
Elaboração própria a partir de dados do TSE, Câmara dos Deputados e Senado.

Os ganhadores com a proposta de Romero Jucá aprovada no Senado são nítidos: o PMDB e o DEM (partidos que comandam o Planalto, a Câmara e o Senado) e alguns partidos do Centrão (Podemos, PP, PR e PSD). Rede e PSB também teriam sua posição melhorada.

Os principais perdedores seriam os partidos que dominaram a política brasileira nas duas últimas décadas: PT e PSDB.

A aposta de Jucá, nesse caso, é que a base aliada do governo, a ser agraciada com alguns milhões a mais de dinheiro público em 2018, seja suficiente para aprovar o projeto até o fim da semana que vem. Mas será que os partidos perdedores irão deixar?

E o poder dos caciques continua…

O projeto aprovado no Senado também reserva grande poder para os caciques partidários.

Caberá à executiva nacional de cada partido definir o percentual a ser aplicado nas campanhas de presidente, senador, governador, deputados federal e estadual (e, nos outros anos, para prefeitos e vereadores).

Além disso, caberá à executiva definir quanto receberão os candidatos a cada cargo. Se virar lei, o projeto de Jucá determina uma distribuição igualitária de 30% dos recursos recebidos pelos partidos para seus candidatos ao mesmo cargo, mas os outros 70% serão livremente alocados pela executiva nacional.

Nesses tempos em que boa parte do Congresso está na mira da Lava Jato e os parlamentares buscam desesperadamente se reeleger, as cúpulas dos partidos ganharão ainda mais poder – pois a chave do cofre ficará nas suas mãos.

É por essas e outras que é bom desconfiar desses projetos aprovados a toque de caixa para destinar mais recursos públicos para políticos. Malandragem é o que não falta.

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O “grande acordo nacional” passa pela reforma política https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/#respond Fri, 07 Jul 2017 02:11:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=81 A esta altura do campeonato já está claro que a “Operação Machado-Jucá” encontra-se em curso acelerado. Para quem não se lembra, trata-se do diálogo entre o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o senador Romero Jucá para fazer “um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, porque “aí parava tudo”, “delimitava onde está, pronto”.

Nas últimas semanas, tivemos a absolvição da chapa Dilma-Temer por “excesso de provas”, a Segunda Turma do STF concedendo habeas corpus para libertar várias figuras sob prisão preventiva (Genu, Bumlai, Eike Batista, José Dirceu), a indicação ultra-rápida de uma nova Procuradora-Geral da República que não é alinhada com o atual chefe do MP (e, por tabela, da Lava Jato) Rodrigo Janot, a sucessão de decisões do Supremo e do Senado aliviando a barra de Aécio Neves e sua família, a decisão da Polícia Federal de encerrar as atividades da sua força-tarefa na Lava Jato em Curitiba…

O processo está tão engrenado que nem a peça central do plano Machado-Jucá parece tão imprescindível assim, uma vez que crescem as movimentações para que Rodrigo Maia, o Botafogo, substitua Michel Temer, que se mostra menor a cada dia.

Nesse cenário, a aprovação de uma nova reforma política se prestaria a garantir que tudo continue como dantes no quartel de Abrantes.

No último post deste blog defendi que a proposta de criação do “distritão” e de um fundo de R$ 3,5 bilhões para financiar as campanhas eleitorais é uma estratégia de sobrevivência dos políticos enrolados com a Operação Lava Jato.

A lógica é simples: como os partidos receberão uma bolada de recursos públicos para gastar nas eleições e os caciques regionais continuarão tendo liberdade para distribuir o dinheiro entre os candidatos, é muito provável que os maiores beneficiados sejam eles mesmos. Com isso, aumentam suas chances de reeleição e, assim, permanecem com todas as regalias, proteções e, o que é mais importante, o foro privilegiado – pois do jeito que as coisas vão ele não será extinto nunca.

Para ilustrar meu raciocínio, fiz um gráfico mostrando como os partidos distribuíram seus recursos de forma extremamente desigual entre os candidatos de cada Estado nas eleições de 2014, com um detalhe importante: destaquei os deputados federais envolvidos na Lava Jato, segundo levantamento feito pela Folha.

No gráfico acima as bolinhas representam, em cada Estado, o valor repassado pelos partidos políticos a seus candidatos. Vê-se que há uma disparidade imensa, com alguns poucos privilegiados recebendo valores extraordinários – Benito Gama (PTB/BA) é o campeão, com quase R$ 6 milhões – e a maioria recebendo muito pouco, ou nada.

Em amarelo estão destacados os deputados federais investigados na Lava Jato por receber propinas ou dinheiro de caixa dois. Como pode ser visto, a maioria deles figura entre os principais beneficiários na partilha de recursos arrecadados pelos partidos.

Se você tiver a curiosidade de analisar a situação por partido (selecionando na caixa no topo do gráfico), vai ver que muitos dos artífices do “grande acordo nacional” estão nesse grupo: Eduardo Cunha (o pai do impeachment), o próprio Rodrigo Maia, Rodrigo Rocha Loures (o da mala de dinheiro, à época um dos braços direitos de Temer), Paulinho da Força, Bruno Araújo (PSDB/PE, ministro das Cidades, o homem do “sim” decisivo no impeachment), além de figuras proeminentes da oposição que estão se prestando a esse papel, como Vicente Cândido (PT/SP, relator da reforma política) e Carlos Zarattini (PT/SP).

Todos eles investigados.

Todos eles de olho na bolada de recursos públicos que será destinada aos partidos caso a reforma política seja aprovada.

Todos eles buscando a reeleição e a manutenção do foro privilegiado.

Todos eles personagens-chave no “grande acordo nacional” para barrar a Lava Jato.

Essa é a reforma política do projeto Machado-Jucá. “Pra parar tudo”. Pra “estancar a sangria”. “Pra chegar do outro lado da margem”.

Caro(a) leitor(a), não se perca no noticiário frenético da política. Não desperdice seu ímpeto cívico atacando petralhas ou coxinhas. Preste atenção na reforma política – o diabo mora nos detalhes.

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