O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Um Ano Novo de muito dinheiro no bolso (para alguns) https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/01/05/um-ano-novo-de-muito-dinheiro-no-bolso-para-alguns/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/01/05/um-ano-novo-de-muito-dinheiro-no-bolso-para-alguns/#respond Fri, 05 Jan 2018 14:10:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=246 Ao longo de 2017 o governo continuou alimentando as engrenagens da concentração de renda por meio do Refis e de renúncias fiscais. É bom lembrar disso em 2018, ano de eleições

Adeus, ano velho!
Feliz ano novo!
Que tudo se realize
No ano que vai nascer!
Muito dinheiro no bolso,
Saúde pra dar e vender!
Para os solteiros, sorte no amor
Nenhuma esperança perdida
Para os casados, nenhuma briga
Paz e sossego na vida

(“Fim de Ano” – David Nasser e Francisco Alves)

Janus é o deus romano das passagens, dos portais, das transições. Ele é representado sempre com duas faces: uma olhando para trás, outra para frente. Passado e futuro. Para muitos, o primeiro mês do ano se chama Janeiro em homenagem a Janus. Faz sentido. A cada recomeço, fazemos um balanço do ano que se passou e planos para o que virá.

E levando em conta que neste ano teremos as eleições mais incertas da história, precisamos da inspiração de Janus para extrair, dos fatos e dados de 2017, os sinais sobre o que vem por aí em outubro de 2018.

Enquanto estudos recentes divulgados aqui na Folha demonstram que a desigualdade no Brasil é muito maior do que se imaginava e que os filhos de quem já se encontra no topo da pirâmide social têm 14 vezes mais chances de permanecer nele do que aqueles que não nasceram em berço esplêndido, interromper o ciclo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos e fazê-lo girar ao contrário deveria ser o tema crucial da atual campanha eleitoral. Mas, se olharmos para o ano que passou, não é difícil constatar que o sistema continuou a funcionar em prol da concentração de renda.

São vários os mecanismos que alimentam esse processo no Brasil, mas o principal deles talvez esteja em nosso sistema tributário. Todos concordam que ele precisa ser reformado, mas ninguém está disposto a arriscar pagar mais. No capitalismo de compadrio brasileiro, a melhor estratégia é reclamar da alta carga tributária e, nos bastidores, buscar algum benefício fiscal, isenção, subsídio ou Refis para ser “compensado” pela sanha do leão.

Nesse campo das renúncias fiscais, tivemos duas importantes conquistas: a criação da Taxa de Longo Prazo (TLP), que colocará uma trava nas centenas de bilhões de reais de subsídios concedidos pelo BNDES ao grande empresariado nacional, e a nova regulamentação do Fies, que estancará uma sangria que beneficiou de forma desregrada alguns grupos educacionais – também cheios de conexões políticas.

À parte esses dois avanços – que devem ser aplaudidos de pé, uma vez que são tão raros –, o que se viu no Congresso Nacional no ano passado foi mais do mesmo: grupos de interesses se organizando pela manutenção de benefícios, parlamentares ligados a grandes empresas em dívida com o Fisco batalhando por mais um Refis e um governo que, na incessante busca por sobreviver, não sabe dizer “não”.

Aliás, o Refis foi a estrela do ano no quesito “rent seeking”: tivemos um para as dívidas tributárias (rebatizado de PERT), outro para as não tributárias (PRD) e ainda um terceiro para as dívidas rurais (PRT). Como se não bastasse transmitir a péssima mensagem de que no Brasil não vale a pena pagar impostos em dia, nessa brincadeira o governo abriu mão de R$ 16,4 bilhões nos próximos três anos, segundo cálculos conservadores feitos pelo próprio governo.

Além disso, enquanto o mundo todo clama por uma nova matriz energética renovável, e mesmo sabendo que na raiz do maior escândalo de corrupção de que temos notícia estava a exploração de petróleo, o final do ano veio com um presentão para o setor de óleo e gás: um regime tributário especial que, só nos próximos 3 anos, deixará de recolher R$ 20 bilhões de impostos e contribuições para os cofres públicos.

Ainda na base da pressão, o setor de cinema e audiovisual conseguiu arrancar do governo (na verdade, de toda a sociedade, pois somos nós que pagaremos a conta) uma prorrogação do Recine, programa de estímulo para montagem de salas de exibição, e do uso do imposto de renda para produção de filmes. Não é nada, não é nada, mas são aproximadamente R$ 300 milhões por ano nesses programas, prorrogados sem nenhuma análise mais profunda sobre a sua efetividade. Como expus aqui, trata-se de um programa que, de forma geral, deixa de apoiar as produções realmente independentes em favor daquelas vinculadas a grandes estúdios ou redes de televisão, que conseguiriam se financiar sem a ajuda do Estado.

Também foram contemplados com a prorrogação de benefícios fiscais que iriam se extinguir o setor de navegação das regiões Norte e Nordeste e as indústrias que se valem desse modal de transporte. A não incidência do Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante – AFRMM foi estendida até 2022. Essa conta representa R$ 870 milhões por ano.

A tabela apresenta a estimativa de renúncia tributária do Governo Federal com leis e medidas provisórias aprovadas e editadas em 2017.
Fonte: Elaboração do autor a partir das Exposições de Motivos de Medidas Provisórias e dos Demonstrativos de Gastos Tributários – PLOA 2017 e 2018.

E não parou por aí. Diante da resistência dos grupos de interesses, o governo recuou e revogou a MP nº 774/2017, que pretendia extinguir a desoneração da folha de pagamentos de dezenas de setores. Para 2018, o governo já colocou no Orçamento uma perda esperada de R$ 14,8 bilhões com esse programa, cuja história apresentei em outro texto aqui do blog.

Somando os benefícios fiscais estabelecidos e prorrogados em 2017 com a desoneração da folha – que deveria ser revogada, mas não foi – são R$ 27 bilhões de receita que o governo abriu mão em 2018 em favor de grandes empresas nacionais e multinacionais e devedores contumazes do Fisco. Isso é praticamente o orçamento anual do Bolsa Família (R$ 28,7 bilhões) ou quase o dobro do que o governo federal pretende reforçar para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos profissionais da Educação – o Fundeb (R$ 14 bilhões).

Orçamento é questão de escolha. E entre reduzir ou aumentar a desigualdade via transferência direta de renda para os mais miseráveis ou investir na educação básica, em 2017 nós continuamos privilegiando os grandes grupos que têm poder de pressão sobre os políticos.

E levando em conta que quem está no comando de três importantes prédios no centro do poder de Brasília – o bloco P da Esplanada dos Ministérios, o Palácio do Planalto e a cúpula convexa do Congresso Nacional – são, assumidamente ou não, pré candidatos à Presidência da República, neste início do ano é bom fazer como Janus e olhar para trás para ver o que eles podem criar no futuro.

Mas é importante ressaltar que essa explicação de que janeiro se chama assim por causa de Janus não é unanimidade. Existe outra teoria que atribui o nome do mês a Juno, a esposa de Júpiter, o deus dos deuses. Juno era mãe de Marte e Bellona, Vulcano e Juventus – respectivamente deuses da guerra, do fogo e da juventude.

Numa corrida eleitoral que se vislumbra como a mais agressiva de todos os tempos, com o líder das pesquisas declarando guerra à Justiça, o segundo colocado defensor da tolerância zero e um novato na política correndo por fora, talvez seja a explicação mais adequada para o Brasil atual.

De uma forma ou de outra, desejo aos leitores um excelente 2018!

 

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Compra-se tudo, tudo se vende https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/#respond Fri, 21 Jul 2017 11:48:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=105 Tramitação da Medida Provisória que pretendia reduzir os setores beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos revela como as leis no Brasil são mal feitas e movidas pelo interesse econômico

Está ao alcance das mãos, experimente
Como é antigo o passado recente
Dentro de mais alguns instantes
De novo tudo igual ao que era antes
[…]
Compra-se tudo, tudo se vende
É conversando que a gente se entende
[…]
Dinheiro é bom, dinheiro é bom até assim
Ainda é muito bom mesmo quando é ruim
Se você não provou, um dia ainda vai provar
É fácil dizer, difícil é acreditar
E quem é que quer ver as coisas como realmente são?

“Qualquer Negócio” (Britto, Miklos, Gavin, Belloto, Mello, Fromer)

 

No último post, demonstrei como a decisão do governo Dilma de migrar a base de tributação das empresas da folha salarial para o faturamento – conhecida popularmente como desoneração da folha de pagamentos – tornou-se um grande negócio para diversos setores e um problema fiscal bilionário que afeta o financiamento da Previdência Social.

O roteiro é bastante típico da forma como fazemos políticas públicas no Brasil, principalmente aquelas relacionadas a incentivos fiscais: i) pega-se uma ideia que pode até ser boa, ii) edita-se uma medida provisória sem nenhum estudo sério sobre suas consequências, iii) a MP é desvirtuada no Congresso para ampliar seus benefícios ou beneficiários e iv) depois de virar lei, editam-se outras MPs para prorrogar prazos de vigência e aumentar ainda mais os incentivos e quem tem direito a recebê-los.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, a ideia inicial era que atendesse 6 setores e gerasse um impacto fiscal de R$ 1,43 bilhão por ano a partir de 2012. No final de 2015 já eram mais de 50 os segmentos contemplados e a conta paga por todos nós chegou a R$ 25 bilhões anuais.

O propósito deste texto é demonstrar como é difícil desarmar essas bombas fiscais que são criadas para atender ao interesse de alguns, com o pagamento a cargo de milhões de contribuintes.

Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma 2, bem que tentou. A duras penas, aprovou a Lei nº 13.161/2015, aumentou as alíquotas e reduziu o rombo para R$ 15 bilhões em 2016.

Agora é a vez de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Temer: editou a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos. Seu plano era reduzir o rombo da desoneração fiscal para menos de R$ 10 bilhões neste ano e abaixo de R$ 2 bilhões em 2018. Ou seja, voltaríamos ao plano original lá de 2011.

De acordo com a Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República para justificar a MP, a restrição da desoneração deve-se a “necessidade de redução do déficit da Previdência Social pela via da redução do gasto tributário, com o consequente aumento da arrecadação”.

Pela leitura desse documento, aliás, vê-se que continuamos tomando medidas importantes sem o necessário estudo prévio – ou, se ele existe, não é transparente e passível de debate pela sociedade.

A Exposição de Motivos, exigida pela legislação para dar satisfação ao público quanto aos requisitos de “urgência” e “relevância” de uma MP, é lacônica (oito parágrafos curtos), não faz menção a qualquer análise técnica e não apresenta justificativas para a escolha dos setores que vão continuar com a desoneração na folha.

Sobre esse aspecto, os dados disponibilizados pela Receita Federal aqui revelam que a geração de emprego parece não ter sido o critério dominante para se manter a desoneração para os setores de transporte terrestre, construção civil e infraestrutura e empresas jornalísticas, em detrimento dos demais. No gráfico abaixo, o tamanho dos polígonos representa o volume de empregados afetados pela medida em cada setor, sendo que a cor verde demonstra aqueles que continuarão tendo direito à desoneração da folha salarial:

 

 

Da mesma forma, tampouco a renúncia fiscal parece ser a razão dominante para a escolha feita pelo governo de preservar alguns setores e acabar com a desoneração de outros:

Mesmo relevando essa falha do governo em realizar estudos prévios ou, talvez, não torná-los públicos, a intenção de rever a desoneração da folha neste cenário de grave crise fiscal é bem-vinda.

Mas querer não é poder. Do outro lado existem interesses muito bem organizados e articulados com quem realmente decide: nossos representantes no Congresso. Pera lá! Representantes de quem?!?!?!

Analisando a tramitação da MP nº 774 no Congresso, é possível concluir, mais uma vez, como o processo de elaboração das leis brasileiras é extremamente permeável à ação de grupos de interesses econômicos. E é importante deixar claro como tudo isso é realizado sob um verniz de democracia e participação social.

Tome-se o caso da audiência pública realizada para discutir a matéria. Observando-se a lista dos participantes, vemos a predominância de representantes dos setores prejudicados pela extinção da desoneração da folha de pagamentos. Convidados pelos parlamentares, esses empresários ou representantes de entidades de representação empresarial têm uma grande oportunidade de estar frente a frente com os parlamentares e ter voz ativa no processo legislativo – vozes que são amplificadas pela cobertura da mídia no Congresso e pelas transmissões da TV Câmara e TV Senado.

Da relação de 11 participantes da audiência pública, apenas um do governo (Receita Federal) e dois representantes dos trabalhadores. Vê-se, portanto, como as audiências públicas no Congresso são um simulacro de canal de participação social, uma vez que a distribuição de suas vagas é extremamente desigual, sendo favorecidos os grupos com maior articulação e acesso aos parlamentares.

Aliás, a apresentação do Coordenador-adjunto do Dieese foi a única a transmitir uma visão relativamente abrangente da questão em debate, revelando como a desoneração da folha de pagamentos não tem efeitos claros sobre a geração de empregos tanto na experiência internacional quanto nos poucos estudos sérios realizados sobre o tema no Brasil até o momento. As demais foram falas interessadas dos setores afetados, com visões catastrofistas sobre os impactos da MP sobre o emprego e a produção – tudo para justificar a manutenção do incentivo.

Outro mito da democracia brasileira desmascarado pelos dados da tramitação legislativa é o da representatividade: em geral os parlamentares são representantes de setores específicos, e não do seu eleitorado ou – suprema ilusão! – da população em geral.

Tome-se o caso das emendas propostas pelos deputados com o objetivo de alterar o texto da MP nº 774. Das 90 emendas propostas, 67 destinavam-se explicitamente (sim, caro(a) leitor(a), eu li todas as emendas!!!) a beneficiar determinado setor, mantendo seu direito à desoneração da folha.

Frise-se que essas emendas não foram propostas com base em critérios técnicos: nas justificativas às emendas não há menção a estudos confiáveis sobre a relação custo-benefício da medida, donde se conclui que o propósito era simplesmente manter o privilégio.

A situação fica mais complicada quando verificamos que, em geral, há um estreito vínculo prévio entre o parlamentar que propõe a emenda e o setor beneficiado por ela.

Como pode ser visto na tabela abaixo, na maioria das vezes o senador ou deputado que propõe uma emenda destinada a manter a desoneração para um setor já tem um relacionamento com ele. Essa relação é expressa tanto em termos de uma participação em frentes parlamentares de apoio ao segmento (as famosas “bancadas” empresariais) ou, pela via mais direta, doações de campanha vindas de empresas que atuam naquele ramo.

 

Fonte: Dados coletados pelo autor, a partir de informações das páginas da Câmara, do Senado e do TSE.

Na tabela acima pode-se ver emenda de deputado que recebeu doações da Embraer propondo a manutenção da desoneração para a indústria aeronáutica, parlamentar que é presidente da Frente de Apoio ao Setor Calçadista defendendo a continuidade do benefício para as empresas do setor de calçados e couros, emendas voltadas para o setor frigorífico – carnes e derivados, suínos e avicultura – sendo propostas por congressistas da frente ruralista que receberam doações da JBS e da BR Foods (Sadia, Perdigão e etc).

E por aí vai… as evidências indicam que o processo legislativo é dominado por uma relação íntima entre parlamentares e o setor empresarial, construído ao longo do mandato – as frentes parlamentares são uma indicação disso – ou que já vem desde a campanha, por meio do financiamento eleitoral.

No caso em questão não houve nenhuma emenda propondo melhorar o sistema de desoneração, aperfeiçoando seus mecanismos de funcionamento ou eliminando eventuais distorções. A discussão se pautou apenas para tentar manter o incentivo fiscal para este ou aquele setor.

Aliás, quanto mais analiso os dados de comportamento parlamentar mais eu me convenço que ele é pautado estritamente pelo vínculo entre políticos e empresários. Proposição de projetos, relatorias, apresentação de emendas, votação em plenário, etc. não são frutos do debate de ideias, mas sim da retribuição por apoio financeiro nas campanhas ou pela expectativa de recebimento no futuro.

A tramitação da MP nº 774/2017 ainda não terminou. O parecer apresentado pelo relator, senador Airton Sandoval (PMDB/SP, suplente de Aloysio Nunes Ferreira), ainda será debatido em Plenário e, se aprovado, seguirá para o Senado. Mas já podemos ver que a toada é a mesma. As emendas acatadas restituem a desoneração para os principais setores – têxteis, calçados, couro, tecnologia da informação e comunicação e call centers – e ainda inclui as chamadas “empresas estratégicas de defesa”.

Não é por acaso que os setores reincluídos na desoneração estiveram presentes na audiência pública. E certamente não deve ser por acaso que os novos beneficiários (o parecer cita nominalmente a Embraer, a Iveco e a Avibrás) foram colocadas lá.

Como diria a canção dos Titãs que abre este artigo, no processo legislativo brasileiro “tudo se compra, tudo se vende; é conversando que a gente se entende”. “De novo tudo igual ao que era antes”.

 

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Desoneração de alguns e oneração de milhões https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/14/desoneracao-de-alguns-e-oneracao-de-milhoes/#respond Fri, 14 Jul 2017 08:30:30 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=90 Enquanto acompanhamos o julgamento de nossos malvados favoritos, a agenda empresarial avança a toda velocidade no Congresso

O pato vinha cantando alegremente, “quem, quem”
Quando o marreco sorridente pediu
Pra entrar também no samba, no samba, no samba
O ganso gostou da dupla e fez também, “quem, quem”
Olhou pro cisne e disse assim “vem, vem”
Que o quarteto ficará bem, muito bom , muito bem

“O Pato” (Jayme Silva & Neuza Teixeira)

 

Lula, Aécio, Temer, Rodrigo Maia…  Como discutimos sobre o destino que merecem nossos “malvados favoritos” nas investigações e processos que compõem a novela da nossa situação política!

Enquanto nossa atenção se concentra no noticiário político-policial, uma intensa agenda legislativa rentista avança a toda velocidade no Congresso Nacional. Nossos capitalistas que tanto criticam a carga tributária mas que adoram um benefício fiscal e um crédito subsidiado do BNDES têm se movimentado bastante em Brasília – e isso não tem a ver apenas com a manutenção ou substituição de Michel Temer na Presidência da República.

Hoje vou chamar a sua atenção para a reação empresarial contrária à proposta da equipe econômica de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

Para quem não sabe, a partir de 2011, visando estimular o emprego e a produção nacional, o governo mudou a lógica de tributação destinada ao financiamento de nossa Previdência Social. Em inúmeros setores empresariais, a dupla Dilma-Mantega trocou o modelo baseado na folha de pagamentos (com alíquotas em torno de 20%, incluindo contribuições de empregados e empregadores) para um sistema de tributação sobre o faturamento das empresas (atualmente de 1,5% a 4,5%, dependendo do setor).

Essa decisão de política econômica é um exemplo claro de como atua nosso capitalismo rentista, e como é complicado desativar seu funcionamento. Vou explicar por quê.

 

“O pato vinha cantando alegremente”

No início não era o verbo.

Em termos de desoneração da folha de pagamentos, ao editar a Medida Provisória nº 540/2011 a intenção era beneficiar apenas alguns setores bem específicos: TI, equipamentos de comunicação, vestuário, calçados, móveis, couro e peles – segmentos que, na visão do governo à época, estavam tendo dificuldades de recuperar o nível de atividade que tinham atingido antes da crise de 2008/2009.

O programa de desoneração destinava-se a ser temporário (de agosto de 2011 a dezembro de 2012) e ter um impacto orçamentário de R$ 214 milhões em 2011 e R$ 1,43 bilhão no ano seguinte.

Já dizia Caetano que “a vida é real e de viés”, e a verdade é que, em se tratando de medidas provisórias concedendo benefícios, quando passa um boi, passa também uma boiada. E o lobby empresarial tratou rapidamente de mobilizar seus contatos no Congresso para expandir os limites da medida provisória durante a sua tramitação.

 

“Quando o marreco sorridente pediu pra entrar também no samba”

Enquanto a MP nº 540/2011 percorria seu caminho no Congresso Nacional, outros setores pegaram carona nela.

Empresas de call center, de projetos e circuitos integrados, de artigos para academias de ginástica e até de botões, grampos e ilhoses também conseguiram o benefício da desoneração da folha de pagamentos com a conversão na MP na Lei nº 12.546/2011.

E ainda tiveram um bônus adicional: deputados e senadores estenderam o prazo de vigência do programa de 2012 para o final de 2014.

Se você vai seguir este blog, vai ver que isto é muito comum em se tratando de tramitação legislativa no Congresso: ampliação de benefícios, extensão de beneficiários e prorrogação de prazos.

É o rent seeking brasileiro atuando na elaboração de leis.

 

“O ganso gostou da dupla e fez também, ‘quem, quem’ / Olhou pro cisne e disse assim ‘vem, vem’”

Com o programa de desoneração na rua, o pessoal começou a ver que ele valia a pena e seria um excelente negócio.

E por causa disso, até o final de 2014 foram editadas mais seis normas tratando da desoneração da folha de pagamentos: Leis nº 12.715/2012, 12.794/2013, 12.844/2013, 12.873/2013, 12.995/2014 e 13.043/2014.

Todas elas resultantes de medidas provisórias – com tramitação rápida e, portanto, pouco debate junto à sociedade.

Todas elas com pouquíssimos vetos presidenciais – o que demonstra que havia concordância da Presidência da República com o crescimento dos benefícios fiscais.

Todas elas expandindo os setores beneficiados, chegando a milhares de códigos da Tipi, a tabela utilizada para classificar os setores para fins tributários. Eram 28 na primeira MP!!!

Todas elas abaixando as alíquotas de pagamento ou ampliando (até eliminarem) o fim da vigência do programa.

Olhando pra trás, estava na cara que a situação sairia de controle.

 

“Que o quarteto ficará bom, muito bom, muito bem”

Um problema comum nos programas de benefícios fiscais é que a conta geralmente não fecha. E ela sobra para o contribuinte comum – você e eu, pobres mortais do Sistema Tributário Nacional.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, o governo comprou uma promessa (feita pelas empresas beneficiadas, de gerarem ou garantirem empregos) e entregou algo concreto: alívio fiscal para os empresários.

O programa foi concebido deliberadamente para ser deficitário: as alíquotas aplicadas sobre a folha de pagamentos foram trocadas por outras incidentes sobre a receita bruta das empresas, mas num patamar abaixo do que seria neutro do ponto de vista fiscal. O nome disso é renúncia fiscal.

No gráfico abaixo você tem uma dimensão de como o governo abriu mão de recursos crescentes com a desoneração da folha de pagamentos (veja as barras azuis) até o final de 2014, quando terminou a parceria Dilma-Mantega. Esse movimento foi fruto da ampliação do programa para muitos setores (a linha laranja mostra o número de empresas beneficiadas) e da redução das alíquotas (os dados são da Receita Federal e podem ser encontrados aqui):

Como você pode conferir, a renúncia tributária com a desoneração da folha de pagamento para aproximadamente 80 mil empresas superou R$ 25 bilhões em 2015 – um valor equivalente ao orçamento do programa Bolsa Família, que faz a diferença para 14 milhões de famílias no país.

A situação chegou a tal ponto que o Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, Joaquim Levy, chamou a desoneração da folha de uma brincadeira grosseira e bilionária.

Para minorar o problema Levy até conseguiu aumentar as alíquotas sobre o faturamento com a MP nº 669/2015 e a aprovação da Lei nº 13.161/2015, mas o rombo continuou.

 

“A voz do pato era mesmo um desacato, jogo de cena com o ganso era mato”

Não sei se você está acompanhando o raciocínio até agora, por isso vou te relembrar de um fato muito importante: quando falamos de desoneração da folha de pagamentos, estamos tratando de um tributo destinado a financiar a Previdência Social. Sim, amiga(o), a desoneração aumentou o déficit da previdência.

Tanto é assim que a redação original da MP nº 540, em seu art. 9º, IV, já previa que “a União compensará o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da desoneração, de forma a não afetar a apuração do resultado financeiro do Regime Geral de Previdência Social”.

Traduzindo o fiscalês para leigos: o que as empresas deixaram de pagar à Previdência Social em função da desoneração da folha de pagamentos teve que ser compensado por toda a sociedade – seja por meio da redução do orçamento de outros programas governamentais, seja mediante o aumento da dívida pública.

Você pode não ter sentido, mas o dinheiro saiu do seu bolso e foi direto para o empresariado nacional. E a situação é tão grave que você será obrigado a trabalhar alguns anos a mais, porque a conta não fecha.

Com a intenção de corrigir essa distorção – e conseguir uns bilhões extras para atingir a meta de déficit deste ano e do próximo – a equipe de Henrique Meirelles convenceu o Presidente da República a editar, no final de março, a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos.

Como seria de se esperar, o empresariado chiou. Pato, marreco, ganso e cisne – reunidos na Fiesp e em outras entidades patronais – posicionaram-se contra o fim da desoneração da folha.

Se você reparar bem, o discurso dos rentistas é sempre mascarado por algum objetivo público (manutenção do emprego, combate à inflação, aumento da produção nacional, etc.) que esconde seu real interesse: o ganho individual financiado por uma perda coletiva e difusa.

No caso da desoneração da folha, o objetivo do programa era que os empresários utilizassem o ganho fiscal para aumentar a produção e, consequentemente, o emprego.

Na prática, muita gente boa suspeita que isso não tem ocorrido – pelo menos não a ponto de ficar demonstrado que o programa tem dado um resultado social superior ao déficit fiscal que ele alimenta.

É por isso que o Ministério da Fazenda quer botar ordem na casa e cortar a desoneração de muitos setores. Afinal de contas, seria bastante incoerente exigir da sociedade um sacrifício tamanho como a reforma da Previdência e manter um benefício fiscal para empresas que pressiona o déficit previdenciário.

Mas o lobby do empresariado está atento e se mobiliza para barrar ou esvaziar a proposta do governo de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.

E é sobre isso que vamos conversar no próximo texto: como se articulam os interesses empresariais na tramitação da MP nº 774/2017.

O objetivo é não deixar o assunto passar em branco. Porque eles pensam, ao final, que os verdadeiros patos somos todos nós.

 

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