O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Superministério ou o pior emprego do mundo? https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/11/21/superministerio-ou-o-pior-emprego-do-mundo/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/11/21/superministerio-ou-o-pior-emprego-do-mundo/#respond Wed, 21 Nov 2018 04:00:34 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/montagem3-1-320x213.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=575  
A criação do superministério da Economia traz elevados potenciais de ganho, mas os riscos não são desprezíveis à luz de nossa história.

 

Embora por demais arriscada, criação de um superministério da Economia pode ser uma boa medida – a começar pelo nome.

Num país em que a maioria da população não compreende a estrutura governamental, chamar os órgãos pelo seu nome real, deixando de lado as velhas tradições, é didático e transparente. Em pleno século XXI, Economia faz muito mais sentido do que Fazenda.

A ideia, é bom recordar, não é nova. Fernando Collor fez isto em 1990, reunindo as pastas da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio e entregando-as a Zélia Cardoso de Mello, então com apenas 36 anos. Mas o superministério da Economia, assim como o governo que o criou, teve vida curta. Depois do impeachment, rei morto, rei posto: um dos primeiros atos de Itamar Franco foi voltar cada caixinha para seu devido lugar na Esplanada dos Ministérios, recriando o Ministério da Indústria e Comércio (com o dono do Bamerindus, José Eduardo Andrade Vieira) e o Ministério do Planejamento (atribuído ao professor Paulo Haddad). No velho ministério da Fazenda, foram três ministros em sete meses (Gustavo Krause, Paulo Haddad e Eliseu Rezende), até emplacar FHC e o Plano Real.

Quase 30 anos depois, a ideia ressurge, sob os mesmos propósitos de racionalização dos gastos e reestruturação do Estado. No entanto, ilude-se quem pensa que reduzir ministérios é solução para nosso grave problema fiscal. A poupança com a eliminação de cargos em comissão, se houver, será mínima. No caso do superministério da Economia a despesa potencial com comissões nos três ministérios a serem fundidos é de R$ 20 milhões por mês, uma gota no negro oceano de mais de R$ 170 bilhões de rombo por ano, e ainda assim existem importantes senões.

 

A tabela mostra os cargos em comissão dos ministérios da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio Exterior.
Fonte: Elaboração própria a partir dos decretos que estabelecem a estrutura regimental dos respectivos ministérios.

Cada uma das três pastas a serem fundidas tem secretarias, diretorias e departamentos com temáticas muito específicas (que cuidam da gestão de pessoal de todo o governo federal à regulação de loterias), o que dificulta a eliminação de áreas – e consequentemente cargos – devido à superposição de tarefas. Sem dúvida há potencial de enxugamento da estrutura, mas ele é muito menor do que se alardeia por aí.

Some-se a isso o fato de que a maioria desses cargos já é ocupada por servidores de carreira, o que faz com que o valor da despesa com cargos comissionados seja bem menor do que o valor potencial apresentado na tabela acima. Isso se deve ao fato de que, em regra, servidor concursado recebe 60% do “valor cheio” da gratificação quando ocupa uma posição de chefia ou assessoramento. E como pode ser visto no gráfico abaixo, nos atuais ministérios da Fazenda, Planejamento e MDIC mais de 90% dos cargos de chefia e assessoramento são ocupados por aprovados em concursos públicos.

(Aproveitando a oportunidade, é bom afastar aqui outro mito que envolve a reforma ministerial. O tão falado “aparelhamento” do Estado por indicações políticas de partidos é menor do que se alardeia, concentra-se em órgãos específicos e é muito difícil de ser identificado, pois na ocupação de cargos por servidores públicos há que se discernir a nomeação por critérios técnicos daquela realizada por afinidade partidária ou ideológica).

 

O gráfico mostra o percentual de cargos comissionados ocupados por servidores de carreira em cada Ministério.,
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Portal da Transparência do governo federal.
Por fim, o que torna o futuro ministério da Economia um “superministério” também não é o volume de recursos que ele terá à disposição para gastar.  Na proposta orçamentária para 2019, as três pastas que o comporão representam apenas 2,7% de todo o governo federal. Para piorar, um retrato da gravidade de nossa situação fiscal: dos R$ 40,5 bilhões que serão atribuídos ao futuro superministro, mais de 70% estão comprometidos com salários e previdência de seus servidores, fora as outras despesas de custeio.
A tabela mostra os orçamentos previstos para os ministérios da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio Exterior em 2019
Fonte: Elaboração própria a partir do PLOA 2019.

A questão, portanto, não se localiza no enxugamento da estrutura ou no orçamento disponível. Os superpoderes do Ministério da Economia estarão na concentração, sob o mesmo teto e um só comando, da elaboração e execução do orçamento (SOF e Tesouro), da arrecadação tributária (Receita e PGFN), da política monetária (Banco Central), da supervisão do mercado financeiro (Bacen, CVM e Susep), da concessão de crédito oficial (BNDES, Banco do Brasil e Caixa), da política de comércio exterior, da gestão da força de trabalho no governo federal, do patrimônio da União (imobiliário e estatais), além de centenas de políticas setoriais que permeiam secretarias e departamentos dos três ministérios a serem fundidos.

Ter as várias dimensões da política econômica seguindo um mesmo norte é algo raro em nossa história. O potencial de ganhos dessa estratégia é imenso, assim como os riscos de dar errado.

Nestes tempos de equipe de transição, saiu em boa hora o livro “O Pior Emprego do Mundo: 14 ministros da Fazenda revelam como tomaram as decisões que mudaram o Brasil e mexeram no seu bolso” (editora Planeta), de Thomas Traumann. Leve e instrutivo, é um agradável convite a, olhando para trás, imaginar o que pode vir pela frente com gestão econômica do país sob nova direção. Afinal, como diz o ex-ministro Delfim Netto na frase que abre o livro: “nada é mais educativo que o fracasso”.

A seguir apresento os cinco principais riscos que, na minha opinião, o novo superministro da Economia pode incorrer levando em conta as experiências narradas no livro de Thomas Traumann:

1) Coordenação:

Por mais paradoxal que pareça, o principal atrativo da fusão ministerial na área econômica será também o seu maior desafio. Cada um dos ministérios envolvidos tem culturas próprias, carreiras específicas e, muitas vezes, objetivos conflitantes. Traumann cita em seu livro diversos presidentes que compuseram seu ministério de forma a ter contrapontos à visão dominante do Ministério da Fazenda. Para citar dois casos mais recentes: enquanto FHC no seu primeiro mandato colocou o desenvolvimentista José Serra no Planejamento para se opor à ortodoxia de Pedro Malan na Fazenda, Lula também tinha em José Dirceu (Casa Civil) e nos empresários Luiz Fernando Furlan (MDIC), Roberto Rodrigues (Agricultura) e José Alencar (vice-presidente) uma crítica interna ao fiscalismo de Antonio Palocci (Fazenda) e Henrique Meirelles (Banco Central).

Com a criação do superministério da Economia, todas as políticas estarão sob a mesma batuta, e tocar de maneira harmoniosa agendas tão distintas exigirá do maestro e de seus músicos uma afinação rara em nossa história.

2) A resistência de lobbies e grupos de interesses:

Logo nos primeiros meses do governo Figueiredo, Mario Henrique Simonsen pediu demissão da Secretaria de Planejamento, o “superministério” da época, que concentrava o controle do orçamento, as estatais e a política de preços do governo. Sem suporte do governo para levar adiante um plano ortodoxo de combate à inflação, o barítono Simonsen saiu de cena para o retorno ao palco de Delfim Netto, o comandante do “milagre econômico” de 1968 a 1974.

No relato de Thomas Traumann, mais de quinhentos empresários se acotovelaram no salão do Palácio do Planalto para a nova posse de Delfim em 15/08/1979 – todos saudosos das políticas expansionistas da época do Brasil Grande. Essa história dá uma medida de como um ministério com superpoderes sobre a política fiscal, monetária e creditícia, contando ainda com os bancos públicos sob sua tutela, tornará a nova pasta da Economia atraente para lobbies empresariais.

Além disso, implementar um ajuste fiscal do tamanho de nossa crise significa enfrentar corporações e grupos de interesses com grande poder de mobilização e influência política. A reforma da previdência e o combate aos privilégios afeta categorias poderosas em Brasília, assim como desarmar as bombas fiscais criadas pelas bilionárias desonerações e incentivos fiscais concedidos na última década demandará encarar choro e ranger de dentes de setores inteiros que sobrevivem graças às benesses federais. Até quando o superministro conseguirá levar adiante essa cruzada?

3) A governabilidade e as relações com o Congresso:

Traumann defende no seu livro o argumento de que, no seu relacionamento com o Congresso, o ministro da Fazenda sempre joga com as brancas – ou seja, dispõe de um crédito de confiança para aprovar suas políticas iniciais, mesmo que o remédio seja amargo, como foram o confisco da poupança de Zélia, as privatizações com Malan ou o teto de gastos de Meirelles. O problema é que, ao menor sinal de fraqueza, deputados e senadores viram a mesa e tornam o ministro refém de suas vontades.

O futuro presidente do BNDES, Joaquim Levy, sentiu na pele a resistência do Congresso quando foi ministro da Fazenda no segundo mandato de Dilma Rousseff. Ao pressentir que o próprio PT tinha reservas contra suas ousadas medidas de austeridade fiscal, deputados e senadores não titubearam ao barrarem a maioria das propostas de Levy – que, sem sustentação, pediu demissão com menos de um ano no cargo.

Ainda mais recentemente, Henrique Meirelles viu sua reforma da previdência empacar quando Michel Temer perdeu condições de governabilidade após as revelações do Joesley Day. A partir daí, o ímpeto reformista da equipe econômica transformou-se em estratégia de contenção, pois o Congresso viu na fragilidade do presidente uma oportunidade de aprovar medidas expansionistas, como o novo Refis, o Rota 2030 e o recente reajuste do teto do funcionalismo público.

A lua de mel do futuro ministro da Economia, como de todos os seus antecessores, um dia acabará. Seus movimentos iniciais, portanto, devem ser milimetricamente pensados para extrair o máximo de resultados enquanto a maré no Congresso estiver a seu favor. Quando o vento virar, habilidade política talvez venha a ser um ativo mais valioso do que conhecimento técnico.

4) Soberba:

Quanto mais poder, mais visado se torna o cargo. Na selva de Brasília, cada palavra deve ser cuidadosamente sopesada para não ser o estopim de uma crise que pode custar a cabeça de quem a profere. Rubens Ricupero, ministro da Economia que sucedeu FHC nos primórdios do plano Real, sentiu-se excessivamente à vontade numa entrevista a Carlos Monforte, na Rede Globo, abusando dos elogios à sua própria gestão. Sem saber que suas palavras estavam sendo transmitidas nacionalmente para as antenas parabólicas, soltou o clássico “eu não tenho escrúpulos, o que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde”. A repercussão foi tamanha que, no dia seguinte, viu-se obrigado a pedir demissão do cargo. Ficou a lição de como um trabalho bem sucedido pode ruir da noite para o dia quando se baixa a guarda.

5) O apoio presidencial:

Na visão de Traumann, o cargo de ministro da Fazenda seria o pior emprego do mundo porque, a cada divulgação das dezenas de indicadores econômicos (PIB, inflação, emprego, câmbio, produção industrial, etc.) o nó da forca que adorna o pescoço do ministro se aperta ou se afrouxa de acordo com o resultado. Por sua vez, seu chefe, o Presidente da República, só se interessa por um índice: o da sua própria popularidade.

Na situação atual, em que temos uma crise fiscal urgente a debelar, é razoável questionar até quando o novo ministro terá crédito com o presidente se seus índices de popularidade começarem a fraquejar.

É preciso lembrar que, na história brasileira recente, poucos ministros gozaram de apoio presidencial duradouro para um ajuste fiscal vigoroso. Os exemplos mais eloquentes talvez sejam Malan após a crise de 1999 (quando implementou o tripé macroeconômico junto com Armínio Fraga), Palocci até a crise do Mensalão e Meirelles antes das denúncias contra Temer na Lava Jato. Como regra geral, ou o ocupante do Palácio do Planalto apoia a frouxidão fiscal do ministro da Fazenda (o caso clássico é Guido Mantega em Lula II e Dilma I) ou os presidentes simplesmente não têm paciência de esperar o resultado do aperto nos cintos.

No caso atual, como o presidente eleito é um recém convertido ao conservadorismo econômico, as dúvidas sobre seu comprometimento com as ideias do futuro superministro são pertinentes.

Como bem aponta Alan Blinder, ex vice-presidente do Banco Central americano e conselheiro econômico no governo de Bill Clinton, em frase citada por Thomas Traumann, “os políticos usam os economistas como os bêbados usam o poste: mais para apoiar do que para iluminar”. Em se tratando do futuro presidente, só o tempo dirá como ele utilizará não o poste, mas o Posto.

 

Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.

 

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O presente de grego do Congresso para Bolsonaro https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/11/09/o-presente-de-grego-do-congresso-para-bolsonaro/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/11/09/o-presente-de-grego-do-congresso-para-bolsonaro/#respond Fri, 09 Nov 2018 04:00:24 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/sessao_senado-320x213.jpg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=564 Votação do reajuste do Judiciário é um retrato de como são produzidas nossas leis, e do que nos espera em 2019

A aprovação, pelo Senado Federal, dos projetos de lei que reajustam a remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República para R$ 39.293,32 é muito mais grave do que se imagina.

As redes sociais repercutiram a indignação coletiva. Como um Congresso que acaba de levar uma sova nas urnas, num claro recado de que a população não aguenta mais privilégios, aprova um reajuste de 16,8% para o Judiciário, no meio de uma crise fiscal gravíssima que será o grande desafio para o próximo governo?

Não se iluda, caro leitor que espalhou para todos os seus contatos a lista dos traidores da Pátria que votaram a favor do reajuste. Tudo que é ruim, pode piorar. A verdade dói – e é no seu bolso que você vai sentir.

Para o presidente eleito, e seu ministro da Economia, o recado também parece claro: é assim que a banda sempre tocou e o jogo é bem mais complicado do que parece.

Vamos aos fatos.

  1. Não acredite nas justificativas

Regra de ouro para quem se interessa por acompanhar o Congresso Nacional: sempre desconfie das justificativas apresentadas por autores e relatores de projetos de lei. Em geral, o indefensável vem embalado com palavras bonitas, argumentos falseados e muito senso comum.

No parecer do senador José Maranhão (MDB/PB), relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, consta que o reajuste deveria ser aprovado porque, “como é sabido, a remuneração dos membros da nossa Suprema Corte se encontra defasada”.

O relator parte de uma verdade (desde 01/01/2015, data do último reajuste, a inflação já acumula 25,7%), mas esconde o todo: o projeto não se restringe aos ministros do STF, pois nossa Constituição determina que ele seja o teto da remuneração de todo o funcionalismo público brasileiro. Em outras palavras, aumentar o subsídio dos ministros do STF tem efeitos em cascata sobre toda a estrutura de cargos e salários na União, Estados e municípios. E sobre isso o ilustre relator simplesmente silenciou.

  1. Desconfie dos números

Assim como não podemos nos fiar nas palavras, em geral os números apresentados (quando são apresentados) costumam sub ou superestimar a realidade, de acordo com o interesse defendido.

Instado a se manifestar sobre o impacto orçamentário do reajuste, o Conselho Nacional de Justiça misturou as contas do projeto de reajuste do subsídio dos ministros do STF com outro, relativo aos seus servidores, de modo a não deixar claro o impacto isolado de cada um deles. Mais uma lição: transparência, principalmente quanto a seus rendimentos, não é o forte de nosso Judiciário.

No voto em separado apresentado pelo senador Valdir Raupp (MDB/RO) há uma estimativa de que o impacto da elevação do teto do STF seria de R$ 813,14 milhões por ano no Judiciário.

Insatisfeito com as estimativas apresentadas pelos principais interessados no reajuste, o senador Ricardo Ferraço (PSDB/ES) acionou a Consultoria de Orçamento do Senado para elaborar um cálculo envolvendo os reais efeitos do reajuste para os cofres públicos.

Os técnicos do Senado levaram em conta o efeito cascata do reajuste sobre todo o Judiciário, o Ministério Público e os Tribunais de Contas, inclusive os estaduais, e também seu impacto sobre os servidores dos outros Poderes que têm seus rendimentos limitados pelo teto do STF.

Levando em conta todas as suas repercussões, o reajuste custará à União e aos Estados a exorbitância de R$ 5,3 bilhões anuais.

  1. A Lei de Responsabilidade Fiscal é para inglês ver

Quando foi aprovada, a Lei de Responsabilidade Fiscal foi festejada como um grande marco em nossa lenta caminhada rumo à seriedade no trato do dinheiro público. Na prática, ela tem sido solenemente descumprida quando se trata de impor travas ao descontrole de gastos.

Relator do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), o senador Ricardo Ferraço chamou a atenção para o fato de que, uma vez aplicado, o reajuste levará ao descumprimento dos limites de alerta, prudenciais ou máximos permitidos pela LRF nos Tribunais de Justiça de 13 Estados (RR, MG, SP, MT, CE, RJ, BA, SE, SC, ES, RO, TO e PB) e nos Ministérios Públicos Estaduais de outros 21 Estados – nos cálculos da Consultoria de Orçamento, apenas os MPs gaúcho, pernambucano, baiano, amazonense e paulista sobreviveriam.

Afora o estrondoso impacto nos combalidos orçamentos da União e do Estado, o descumprimento dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal deveria ser suficiente para levar ao arquivamento do projeto de reajustar o teto do funcionalismo.

Como a verdade é muitas vezes inconveniente, o parecer de Ferraço nunca foi votado – numa manobra regimental, foi substituído em plenário por outro texto, de autoria do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), bem mais ameno.

Por incrível que pareça, o parlamento brasileiro é o primeiro a descumprir as leis que ele próprio cria.

  1. Esse rombo não será coberto pelo fim do auxílio-moradia

Você já deve ter ouvido ministros do STF, membros do Ministério Público e parlamentares dizerem que o reajuste não impactará o orçamento, pois será compensado pelo fim do auxílio-moradia.

Em primeiro lugar, não temos garantia nenhuma de que o auxílio-moradia será mesmo extinto. Afinal de contas, a ação que questiona sua constitucionalidade vem sendo cuidada com carinho pelo ministro Luiz Fux há anos no STF. Mas mesmo que, num arroubo de civismo, o STF decida proibir o pagamento desse penduricalho, ele será insuficiente para cobrir o rombo de R$ 5,3 bilhões no orçamento.

A conta pode ser feita num guardanapo de papel. De acordo com os últimos dados divulgados, o Brasil tem 18.168 magistrados e 13.087 membros do Ministério Público na ativa. Basta multiplicar a soma das duas categorias pelo valor do auxílio (R$ 4.377,73) para verificar que a economia com a sua extinção seria de R$ 1,6 bilhão em 12 meses – menos de um terço, portanto, da despesa extra a ser criada com o reajuste.

  1. Que Bolsonaro e Paulo Guedes aprendam a lição

A aprovação do reajuste do teto do funcionalismo dá uma pequena mostra do que o novo governo vai enfrentar no Congresso a partir de janeiro. Embora conte com uma boa base de apoio formada por parlamentares de partidos aliados, agregados do Centrão e membros das bancadas ruralista, evangélica e da segurança pública, não será fácil para o presidente eleito (como não foi para nenhum dos seus antecessores) enfrentar os fortes interesses corporativos no Congresso.

Uma coisa será aprovar uma pauta de projetos relacionados à agenda conservadora de Bolsonaro (escola sem partido, diminuição da maioridade penal, estatuto do desarmamento); outra bem mais difícil será cortar privilégios e aprovar medidas de contenção fiscal.

A votação do reajuste do teto do STF demonstra exatamente isso: a proposta recebeu votos contrários de apenas 5 senadores que continuarão exercendo seus mandatos em 2018, contra 18 votos favoráveis (entre os que não foram reeleitos, houve 11 votos contrários e 23 apoios).

O gráfico mostra o número de votos favoráveis e contrários ao projeto de reajuste do subsídio dos ministros do STF entre os senadores que terão e não terão mandato a partir de 2019.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Senado.
  1. Não conte com a oposição (aliás, onde estavam PT e PSDB para impedir responsavelmente a aprovação do projeto?)

Analisando os dados da votação por partido, podemos observar melhor como se comportou o Senado.

O gráfico mostra os votos favoráveis e contrários por partido.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Senado.

Como pode ser visto no gráfico acima, o bloco dos partidos do centro e da direita, onde deve se localizar a base de sustentação de Bolsonaro, votou em peso a favor do reajuste do Judiciário (com exceção do DEM). Isso é um péssimo sinal a respeito de seu comprometimento com a pesada agenda de ajuste proposta por Paulo Guedes.

Do lado de uma virtual “oposição responsável” no governo Bolsonaro, a postura do PSDB foi lamentável. O partido ofereceu a maior quantidade de votos favoráveis ao reajuste (10 a favor, apenas um contra), o que demonstra que a responsabilidade fiscal há muito deixou de ser um valor para o partido que criou a LRF.

O outro ponto negativo é o PT. Além de ter rachado entre senadores a favor e contra o reajuste (situação rara para um dos partidos com maior disciplina partidária no país), o partido apresentou um alto índice de parlamentares ausentes à votação – o que pode ser mais uma evidência de que o partido está muito mais interessado com o que acontece em Curitiba do que com os destinos do país sendo decididos em Brasília.

O gráfico mostra o número de ausentes na votação por partido.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Senado.
  1. Veta Temer?

Por fim, é preciso lembrar que Temer iniciou seu “mandato-tampão” referendando aumentos salariais concedidos de modo irresponsável por Dilma a carreiras da elite do funcionalismo.

Mais tarde, em troca de salvar seu mandato depois do Joesley Day, o presidente, já manco, cedeu ao fisiologismo e aceitou toda sorte de pressões corporativas, das novas edições do Refis ao recentíssimo Rota 2030 para a indústria automobilística.

Diante desse histórico de leniência com a ação dos grupos de interesse, caberia agora a Temer um último gesto de responsabilidade fiscal, aliviando um pouco a carga que recairá sobre o governo Bolsonaro?

Uma dica: seu partido, o MDB, esteve por trás de todas manobras e ofereceu a maior parte dos votos e ausências que contribuíram para a aprovação do reajuste do Judiciário e de todo o teto do funcionalismo.

 

Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.

 

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O perigo de governar no varejo https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/10/15/o-perigo-de-governar-no-varejo/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/10/15/o-perigo-de-governar-no-varejo/#respond Mon, 15 Oct 2018 05:00:44 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/Salão-Verde-320x213.png https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=554 Bolsonaro tem sinalizado que vai privilegiar negociações individuais e com bancadas

O Partido Social Liberal (PSL), de Jair Bolsonaro, surpreendeu e ampliou o número de membros na Câmara dos atuais 8 para 52 deputados federais. Apesar de se cacifar como a segunda maior bancada na próxima legislatura —logo atrás do PT, que alcançou 56 cadeiras—, os correligionários de Bolsonaro representarão pouco mais de 10% dos votos disponíveis.

Caso seja eleito, Bolsonaro terá diante de si o mesmo desafio de seus antecessores desde a redemocratização brasileira: já que seus partidos isoladamente são minoritários, precisam construir uma coalizão suficiente para garantir a aprovação de suas propostas legislativas. Para agravar sua situação, esse Congresso será o mais fragmentado dos últimos tempos. Além de contar com 30 partidos com representantes na Câmara, as maiores siglas (MDB, PT, PSDB) perderam peso, e os partidos do chamado Centrão aumentaram sua importância.

Àqueles que questionam a sua capacidade de lidar com esse problema de governabilidade, Bolsonaro tem dito que não pretende se aliar a determinados partidos por fisiologismo, e acena com negociações individuais de acordo com os temas em debate. Além disso, pretende contar com as bancadas temáticas para superar a lógica partidária. Aliás, duas das principais frentes parlamentares —as bancadas ruralista e evangélica— já fecharam questão com o líder das pesquisas.

A ideia de Bolsonaro faz sentido no seu discurso antissistema. A amplitude da base governista durante os mandatos de Lula e Dilma (mas também no de FHC) levou a denúncias de loteamento de cargos públicos, liberação enviesada do orçamento e corrupção em estatais. Abandonar a prática de conceder nacos do poder a determinados partidos, na base da “porteira fechada”, em troca de apoio em votações seria, na visão do capitão reformado, um novo modo de fazer política.

Com sete mandatos de experiência no Congresso, Bolsonaro sabe melhor do que ninguém que os partidos vêm perdendo seu poder no plenário diante da crescente influência das frentes parlamentares suprapartidárias. As bancadas ruralista, evangélica e da segurança pública (boi, Bíblia e bala) são a representação de um movimento que cresce a cada legislatura. No momento em que os grandes partidos perdem força diante do amorfo Centrão, Bolsonaro quer apostar nas negociações com os representantes desses grupos de interesses que controlam dezenas de deputados e senadores.

No entanto, deixar de governar no atacado — ou seja, compartilhando o poder com alguns partidos — para investir em negociações caso a caso, no varejo, com bancadas temáticas, tem riscos elevados.

Em primeiro lugar, essa estratégia exigirá grande habilidade e paciência de um eventual futuro presidente cujo histórico revela ser muito mais do confronto do que da conciliação. Passada a tradicional lua de mel dos primeiros cem dias de governo, cada movimento de peças no tabuleiro do Congresso será um teste para os supostos nervos de aço de Bolsonaro.

Negociar com as bancadas a cada votação também tem grandes problemas de coordenação. Ao contrário do que o senso comum supõe, os partidos no Brasil são disciplinados e fiéis ao posicionamento de seus líderes. As bancadas temáticas, contudo, só costumam fechar questão quando o assunto lhes traz benefícios concretos. Sendo assim, uma coisa é contar com os ruralistas para reformar o Código Florestal, por exemplo. Outra bem diferente é contar com sua unidade quando precisar aprovar a reforma da Previdência.

Por fim, há o custo fiscal e regulatório. Enquanto os partidos negociam para ter mais cargos e fatias do orçamento, bancadas que representam interesses cobram um preço diferente. Se são empresariais (como a ruralista), querem subsídios, renegociação de dívidas, crédito barato, regulação ambiental mais frouxa. Já as temáticas (religiosas ou da segurança) jogam visando a aprovação de suas pautas no campo dos costumes. E temos também as corporativas (como as de categorias do serviço público), sempre em busca de reserva de mercado e a manutenção de privilégios.

O Brasil precisa de um novo jeito de fazer política. Mas é preciso ter cuidado, pois sempre é possível piorar o que já não funciona bem.

 

Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.

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O PT nos empurrou para a ditadura de Bolsonaro https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/10/01/o-pt-nos-empurrou-para-a-ditadura-de-bolsonaro/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/10/01/o-pt-nos-empurrou-para-a-ditadura-de-bolsonaro/#respond Mon, 01 Oct 2018 05:00:36 +0000 https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/haddad-320x213.jpeg https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=540 Não basta a Haddad fazer uma nova “Carta aos Brasileiros” para conquistar o centro

Em editorial de capa no domingo (30), a Folha conclamou Jair Bolsonaro e Fernando Haddad a firmarem compromissos explícitos com a democracia brasileira. Preocupa não apenas a crescente polarização da sociedade, mas sobretudo a postura dos candidatos líderes nas pesquisas de flertar com soluções autoritárias como saídas para a crise.

A se confirmarem as previsões, teremos no segundo turno das eleições presidenciais deste ano o ápice de um processo que levou a confiança da população brasileira nas instituições políticas a seus níveis mais baixos. A exposição das vísceras do nosso sistema político pela Operação Lava Jato, uma recessão econômica quase sem precedentes e a incapacidade do Estado de prover serviços de qualidade (a começar pelos mais básicos, como segurança, saúde e educação) nos colocam em uma encruzilhada histórica.

Baseados no trabalho do germânico-espanhol Juan Linz, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, de Harvard, apresentam no recém-lançado “Como as Democracias Morrem” um roteiro para identificar comportamentos políticos antidemocráticos.

O teste pode ser resumido em quatro perguntas direcionadas a partidos ou políticos: 1) Eles rejeitam as regras do jogo?; 2) negam a legitimidade dos seus adversários?; 3) são tolerantes com a violência?; 4) defendem medidas que restrinjam liberdades civis?

Nas colunas que vem escrevendo para a Folha, Levitsky demonstra como Jair Bolsonaro pontua em praticamente todos os quesitos acima, encarnando um perfil típico de políticos que assumiram o poder de forma legítima, para depois se converterem em déspotas: de Hitler e Mussolini a nossos vizinhos Fujimori e Chávez.

Um ponto que tem passado ao largo de suas análises, contudo, é que, antes de ser um antídoto contra Bolsonaro, o próprio PT se vale do autoritarismo para se viabilizar eleitoralmente.

Analisando atos e palavras dos líderes petistas sob o prisma das quatro perguntas de Levitsky e Ziblatt, torna-se evidente que o PT tem sua cota de responsabilidade por chegarmos a este ponto em que dançamos na beira do precipício.

Para ficar em apenas alguns exemplos, 1) em vez de admitir publicamente sua responsabilidade nos escândalos de corrupção, o partido questionou a legitimidade dos processos de investigação; 2) tachou de “golpistas” aqueles que se posicionaram a favor do afastamento de Dilma Rousseff; 3) silencia diante de atos violentos praticados por grupos políticos que orbitam sob a sua influência, como o MST; e 4) tem sempre na manga uma proposta de regulação da mídia contra a liberdade de imprensa.

Ao longo do último ciclo eleitoral, PT e seus adversários políticos (PSDB e depois o MDB) exploraram estrategicamente a polarização da sociedade por meio do questionamento das urnas eletrônicas, o impeachment, o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE e todos os desdobramentos da Operação Lava Jato. A ameaça de Bolsonaro só se tornou palpável porque tanto o PT quanto o PSDB viram na polarização um caminho para se elegerem em 2018.

Nesta altura dos acontecimentos, a eleição será decidida por uma parcela considerável da população que enxerga no PT uma ameaça tão perigosa à democracia quanto Bolsonaro. Sendo assim, não basta a Fernando Haddad apresentar uma nova “Carta aos Brasileiros” para conquistar os votos do centro e se eleger. Exigem-se do PT ações concretas — e aqui vão algumas sugestões de quem se considera este eleitor de centro.

Para começar, é fundamental que Haddad se posicione explicitamente sobre algumas questões: sua postura em relação à Lava Jato, se concederá indulto para beneficiar Lula e qual sua visão sobre a ditadura na Venezuela. Além disso, reconhecer os erros da política econômica de Dilma Rousseff e apresentar um novo programa econômico pautado na responsabilidade fiscal e nas reformas são condições fundamentais.

Por fim, seria uma sinalização muito importante se Haddad anunciasse, de antemão, uma equipe de governo que contemplasse membros dos times dos candidatos do centro que ficaram no caminho. Se a proposta é garantir a democracia, construir um ministério com apoiadores de Marina Silva, Henrique Meirelles, Ciro Gomes e — por que não? — Geraldo Alckmin seria um passo importante para afastarmos o fantasma do “nós contra eles”.

Fernando Haddad e o PT precisam entender que essa polarização entre direita e esquerda está impedindo o país de crescer e se tornar menos desigual. É hora de deixar o projeto de poder de lado e governar para todos.

 

Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.

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Desmistificando Bolsonaro https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/11/13/desmistificando-bolsonaro/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/11/13/desmistificando-bolsonaro/#respond Mon, 13 Nov 2017 04:30:19 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=234 Análise do comportamento de Jair Bolsonaro nos seus 7 mandatos como deputado federal revela corporativismo, intervencionismo econômico e conservadorismo

Sou mais além que voar à pé
Daqui pra lá e acordar sozinho
Tem uma pedra no meu caminho
Que me rasga o pé
Quando como com a mão
Porque estão todos se iludindo
Não vou vender o meu revólver
Quando ouço papo de amor
Aperto o cinto mais um pouco
Ah se mamãe me visse agora
Ia implorar pra que eu sumisse
E se chorando eu me ajoelhasse
E lhe implorasse um beijo
Me tomaria meu revólver
Porque… Mamãe ama é o meu revólver
“Mamãe ama é o meu revólver” (Rubinho Troll)

 

Saiu na capa da edição de domingo da Folha: Mercado já vê Bolsonaro como opção contra Lula. Único pré-candidato capaz de ameaçar, até o momento, a liderança do petista nas pesquisas eleitorais, Bolsonaro ganha adeptos no mercado e no eleitorado com um discurso liberal. Mas liberal é uma coisa que ele nunca foi nos seus 7 mandatos em Brasília.

Para analisar o quanto de “mito” há nesse discurso, analisei o seu comportamento na Câmara dos Deputados desde 1991. Para isso, coletei os dados sobre projetos propostos, votações nominais e participação em frentes parlamentares. A visão a que cheguei é que Bolsonaro sempre foi corporativista, intervencionista, conservador e, em certa medida, oportunista.

 

“Nas cores da nossa farda rebrilha a glória”

30 motivos para votar em Bolsonaro é uma mensagem que circula há algum tempo nas redes sociais. Segurança pública, valores conservadores e nacionalismo permeiam todas as justificativas. “Bolsonaro é homem de verdade, defende a família, o direito, a propriedade e gosta de trabalhar, então anotem e pensem em tudo isso, ok?”

Para verificar em que medida essa visão de mundo atribuída a Bolsonaro se reflete no seu trabalho de parlamentar, analisei os 166 projetos de lei que ele propôs na Câmara dos Deputados entre 1991 e 2017. Os dados mostram que Bolsonaro gosta de trabalhar mesmo é para a sua corporação, os militares.

Como pode ser visto no gráfico abaixo, mais de um terço das propostas legislativas apresentadas por Bolsonaro desde 1991 tratam dos militares: valor dos rendimentos, pensões, moradia, atendimento médico e hospitalar, criação de colégios militares e anistia de penalidades foram alguns dos assuntos propostos para agradar seu eleitorado preferencial.

Propostas legislativas de Bolsonaro por temas
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Câmara dos Deputados.

 

Além do corporativismo em prol de sua categoria, Bolsonaro tenta cumprir seu discurso em defesa da família, da moral e do patriotismo. Entre as 13 leis dessa categoria, estão regras sobre o planejamento familiar, a proteção da criança e do adolescente e a regulação do consumo de álcool e fumo – sem falar na defesa dos símbolos da pátria, como os projetos sobre a obrigatoriedade de ouvir o hino nacional com a mão direita sobre o peito, a autorização para aplaudir a bandeira nacional após a sua execução e a proibição de usar palavras estrangeiras em nomes de estabelecimentos comerciais.

Em termos de regulação, Bolsonaro exibe uma preocupação especial com as regras de trânsito (12 projetos), normas de direito do consumidor (7) e outros temas diversos – como relações entre condôminos, flexibilizações no exercício da advocacia e a liberação da “pílula do câncer”.

Na economia, os 15 projetos apresentados por Bolsonaro passam longe do discurso liberal que ele vem defendendo recentemente. Suas propostas na área econômica, ao contrário, revelam uma visão intervencionista: Bolsonaro foi um grande defensor das mudanças nos contratos e índices de correção dos contratos do Sistema Financeiro Habitacional e propôs a reserva de vagas e a concessão de descontos de 50% no transporte aéreo para idosos, por exemplo. Um grande número de projetos trata, ainda, da concessão de isenções tributárias para grupos específicos, como taxistas, indústria automobilística e portadores de diabetes. Todas as medidas, portanto, tratam de beneficiar alguns grupos em detrimento de todos os contribuintes.

Por fim, Bolsonaro é um arauto da segurança pública. E aqui suas propostas giram em duas direções: a liberação do uso de armas para diversas categorias (curiosamente, ele nunca recebeu doações oficiais de empresas armamentistas) e o aumento das sanções penais para criminosos.

Nesse último aspecto, a análise da propositura de leis por Bolsonaro ao longo dos anos revela um fato curioso: foi só recentemente que o deputado “carioca” assumiu esse lado mais repressor contra o crime.

Propostas legislativas de Bolsonaro por tema (ano a ano)
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Câmara dos Deputados.

 

No gráfico acima, os retângulos azuis representam os projetos legislativos de autoria de Bolsonaro na área penal. É nítido que essa temática, embora presente de forma esparsa ao longo do tempo, intensifica-se significativamente a partir de 2013. Essa tendência revela um apurado senso de oportunismo do parlamentar, ao surfar na onda da crise de segurança pública com propostas de aumento de penas para criminosos.

“Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o foro de São Paulo…”

O trecho acima foi extraído do discurso de Bolsonaro na votação da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. A tomar por base a virulência com que agride o PT em seus discursos, seria de se esperar um total antagonismo entre as posições bolsonariana e petista. Mas isto só é verdade em partes. Ou melhor, em momentos específicos.

Analisando todas as votações nominais de projetos de lei, PECs e medidas provisórias desde 1991 (um total de 2.043 votações), podemos separar os posicionamentos de Bolsonaro em três momentos distintos.

Concordância e discordância entre Bolsonaro e PT nas votações de 1991 a 2017
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Câmara dos Deputados.

 

Entre 1991 e 1998, Bolsonaro colocou-se em posição diametralmente oposta ao PT. Nessa época – governos Collor, Itamar e o primeiro mandato de FHC ele votou contra a posição majoritária do PT em incríveis 100% dos casos.

A partir do segundo mandato de FHC e ao longo dos 8 anos do governo Lula, Bolsonaro aproximou-se do PT, colocando-se em consonância com os petistas em um número expressivo de votações.

A lua de mel entre o PT e Bolsonaro, contudo, degringola-se: a partir do primeiro ano do mandato de Dilma Rousseff, Bolsonaro volta a colocar-se contra o PT e não é possível identificar uma votação sequer em que ambos votam de acordo um com o outro. Neste ponto Bolsonaro mostra novamente um faro apurado para captar o sentimento da população, distanciando-se do PT quando a situação do partido se deteriora politicamente e junto à opinião pública.

Interessante observar, também, que a parceria Bolsonaro-PT, enquanto existiu, versou justamente sobre temas econômicos – e numa direção que passa longe do discurso liberal adotado pelo presidenciável patriota recentemente.

Compilando o texto das ementas dos projetos em que Bolsonaro e PT votaram igual entre 1999 e 2010, nota-se um predomínio de temas associados à Nova Matriz Econômica – visão intervencionista da economia levada a cabo pelo PT. Conforme pode ser visto na nuvem de palavras abaixo, Bolsonaro concordou com o PT nas votações de projetos que tratavam de concessões de benefícios para o setor privado, como incentivos tributários, parcelamentos de débitos, créditos orçamentários, fundos, financiamentos, subvenções, etc. Uma pauta bem distante de políticas econômicas horizontais e não intervencionistas, portanto.

Nuvem de palavras das ementas dos projetos em que Bolsonaro e PT votaram igual.
Fonte: Elaboração própria.

 

Diga-me com quem tu andas, que te direi quem és…

Por fim, analisei as frentes parlamentares (as famosas “bancadas”) às quais Jair Bolsonaro encontra-se associado na atual legislatura. Se a sabedoria popular estiver correta, um eventual governo Bolsonaro será protecionista, corporativista e conservador.

Frentes parlamentares em que Bolsonaro participa
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Câmara dos Deputados.

 

Bolsonaro está associado a diversas frentes parlamentares de defesa de setores econômicos específicos, como os relacionados às empreiteiras (diversas frentes de defesa da infraestrutura e da construção civil), o agronegócio e setores estratégicos para a segurança nacional (nióbio, carvão mineral, gás natural). O presidenciável também se mostra favorável à convalidação dos incentivos fiscais e do “sistema S”. De forma coerente, é também defensor de minorias que pressionam por tratamentos diferenciados na saúde e em outras políticas públicas, como portadores de doenças raras, autistas e deficientes.

A vocação corporativista de Bolsonaro, explicitada nas dezenas de projetos de lei propostos no interesse dos militares, também aflora com a vinculação a diversas frentes parlamentares que defendem carreiras do funcionalismo (além dos militares, policiais federais, fiscais e diplomatas, por exemplo) e outros segmentos que vivem da burocracia estatal (como despachantes e donos de lotérias).

O parlamentar também se mostra um defensor dos valores conservadores, haja vista que se associa tanto a católicos como a evangélicos, defende a família e as crianças e é contra a liberação dos jogos de azar. Da mesma forma, Bolsonaro é ativo participante da chamada “bancada da bala” – as frentes parlamentares a favor da segurança pública.

Faça o que eu digo, não faça o que eu faço

Os dados analisados revelam que, se Bolsonaro atualmente vale-se de um discurso liberal, seu comportamento nos últimos 26 anos vai na direção contrária. Diante de uma crise fiscal sem precedentes e de um (sub)desenvolvimento marcado por concentração de renda em favor de grupos específicos, um candidato corporativista, conservador e com pendores intervencionistas deveria ser visto com reservas. Mas o mercado parece estar cego para essa realidade.

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