O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 “O sistema é foda” https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/16/o-sistema-e-foda/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/03/16/o-sistema-e-foda/#respond Fri, 16 Mar 2018 05:00:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=314 Assassinato de Marielle Franco é um atentado contra a tentativa de renovação da política brasileira

O sistema é muito maior do que eu pensava.
Não é à toa que os traficantes, os policiais e os milicianos
matam tanta gente nas favelas.
Não é à toa que existem favelas.
Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília.
E que entra governo, sai governo, a corrupção continua.
Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo.
O sistema é foda.
Ainda vai morrer muito inocente.

(Capitão Nascimento, em Tropa de Elite 2)

Em muitos sentidos, Marielle era a cara do Brasil. Mulher como 51,48% da população, negra como 54% dos brasileiros. Tinha 38 anos, na faixa que contém o maior número de mulheres na pirâmide etária brasileira.

Sua história de vida também reflete a trágica realidade de um país brutalmente desigual e violento. Cresceu na favela da Maré, onde “a esperança não vem do mar e nem das antenas de TV”. Segundo o Censo de 2010, 11,4 milhões de brasileiros moravam em favelas. Hoje esse número deve ser bem maior.

Marielle cursou a educação básica em escola pública, como 81,7% dos alunos matriculados no país. A qualidade do colégio estadual em que se formou no ensino médio, o CE Professor Clóvis Monteiro, é atestada pela sua posição no ranking do último Enem: é a 11.093ª “melhor” escola brasileira. A nota média do colégio (488,15 pontos) está abaixo do limite de 50%.

Como o ensino não oferecia perspectiva alguma, Marielle engravidou de forma não desejada aos 17 anos. Fenômeno típico nas camadas mais pobres da população, em 2015 nasceram 477.131 crianças cujas mães não tinham sequer 18 anos. O pai de Luyara, sua filha, não quis saber da criança. Mais um fato absolutamente normal: 40% das crianças nascidas no Brasil não têm o nome do pai registrado em suas certidões de nascimento. Ou seja, a cada ano quase 200 mil crianças estão condenadas a crescer sem um núcleo familiar estruturado. E outras dezenas de milhares engrossarão essa estatística ainda na primeira infância.

Contra todos os números negativos da realidade social brasileira, Marielle venceu as adversidades. Com a filha um pouco mais crescida, entrou num cursinho pré-vestibular para jovens carentes, passou no vestibular da PUC-Rio, conseguiu uma bolsa integral, formou-se cientista social e fez mestrado na Universidade Federal Fluminense.

De certa forma, Marielle Franco é um exemplo de político que, independentemente da ideologia, boa parte do eleitorado brasileiro deseja. Segundo a última pesquisa Perspectivas para as Eleições Brasileiras, Marielle se enquadrava em diversas preferências da população brasileira para um candidato: por senti-los na pele desde criança, conhecia os problemas do país – 89% dos brasileiros esperam que um político tenha essa qualidade.

Para 62% dos eleitores é importante um bom candidato ter experiência política – e Marielle foi durante uma década assessora parlamentar de Marcelo Freixo na Câmara e na Assembleia.

Se 74% do eleitorado almeja um candidato com boa formação acadêmica, Marielle era mestre em Administração Pública. E para os 71% que desejam políticos com boa relação com os movimentos sociais, Marielle era a mulher certa: feminista, do movimento negro e a favor da causa LGBT.

Num país em que 55% dos eleitores afirmam querer votar em candidatos que não sejam políticos profissionais, Marielle representava a renovação da política brasileira.

Para começar, era do PSOL, partido criado por antigos militantes que perceberam que o projeto de poder do PT incluía a traição a seus ideais de ética na política. Por apostarem em novos nomes e numa gestão mais participativa, PSOL, Rede e Novo, mesmo ocupando posições diferentes no espectro ideológico, são esperança de oxigenação no falido sistema partidário brasileiro.

A campanha de Marielle foi relativamente barata, gastando R$ 92.151,91. Só para você ter uma ideia, o vereador mais votado, Flávio Bolsonaro, o “Zero Um”, gastou dez vezes mais que ela: R$ 971.507,51.

Se olharmos de onde veio esse dinheiro, também percebemos que a campanha de Marielle foi bastante democrática para os padrões brasileiros. Ao todo 195 pessoas doaram recursos para financiar suas despesas eleitorais, sendo que a maior contribuição foi de R$ 4.200,00. Para efeito de comparação, César Maia, ex-prefeito do Rio e pai do presidenciável Rodrigo Maia, teve apenas 11 doadores. Só o seu partido, o Democratas, aplicou R$ 242 mil para fazê-lo o terceiro vereador mais votado da cidade.

Para quem não teve uma campanha muito cara, a votação de Marielle na sua estreia em eleições surpreendeu até o mais otimista dos correligionários. Foram 46.502 votos, a quinta maior votação no Rio de Janeiro.

E para afastar qualquer distinção entre morro e asfalto, zona sul e subúrbio, a candidata que se proclamava “mulher, negra e cria da favela da Maré” teve expressivas votações nos bairros nobres da capital. Quase um terço de seus votos vieram da faixa que vai do Aterro do Flamengo à Pedra da Gávea.

No exercício de seu mandato, Marielle defendeu as suas causas. Propôs 13 projetos de lei: criação de programas de atendimento noturno em creches e de atenção humanizada a vítimas de aborto, fim da isenção de impostos para as empresas de ônibus, restrições à terceirização dos serviços de saúde, exigências para que a Prefeitura publique estatísticas sobre a situação da mulher no município, políticas de reinserção de menores infratores e campanhas de conscientização contra a homofobia, a violência sexual e o encarceramento de jovens negros.

Independentemente de nossas preferências ideológicas, é inegável que desde junho de 2013, passando pelas manifestações a favor do impeachment, a sociedade brasileira está se movimentando para exigir melhores serviços públicos, menos corrupção e uma reforma geral do sistema político. A votação de vereadores novatos como Marielle era uma consequência desse movimento.

No entanto, apesar de tudo, como todos sabem, na noite da última quarta-feira, Marielle passou a fazer parte da mais cruel das estatísticas brasileiras: os nossos 60.000 homicídios anuais.

Por toda a sua trajetória, o brutal assassinato foi, para mim, muito mais do que uma tragédia pessoal. Ou o atestado de nossa incapacidade de criar um país onde se possa defender abertamente suas ideias de menos desigualdade e circular livremente pelas ruas.

A morte de Marielle é sobretudo um atentado a nossos anseios de renovação da política brasileira. É como se fosse um recado para o cidadão de bem que aos poucos volta a se interessar pela política: tome cuidado, o sistema aqui é bruto.

É como se os donos do poder emitissem um aviso: é melhor deixar tudo como está. Pra se meter com política, não basta ter estômago de avestruz. Se você não entra no jogo, pode acabar com a boca cheia de formiga. Ou executada com três tiros numa noite qualquer.

 

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Nada de extraordinário no anúncio do Ministério da Segurança Pública https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/02/28/nada-de-extraordinario-no-anuncio-do-ministerio-da-seguranca-publica/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2018/02/28/nada-de-extraordinario-no-anuncio-do-ministerio-da-seguranca-publica/#respond Wed, 28 Feb 2018 03:55:38 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=300 Aposta do governo na segurança pública não traz nenhuma esperança para reverter os incentivos que levam jovens a matarem e morrerem no Brasil

Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel
Sempre mais do mesmo
Não era isso que você queria ouvir?
E agora você quer
Um retrato do país
Mas queimaram o filme
Queimaram o filme
(“Mais do Mesmo”. Dado Villa-Lobos; Renato Russo; Renato Rocha; Marcelo Bonfá)

A criação do Ministério Extraordinário da Segurança Pública é a nova cartada no combate à criminalidade no Brasil. E como parece que esse será “o” tema da próxima campanha eleitoral, é bom relembrar àqueles que se deixam seduzir pela política de tolerância zero que, nesse assunto, nós já tentamos quase tudo.

Desde a Constituição de 1988, o Congresso já aprovou mais de uma centena de leis tratando de Direito Penal e de Direito Processual Penal. Na imensa maioria das vezes, essas normas trataram de criar dezenas de novos tipos de crimes e introduzir novas qualificadoras para crimes já existentes.

O gráfico apresenta a divisão das normas penais editadas desde a Constituição de 1988
Fonte: Sistema de Informações do Congresso Nacional – Sicon.

De acordo com o relatório Justiça em Números, havia 7.864.221 processos criminais pendentes nos tribunais brasileiros no final de 2016. E a despeito de todos os aprimoramentos no Código de Processo Penal, o estoque já subiu 20,37% desde 2009. Ou seja, juízes, promotores, defensores públicos e toda a máquina burocrática envolvida nas ações criminais têm enxugado gelo.

Além da expansão da legislação penal (e também em função dela), nós mandamos cada vez mais gente para a cadeia. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, em 2016 havia mais de 720 mil pessoas encarceradas no Brasil – contra 233 mil em 2000. Em torno de 40% desse contingente é constituído por presos provisórios – ou seja, pessoas que ainda aguardam uma sentença judicial, mas mesmo assim estão atrás das grades.

A expansão da rede de presídios e cadeias no Brasil também foi intensa nos últimos anos. Se em 2000 eram pouco mais de 135 mil vagas, em 2016 tínhamos espaço para quase 370 mil presos (um crescimento de 170% no período). O problema é que o número de detentos aumentou num ritmo mais rápido (212% no mesmo intervalo), e a situação se agravou: se em 2000 tínhamos 1,7 presos para cada vaga, hoje são 2 pra um.

Gráfico mostra o crescimento do número de presos no Brasil, assim como as vagas nos presídios e cadeias públicas.
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2016).

Nos últimos anos nossa polícia também se tornou mais violenta. De acordo com o Atlas da Violência, publicação organizada pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 942 pessoas morreram em operações policiais em 2015 – dez anos antes, foram 558. A esse respeito, temos duas notícias que tornam esse quadro ainda pior.

A primeira é que esses dados podem estar bastante subestimados. Num levantamento feito pelo FBSP junto às Secretarias de Segurança Pública dos Estados, teriam sido 3.320 mortos em operações policiais em 2016 – ou seja, mais de 3 vezes e meia do que revelam os dados oficiais coletados pelo Ministério da Saúde.

A outra notícia ruim é que, nesse confronto direto entre forças policiais e criminosos, há muitas baixas também no lado de cá. Estatísticas coletadas pelo FBSP indicam que, em 2016, 335 policiais militares e civis morreram em confrontos ou foram vítimas de crimes violentos mesmo fora do horário de expediente – o Rio de Janeiro é o campeão nesse tema, com 92 policiais assassinados.

O gráfico mostra o crescimento do número de mortos em operações policiais de 2005 a 2015.
Fonte: Atlas da Violência 2017.

A despeito da edição de novas leis (e mais rígidas), da expansão dos presídios, de colocarmos cada vez mais gente nas cadeias e das milhares de pessoas mortas pela e na polícia, o quadro de violência galopante na sociedade brasileira não dá sinais de melhoria.

Recentemente rompemos a barreira dos 60 mil mortos por ano. Desses, mais da metade são jovens de 15 a 29 anos. O presente e o futuro do Brasil.

O gráfico mostra a evolução do número  total de homicídios no Brasil, bem como a participação das vítimas de 15 a 29 anos.
Fonte: Atlas da Violência 2017.

Sinceramente, não espero muito do tal Ministério Extraordinário da Segurança Pública. Certamente ele vai lançar um novo Plano Nacional de Segurança Pública, com promessas de integração das polícias, cooperação entre a União e os Estados, promessas de investimentos em tecnologia e de mais dinheiro para o Fundo Penitenciário, reforço no policiamento das fronteiras. E tolerância zero contra o crime.

Pena que nada disso sai do papel. Há décadas, o discurso da segurança pública no Brasil é um e a prática outra: baixa taxa de elucidação de crimes, uma política de drogas que se mostra a cada dia mais fracassada, muita violência policial, uma Justiça criminal abarrotada e presídios superlotados se convertendo em universidades do crime.

Para fazer jus ao “Extraordinário” no nome do Ministério, o governo deveria ter como única missão desarmar os incentivos que levam um jovem a optar pela vida criminosa mesmo sabendo que há elevadíssimas chances de que ele, antes de chegar à vida adulta, pode entrar para as estatísticas de homicídios no Brasil. Encarar esse desafio vai muito além de criar um Ministério ou de decretar intervenção nos Estados. Exige colocar em prática os bonitos propósitos dos Planos Nacionais de Segurança Pública, mas também envolve melhor qualidade na educação, geração de empregos e políticas mais abrangentes de renda mínima. Medidas voltadas para o hoje e para o amanhã, portanto – mas que devem começar a ser implementadas pra valer agora.

O mais desanimador nessa história é que o mesmo governo que lança essa campanha pela segurança pública está trabalhando arduamente pelo seu fracasso. Ao abandonar a Reforma da Previdência, agrava-se a situação fiscal da União e dos Estados – e isso fatalmente terá repercussões nos investimentos necessários para combater a criminalidade, nas despesas com educação de qualidade e nas perspectivas de crescimento que poderia alavancar o emprego.

As chances de que a política de segurança pública do governo Temer se transforme em “mais do mesmo” são altas. E isso não tem nada de extraordinário.

 

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