O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Não são as pessoas, são as instituições https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/15/nao-sao-as-pessoas-sao-as-instituicoes/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/09/15/nao-sao-as-pessoas-sao-as-instituicoes/#respond Fri, 15 Sep 2017 06:00:26 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=158 Está na hora de encararmos o fato de que os Geddéis não tomaram a República de assalto por acaso: eles são frutos do sistema

Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é este?
Que país é este?
Que país é este?

“Que país é este?” (Renato Russo)

Geddel Vieira Lima foi colega de turma de Renato Russo na adolescência. Era chamado de “Suíno” pelo futuro líder da Legião Urbana. Décadas depois, Geddel virou “Babel” na planilha da Odebrecht.

Geddel é filho de político – seu pai, Afrísio, foi deputado federal e dirigente de várias estatais e órgãos públicos na Bahia (Incra, Companhia Docas, Junta Comercial…). Durante toda a sua carreira política, Geddel quase sempre transitou ao redor do poder. Antes de se eleger deputado federal pela primeira vez, em 1990, foi diretor de estatais no mesmo Estado. Depois foram cinco mandatos na Câmara dos Deputados, sempre com funções de destaque: líder do PMDB, presidente de comissões, membro da Mesa Diretora.

Foi Ministro de Lula, vice-presidente da Caixa Econômica Federal com Dilma e Ministro novamente com Temer.

Ao longo da sua trajetória, Geddel sempre se envolveu em suspeitas de corrupção: foi acusado de desvio de dinheiro no Banco do Estado da Bahia, foi um dos anões do Orçamento, teve problemas com o TCU a respeito de favorecimento na liberação de recursos para obras e, na semana passada, revelou-se dono dos fabulosos R$ 51 milhões armazenados em caixas e malas num apartamento de Salvador.

A história de Geddel sintetiza bem um dos maiores mistérios da política brasileira: como criminosos conseguem se reeleger mandato após mandato mesmo sendo bombardeados por denúncias de corrupção ao longo das suas longas carreiras?

A resposta mais tradicional para o “paradoxo de Geddel” é que o brasileiro não sabe votar: não temos memória, não acompanhamos o noticiário político, acreditamos no “rouba, mas faz”. Para quem confia nessa explicação, a Operação Lava Jato enche os corações de esperança de que estamos virando uma página na nossa história: dezenas de corruptos psicopatas dos mais variados partidos estão sendo investigados e condenados e nossa política está sendo finalmente purificada pela ação (tardia) da Justiça. Será mesmo?

É inegável que a condenação de peixes grandes como Geddel representa um marco num passado multissecular de impunidade em favor dos poderosos. Mas estamos avançando muito pouco para tomarmos medidas concretas, institucionais, para lidar com o problema da corrupção de forma sistemática.

Para tanto, precisamos encarar o mistério dos grandes corruptos que não largam o osso do poder de uma maneira mais técnica e menos passional: menos caderno de polícia, e mais caderno de política. Não são as pessoas, é o sistema. Não é o brasileiro que não sabe votar, são as instituições que garantem a eleição dos corruptos.

A teoria econômica possui dois institutos que acredito serem a chave para tratarmos de uma reforma institucional para o combate à corrupção em bases mais definitivas do que o “barata avoa” realizado pela Lava Jato: seleção adversa e risco moral.

Um sistema político que atrai criminosos e repele cidadãos de bem nos induz a comprar gato por lebre e a elegermos permanentemente Congressos que são verdadeiros “abacaxis” democráticos. Isso em economia se chama de seleção adversa: as regras disponíveis nos induzem a fazer escolhas erradas. Logo, não é o brasileiro que não sabe votar, é o sistema que é construído para beneficiar quem sabe jogar o seu jogo sujo.

Para piorar, uma vez eleitos, esses criminosos dispõem de “condições de trabalho” tão favoráveis que são levados a testar continuamente os limites éticos. O exercício de seus mandatos funciona sob a lógica do risco moral, como se protegido por um seguro contra condenações pelos sinistros que eles provocam ao Erário. Ao invés de temerem a aplicação severa da lei, nossos políticos contam com uma quase certeza de impunidade para praticarem seus “malfeitos”. Afinal, por aqui vale a máxima: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

Enfrentar o problema da corrupção de modo sistemático demanda, portanto, minimizar as oportunidades de seleção adversa nas eleições e de risco moral no exercício do mandato. E como se faz isso?

Para reduzir a seleção adversa, precisamos de sistemas eleitorais que privilegiem candidaturas mais baratas (distritos menores, com campanhas mais simples e limites de gastos baixos), partidos com estruturas mais transparentes e democráticas (minando o poder dos velhos caciques que controlam a arrecadação e a distribuição de dinheiro e combatendo as legendas de aluguel) e fontes de financiamento pulverizadas – partidos e candidatos têm que buscar dinheiro junto aos seus eleitores, e não no Orçamento Público ou em grandes empresas.

No combate ao risco moral, precisamos eliminar um amplo sistema de incentivos que contribui para a sensação de impunidade de quem exerce o poder: fim do foro privilegiado, regras de prescrição menos benéficas, forte restrição aos recursos protelatórios, maiores punições ao crime de caixa dois, melhor integração dos órgãos de controle – afinal, se o crime é organizado, Receita Federal, Polícia Federal, CGU, TCU, Ministério Público e outros órgãos também precisam se organizar e trabalhar juntos de forma sistemática, não é mesmo?

Reduzir as imensas oportunidades de rent seeking existentes no nosso presidencialismo de coalizão também ajudaria muito a reduzir tanto a seleção adversa quanto o risco moral na política brasileira: menos cargos em comissão, menos estatais, menos regulação estatal, vedação a regimes tributários especiais, menos subsídios (evoé, TLP no BNDES!), mais transparência e avaliação no Orçamento Público.

No dia de hoje, 15 de setembro, a ONU comemora o Dia Internacional da Democracia. Meu grande desejo é que esta data nos desperte para lutar por reformas que tornem nossa democracia menos vulnerável ao poder dos Geddéis e de todos que se beneficiam dessa lógica de seleção adversa e risco moral nas nossas instituições políticas.

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Reforma política: tudo é uma questão de oferta e demanda https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/08/24/reforma-politica-tudo-e-uma-questao-de-oferta-e-demanda/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/08/24/reforma-politica-tudo-e-uma-questao-de-oferta-e-demanda/#respond Thu, 24 Aug 2017 06:00:25 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=142 Se o STF não tivesse proibido as doações de empresas, o Congresso não estaria discutindo distritão, fundo eleitoral e outras polêmicas da “reforma” política. Tudo é uma questão de dinheiro.

Quem se importa de onde vem a grana?
Tu tem que ter o bolso cheio

“Livre Iniciativa” (Mundo Livre S/A)

 

Em 1920, com o objetivo de diminuir a violência, os Estados Unidos aprovaram a 18ª emenda à Constituição, proibindo a fabricação, o comércio e o transporte de bebidas alcóolicas. Após um curto período de apoio popular à medida, logo os americanos passaram a conviver com o crescimento da criminalidade e da corrupção das máfias que controlavam o fornecimento clandestino de bebidas para o consumo ilegal. A medida foi revogada por Roosevelt em 1933.

Em 1984, a Lei nº 7.232 instituiu a reserva de mercado de informática no Brasil, limitando severamente a importação de equipamentos e programas desenvolvidos no exterior, com o fim de estimular a produção nacional. O tiro saiu pela culatra, e quem precisava de um computador naquela época tinha que pagar caro por um produto nacional defasado (alguém aí se lembra dos computadores Cobra?) ou recorrer ao contrabando ou à pirataria.

No plano Cruzado, eu me lembro (só quem tem 40 ou mais se lembra disso!) que minha mãe cozinhava soja quase todo dia, porque o Funaro tabelou o preço da carne num nível muito defasado e ela simplesmente sumiu dos açougues. Para garantir as proteínas diárias da família, o jeito era recorrer à soja ou ao mercado negro, que vendia o produto com um ágio astronômico.

Toda vez que um ato do governo provoca uma restrição artificial na oferta de determinado produto (bebidas alcóolicas, computadores ou carne), sem qualquer medida para reduzir a demanda, são três os resultados mais prováveis: i) o aumento do preço do produto; ii) o florescimento de um mercado paralelo para continuar ofertando o bem ilegalmente; ou iii) a busca do consumidor por produtos substitutos, em geral de qualidade inferior.

Em novembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal decidiu proibir as doações de empresas para campanhas eleitorais e partidos políticos. Essa decisão secou a fonte de 75% do dinheiro movimentado nas últimas eleições. Uma severa restrição à oferta de financiamento eleitoral, portanto.

As eleições sempre foram um mercado em alta no Brasil. No gráfico abaixo é possível ver que as arrecadações de campanha praticamente triplicaram sua participação no PIB brasileiro desde 1994, considerando apenas as eleições gerais (para Presidente, Senadores, Deputados Federais, Governadores e Deputados Estaduais/Distritais).

 

Participação das doações eleitorais de pessoas físicas e jurídicas no PIB brasileiro nas eleições de 1994 a 2014

Evolução das doações de campanha como porcentagem do PIB de 1994 a 2014

Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados do pesquisador David Samuels (1994 e 1998) e de informações do Repositório de Dados Eleitorais do TSE (2002 em diante).

 

Esse crescimento exponencial no dinheiro envolvido nas eleições deve-se não apenas à corrupção, mas porque existem características estruturais que pressionam a demanda por financiamento. No sistema eleitoral brasileiro, as disputas pelo voto são realizadas em distritos eleitorais muito vastos geograficamente ou muito populosos – e isso tem grandes consequências sob as estratégias de campanhas.

Para os cargos majoritários (Presidente, Governador e Senador), para tornar-se conhecido é necessário investir pesado em programas de TV e rádio, conteúdo para internet, telemarketing e pesquisas de opinião – que são serviços muito caros. Para os cargos proporcionais (Deputados Estaduais e Federais), a eleição é custosa porque é personalista, nossos partidos têm pouca identificação ideológica e a disputa é feita com lista aberta, em que candidatos se digladiam na arena eleitoral tanto com os rivais de outras legendas quanto com aqueles do seu próprio partido. Logo, para ganhar votos é preciso fazer corpo a corpo para fixar seu nome junto ao eleitorado diante de centenas ou milhares de concorrentes – e tome santinhos, cavaletes, comícios, carros de som e balançadores de bandeiras nos sinais. O resultado disso é que a demanda por financiamento de campanha é crescente, pois o “preço” do voto eleva-se a cada eleição:

Valores médios arrecadados por voto obtido pelos candidatos vencedores nas eleições de 2002 a 2014

Valores médios arrecadados por voto obtido pelos candidatos vencedores nas eleições de 2002 a 2014

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de informações do Repositório de Dados Eleitorais do TSE. Valores deflacionados pelo IPCA.

 

Ora, se o STF proibiu as doações de empresas e não houve nenhuma mudança significativa para aplacar a demanda por dinheiro para cobrir os gastos de campanhas, espera-se que ocorra um cenário bem parecido com o observado na Lei Seca americana, na reserva de mercado de informática no Brasil dos anos 1980 ou no tabelamento de preços do Funaro. E isso tem tudo a ver com a discussão atual sobre a reforma política em discussão no Congresso.

Quando se reduz a oferta, mas a demanda é mantida constante, o primeiro efeito é a elevação do preço do produto. Sem poder recorrer às doações das empresas, os candidatos terão só 3 opções de financiar suas campanhas: seus recursos pessoais, doações de pessoas físicas e recursos públicos – e aí entra o tal Fundo de Financiamento da Democracia, que pode tungar R$ 3,6 bilhões do orçamento já ultra-mega-deficitário do governo. Do ponto de vista do candidato, portanto, o preço a pagar pelas suas campanhas subirá, seja em termos do comprometimento do seu próprio patrimônio, seja o “preço da dependência” de pessoas físicas ou dos líderes partidários. No caso do tal fundo eleitoral, para ter acesso a uma parte da bolada, os candidatos ficarão na mão dos caciques partidários regionais – agravando ainda mais a grande oligarquização que caracteriza os partidos brasileiros, como discuti neste post. O preço político ou o preço monetário de sua candidatura, portanto, vão subir de um jeito ou de outro.

A segunda decorrência da restrição na oferta de financiamento eleitoral será a busca, pelos partidos, por substitutos mais baratos, como a soja no tabelamento do Sarney ou os defasados computadores nacionais no auge da reserva de mercado da informática. No caso das eleições, os “substitutos inferiores” assumem a forma de candidatos que podem trazer grande volume de votos sem depender de grandes investimentos em campanha: celebridades, radialistas, apresentadores de TV, líderes religiosos e outras personalidades com grande exposição na mídia são uma realidade e tendem a crescer sua relevância. E não devemos nos esquecer dos candidatos milionários. Como escrevi aqui, a lei do mais rico já impera nas eleições brasileiras: Dorias, Kalils, Mediolis, Amasthas e Binottis se tornaram prefeitos das grandes cidades brasileiras em 2016 torrando sua própria fortuna pessoal, sem depender de seus partidos ou de grandes financiadores.

A proposta de se adotar o distritão vai seguir essa trilha do substituto inferior: eliminando o papel das legendas e coligações na definição dos quocientes eleitorais, os partidos partirão com tudo para atrair ricaços, pastores e celebridades para terem sucesso nas eleições.

Por fim, restrição artificial de oferta leva ao mercado negro. Não podendo doar oficialmente, empresas e empresários interessados em influenciar a política em seu próprio benefício terão que recorrer, “como era no início, agora e sempre” ao caixa dois e a propinas. E não se iluda que a Lava Jato extirpará esse mal no Brasil: o dinheiro é como água, e sempre encontra um jeito de chegar ao seu objetivo. Nós não estamos fazendo absolutamente nada em termos de aprimoramentos legais para tornar esse caminho mais difícil. Lembra-se das famosas “10 Medidas contra a Corrupção”? Pois é, nem sinal delas na tal “reforma” que os políticos estão discutindo no Congresso.

Os manuais de economia dão a dica de como resolver o enrosco em que nos metemos desde que o STF proibiu as doações de empresas e a Lava Jato expôs as vísceras mal cheirosas de nosso sistema político. Para resolver o problema gerado pela redução na oferta, só com uma redução de demanda de mesma ou maior intensidade.

Para tornar nossa democracia mais funcional, não precisamos criar um Fundo de Financiamento bilionário e nem recorrer ao distritão para garantir a reeleição e o foro privilegiado dos políticos da Lava Jato. Temos que tornar o sistema mais barato. Para tanto, a experiência internacional recomenda uma receita manjada, mas eficiente: partidos com ideologia bem definida e candidatos com forte identificação com o eleitorado.

As opções do cardápio para se alcançar esse objetivo, ao redor do mundo, giram em torno de dois pratos principais: lista fechada ou sistema distrital, a critério do freguês. Adotando-se qualquer um deles, acrescente cláusula de barreira e proibição de coligações e, no financiamento, faça um combinado de financiamento público (reduzido) e doações de pessoas físicas e/ou empresas com limites nominais baixos. E cadeia, pesadas multas e órgãos de controle bem equipados para desestimular os espertalhões que se aventurarem a recorrer ao caixa dois, comprometendo a lisura do jogo eleitoral.

Em vez de passar a conta da ineficiência do sistema eleitoral brasileiro para o cidadão-contribuinte-eleitor ou criar sistemas eleitorais “jabuticaba” para garantir sua própria sobrevivência, nossos políticos deveriam discutir a reforma eleitoral com mais seriedade. Se não for assim, ao contrário do que previu o Deputado Federal Tiririca (ele mesmo um subproduto desse sistema), vai ficar pior do que já está.

 

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O “grande acordo nacional” passa pela reforma política https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/#respond Fri, 07 Jul 2017 02:11:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=81 A esta altura do campeonato já está claro que a “Operação Machado-Jucá” encontra-se em curso acelerado. Para quem não se lembra, trata-se do diálogo entre o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o senador Romero Jucá para fazer “um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, porque “aí parava tudo”, “delimitava onde está, pronto”.

Nas últimas semanas, tivemos a absolvição da chapa Dilma-Temer por “excesso de provas”, a Segunda Turma do STF concedendo habeas corpus para libertar várias figuras sob prisão preventiva (Genu, Bumlai, Eike Batista, José Dirceu), a indicação ultra-rápida de uma nova Procuradora-Geral da República que não é alinhada com o atual chefe do MP (e, por tabela, da Lava Jato) Rodrigo Janot, a sucessão de decisões do Supremo e do Senado aliviando a barra de Aécio Neves e sua família, a decisão da Polícia Federal de encerrar as atividades da sua força-tarefa na Lava Jato em Curitiba…

O processo está tão engrenado que nem a peça central do plano Machado-Jucá parece tão imprescindível assim, uma vez que crescem as movimentações para que Rodrigo Maia, o Botafogo, substitua Michel Temer, que se mostra menor a cada dia.

Nesse cenário, a aprovação de uma nova reforma política se prestaria a garantir que tudo continue como dantes no quartel de Abrantes.

No último post deste blog defendi que a proposta de criação do “distritão” e de um fundo de R$ 3,5 bilhões para financiar as campanhas eleitorais é uma estratégia de sobrevivência dos políticos enrolados com a Operação Lava Jato.

A lógica é simples: como os partidos receberão uma bolada de recursos públicos para gastar nas eleições e os caciques regionais continuarão tendo liberdade para distribuir o dinheiro entre os candidatos, é muito provável que os maiores beneficiados sejam eles mesmos. Com isso, aumentam suas chances de reeleição e, assim, permanecem com todas as regalias, proteções e, o que é mais importante, o foro privilegiado – pois do jeito que as coisas vão ele não será extinto nunca.

Para ilustrar meu raciocínio, fiz um gráfico mostrando como os partidos distribuíram seus recursos de forma extremamente desigual entre os candidatos de cada Estado nas eleições de 2014, com um detalhe importante: destaquei os deputados federais envolvidos na Lava Jato, segundo levantamento feito pela Folha.

No gráfico acima as bolinhas representam, em cada Estado, o valor repassado pelos partidos políticos a seus candidatos. Vê-se que há uma disparidade imensa, com alguns poucos privilegiados recebendo valores extraordinários – Benito Gama (PTB/BA) é o campeão, com quase R$ 6 milhões – e a maioria recebendo muito pouco, ou nada.

Em amarelo estão destacados os deputados federais investigados na Lava Jato por receber propinas ou dinheiro de caixa dois. Como pode ser visto, a maioria deles figura entre os principais beneficiários na partilha de recursos arrecadados pelos partidos.

Se você tiver a curiosidade de analisar a situação por partido (selecionando na caixa no topo do gráfico), vai ver que muitos dos artífices do “grande acordo nacional” estão nesse grupo: Eduardo Cunha (o pai do impeachment), o próprio Rodrigo Maia, Rodrigo Rocha Loures (o da mala de dinheiro, à época um dos braços direitos de Temer), Paulinho da Força, Bruno Araújo (PSDB/PE, ministro das Cidades, o homem do “sim” decisivo no impeachment), além de figuras proeminentes da oposição que estão se prestando a esse papel, como Vicente Cândido (PT/SP, relator da reforma política) e Carlos Zarattini (PT/SP).

Todos eles investigados.

Todos eles de olho na bolada de recursos públicos que será destinada aos partidos caso a reforma política seja aprovada.

Todos eles buscando a reeleição e a manutenção do foro privilegiado.

Todos eles personagens-chave no “grande acordo nacional” para barrar a Lava Jato.

Essa é a reforma política do projeto Machado-Jucá. “Pra parar tudo”. Pra “estancar a sangria”. “Pra chegar do outro lado da margem”.

Caro(a) leitor(a), não se perca no noticiário frenético da política. Não desperdice seu ímpeto cívico atacando petralhas ou coxinhas. Preste atenção na reforma política – o diabo mora nos detalhes.

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Distritão e dinheirama: a “reforma política” dos políticos da Lava Jato https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/29/distritao-e-dinheirama-a-reforma-politica-dos-politicos-da-lava-jato/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/29/distritao-e-dinheirama-a-reforma-politica-dos-politicos-da-lava-jato/#respond Thu, 29 Jun 2017 06:00:56 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=59 Proposta de reforma política quer destinar R$ 3,5 bilhões para partidos e criar sistema eleitoral que prejudicará a governabilidade e beneficiará caciques políticos envolvidos com a Operação Lava Jato

“Money don’t get everything it’s true
What it don’t get, I can’t use
Now give me money
That’s what I want”

[Money (that’s what I want) – J. Bradford/B. Gordy Jr.]

Money (That’s what I want) foi composta em 1959 e, na voz de Barrett Strong, tornou-se o primeiro sucesso da gravadora Motown. O hit atravessou o Atlântico e, em 1º de janeiro de 1962, foi uma das canções que John, Paul, George e Pete Best (Ringo só veio depois) submeteram aos executivos da gravadora Decca na tentativa de assinar um contrato. Mas os homens da Decca disseram que os Beatles não tinham futuro porque as bandas de guitarras em breve sairiam de moda. #sqn.

Tentando se redimir de um dos maiores erros da história do show business, no ano seguinte a Decca assinou com os Rolling Stones. E advinha qual foi uma das primeiras gravações de Mick Jagger, Keith Richards e cia? Money! Yeah, that was what all of them wanted!

Ao analisar a atual proposta de reforma política, podemos dizer que dinheiro também é tudo o que os nossos parlamentares querem. Ainda não refeitos do baque da proibição das doações de empresas pelo Supremo Tribunal Federal, deputados e senadores querem a todo custo saciar sua fome de recursos para as campanhas eleitorais.

Conforme relato da Folha, esse assunto foi o prato principal de um jantar oferecido pelo Ministro Gilmar Mendes (STF) a Michel Temer, Rodrigo Maia (DEM/RJ, presidente da Câmara), Eunício Oliveira (PMDB/CE, presidente do Senado), Aécio Neves (PSDB/MG) e um seleto grupo de comensais em março passado. A ideia, àquela altura, era instituir o financiamento público de campanhas, combinado com um sistema de eleição por lista fechada para deputados federais, estaduais e vereadores.

A proposta de Gilmar Mendes foi encampada pelo relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT/SP) [veja aqui o seu terceiro relatório]. Para quem não está por dentro, funcionaria assim: partido definiria em convenção uma lista de candidatos classificados por ordem de preferência. No dia da eleição, nós votaríamos num partido, e não mais num candidato específico. Após a contagem de votos, seria definido o número de cadeiras a que cada legenda teria direito e elas seriam ocupadas pelos candidatos designados na lista do partido. Só para ficar claro, se o hipotético partido PQP recebeu votos suficientes para ter 3 vagas na Câmara dos Deputados, elas seriam ocupadas pelos três primeiros candidatos da sua lista prévia.

Um detalhe importantíssimo: já que o dinheiro das empresas secou, para custear as campanhas seria criado o Fundo de Financiamento da Democracia, composto por R$ 2 bilhões para ser distribuído entre os partidos. Esse dinheiro, claro, virá “do seu, do meu, do nosso” bolso – deve ser por isso que o fundo tem “democracia” no nome.

Não sei se foi porque quase ninguém mais acredita nos partidos ou porque começaram a dizer que a proposta era uma estratégia para manter o foro privilegiado da cúpula do Congresso, mas o fato é que a ideia de lista fechada aparentemente foi abandonada. Enquanto o país acompanha o novo núcleo temático da novela da Lava Jato, o embate entre Temer e Janot, nossos representantes continuam a conversar sobre a reforma política em jantares e almoços. E a bola da vez para resolver o problema dos políticos – e não do país – é o “distritão”.

De acordo com as últimas notícias, parlamentares do governo e da oposição estão selando um pacto para colocar mais dinheiro nas eleições de 2018 (sim, pode faltar dinheiro para emitir passaporte, mas devem estar sobrando R$ 3,5 bilhões para destinar aos políticos nas próximas eleições). De quebra, estão decidindo que a disputa será na base do “ganhou mais votos, levou” –  essa é a lógica do “distritão”.

Na experiência internacional, os países definem as regras de seleção dos parlamentares tendo em vista diferentes objetivos. Alguns privilegiam a escolha de candidatos que, na média, representem o perfil da população e sua diversidade de opiniões políticas; em outros, incentiva-se o vínculo entre os candidatos e a região onde moram.

A depender das regras também podemos ter modelos mais ou menos fáceis de ser compreendidos pelo eleitorado – variável importante neste momento de falta de confiança na política.

Os sistemas eleitorais também têm impactos diretos na governabilidade do Presidente da República, na medida em que podem gerar um Congresso composto por poucos partidos ou fragmentado em inúmeras legendas – situação que eleva consideravelmente o custo de governar, como aprendemos com o Mensalão e a Lava Jato.

Além disso, dependendo das regras do jogo, temos sistemas mais caros ou mais baratos – e mais ou menos permeáveis à influência de grandes doadores privados.

No modelo do “distritão” apenas um desses 5 grandes objetivos (representatividade da população, proximidade com o eleitor, facilidade de compreensão, governabilidade e custo) é atendido.

Se o Congresso optar por ele na atual reforma política, em 2018 serão eleitos os candidatos mais votados em cada Estado, independentemente da votação total de seu partido. Para a população, será fácil entender essa regra – e aí está a sua única vantagem. No mais, o “distritão” agrava todas as mazelas do atual sistema eleitoral brasileiro – esse modelo que produz corrupção, crise de governabilidade e afasta a população da política.

As eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil são caríssimas. Disputadas nos Estados, os candidatos têm que fazer campanha em regiões muito grandes, seja em termos de território ou de população. Além disso, quem quiser se tornar deputado federal tem que vencer no voto não apenas os adversários das outras legendas, mas também os colegas do próprio partido ou coligação. No modelo atual, portanto, há um claro incentivo para que se gaste muito na campanha.

É por isso que existe uma relação positiva entre número de votos e doações eleitorais no Brasil – ou seja, as chances de ser eleito aumentam com o total de dinheiro que você consegue arrecadar, o que abre um imenso flanco para corrupção. No gráfico abaixo você consegue visualizar essa associação nas eleições para a Câmara de 2014 – basta selecionar o Estado no filtro e passar o cursor sobre as bolinhas para saber quanto cada candidato

 

Se o Congresso optar pelo “distritão” em 2018, nada disso vai mudar. Aliás, pode até piorar. No sistema atual, as vagas de deputado em cada Estado são distribuídas segundo a soma de votos de todos os candidatos de um partido ou coligação, para daí serem escolhidos os mais votados em cada “time”. Na proposta do “distritão”, valerá o salve-se quem puder – ou seja, os mais votados serão eleitos, independentemente do desempenho agregado do partido.

Assim, o dinheiro ganhará ainda mais importância na campanha, pois a conexão com os votos será potencializada, pois abriremos mão da intermediação dos partidos. Com o “distritão” não importa a força do partido e sim exclusivamente o potencial – financeiro, arrecadatório ou de popularidade – do candidato.

Essa característica do “distritão” certamente levará a um Congresso ainda mais fragmentado a partir de 2019. Na medida em que o peso do partido perderá importância nas eleições, haverá um incentivo para que candidatos fortes migrem para partidos pequenos.

Se o que vale é quem tem mais votos, tanto faz para o milionário “não-político”, a celebridade ou o líder religioso concorrer por um partido grande ou pequeno. Aliás, num partido pequeno seu trabalho será ainda mais fácil, porque não precisará se sujeitar aos mandos e desmandos dos velhos e novos caciques partidários.

A tendência, portanto, será termos ainda mais partidos com representação no Congresso e uma diminuição das bancadas das legendas tradicionais. Em outras palavras, quem quer que vença as eleições presidenciais de 2018, seu trabalho para governar será ainda maior do que agora. Sob esse ponto de vista, esperamos mais crises políticas pela frente.

Eleições mais caras, pouco vínculo com o eleitor (as eleições continuarão sendo disputadas em âmbito estadual) e pior governabilidade não são os únicos defeitos do “distritão”. A combinação de muito dinheiro público (R$ 3,5 bilhões) e a regra do “vence quem ganha mais votos” pode potencializar o grande problema do sistema eleitoral brasileiro: a seleção de parlamentares que não nos representam. E o que é pior: aumentará a probabilidade de reelegermos os políticos enrascados com a Lava Jato.

Como você pode ver no gráfico abaixo, uma das excrecências de nossas regras eleitorais é dar muito poder aos diretórios regionais na distribuição do dinheiro de campanha arrecadado pelos partidos (tanto o recebido do fundo partidário quantos o arrecadado junto a pessoas físicas e, até 2014, empresas). Os caciques regionais detêm ampla liberdade para alocar essa grana entre os candidatos, o que resulta numa distribuição extremamente desigual de recursos. Clique no gráfico abaixo e veja como cada partido repartiu o dinheiro entre os candidatos de cada Estado nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados.

 

No modelo que está sendo proposto, os líderes partidários terão R$ 3,5 bilhões para aplicar nas campanhas de seus correligionários, além das doações individuais. De acordo com a sugestão que está atualmente na mesa, 2% desse valor será distribuído igualmente entre todos os partidos e os outros 98% serão alocados conforme a bancada eleita em 2014.

E aí é que está a grande jogada. As maiores bancadas eleitas em 2014 foram, respectivamente, PT (13,3%), PMDB (12,7%), PSDB (10,5%) e, na sequência, PP, PSD, PR e PSB (todos entre 6,6% e 7,4%). Multiplique esses percentuais por R$ 3,5 bilhões e veja quanto cada um vai levar…

Essa montanha de dinheiro a ser recebida pelos grandes partidos – justamente os mais envolvidos com a Lava Jato – será distribuída (em malas, talvez…) pelos líderes dos diretórios estaduais entre os seus candidatos.

Como no “distritão” será eleito quem ganhar mais votos independentemente do desempenho dos outros candidatos do partido, é de se esperar uma disparidade ainda maior na distribuição do dinheiro vindo do tal Fundo de Financiamento da Democracia. E, obviamente, haverá muita gente na mira da Lava Jato que vai fazer de tudo para ficar com um bom quinhão desse dinheiro público para continuar no poder.

Colocar mais dinheiro público e deixar que os partidos distribuam é, portanto, um cheque em branco para i) beneficiar os grandes partidos (que ganharão a maior fatia do bolo) e ii) privilegiar os caciques dos partidos ou seus asseclas mais próximos (justamente os que estão implicados na Lava Jato).

Reforma política (assim como a tributária) é um daqueles temas que todo mundo é a favor, mas na hora do vamos ver dá uma preguiça tremenda de acompanhar, estudar e propor soluções. Quando alguma coisa chega a ser aprovada, quase sempre acaba piorando as coisas – pois só os diretamente interessados é que se envolvem; a população em geral prefere continuar no flaflu entre petralhas e coxinhas nas redes sociais.

Nós estamos numa encruzilhada histórica e nossos parlamentares estão a ponto de aprovar uma reforma política que aumenta a quantidade de dinheiro que poderão gastar nas suas campanhas, beneficiando justamente aqueles que gostaríamos que fossem retirados de lá depois das revelações da Lava Jato.

De quebra, a proposta da “reforma política” proposta pelos políticos pode levar a um Congresso ainda mais fragmentado, menos representativo e com maiores chances de que o critério de eleição seja o dinheiro, a fama ou o tamanho do rebanho religioso – sem, com isso, aumentarmos a responsividade dos políticos ao seu eleitorado.

Temos muitos motivos para deixar de nos preocuparmos com o debate direita e esquerda e unirmos nossas forças para sepultar essa proposta de “distritão” com mais dinheiro público nas campanhas. Aliás, chega de dar dinheiro para os políticos. That’s what I don’t want.

 

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Doações (i)limitadas de campanhas: a lei do mais rico nas eleições brasileiras https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/20/doacoes-ilimitadas-de-campanhas-a-lei-do-mais-rico-nas-eleicoes-brasileiras/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/20/doacoes-ilimitadas-de-campanhas-a-lei-do-mais-rico-nas-eleicoes-brasileiras/#respond Wed, 21 Jun 2017 01:52:18 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=38 As regras eleitorais que permitem aos candidatos utilizar sua fortuna pessoal para financiar suas campanhas e vinculam as doações privadas à sua renda são injustas, antidemocráticas e estimulam a corrupção

“Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto
Até chegar o dia em que tentamos ter demais
Vendendo fácil o que não tinha preço

Eu sei, é tudo sem sentido
[…]

Nada mais vai me ferir, é que eu já me acostumei
Com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei”

(Andrea Doria – Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá)

 

A promiscuidade entre público e privado no financiamento das eleições no Brasil vem de tempos imemoriais. Para compreender como chegamos até a Lava Jato, e tentar vislumbrar aonde queremos (ou podemos) chegar, vou me concentrar apenas na chamada Nova República (depois de 1985).

Do ponto de vista da legislação sobre doações de campanhas, podemos dividir esse período em três momentos distintos.

Ironicamente, o Brasil emergiu da ditadura militar mantendo as mesmas regras eleitorais da fase autoritária. De acordo com a extinta Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 5.682/1971), eram proibidas as doações de empresas privadas nas eleições.

Esse era o regime que permitiu a eleição de Fernando Collor em 1989. Logo depois, num desses escândalos que de tempos em tempos “abalam a República”, ficamos sabendo que a vedação legal não impediu o uso de recursos empresariais naquela campanha. Se você der uma passada de olhos no Relatório da CPMI do Caso PC Farias, estão lá muitos dos nomes e elementos que vemos hoje na Operação Lava Jato: Odebrecht, Andrade Gutierrez, doleiros, paraísos fiscais, caixa dois, dinheiro para lá e para cá.

Determinado a “acabar com a hipocrisia” e dar mais “moralidade e transparência às campanhas eleitorais” (expressões extraídas do relatório do Caso PC Farias), o Congresso Nacional liberou as doações de empresas para candidatos e partidos – primeiro com a Lei nº 8.713/1993, que regulou as eleições gerais de 1994, e definitivamente com a Lei nº 9.504/1997.

Esse foi o sistema que gerou todos os grandes esquemas de corrupção que temos visto nos últimos anos com as operações Trensalão Tucano, Zelotes, Greenfield, Acrônimo e, claro, a Lava Jato. As evidências obtidas por meio das delações premiadas e das investigações dos órgãos de controle indicam o mesmo roteiro: grandes empresas ofertando propinas, contribuições oficiais e doações via caixa dois para políticos se enriquecerem e se perpetuarem no poder, em troca de favores governamentais (licitações, benefícios fiscais, decisões administrativas favoráveis, crédito barato, etc.). Fazendo a articulação entre os lados da oferta e da demanda por corrupção, uma intrincada rede de doleiros, contas em paraísos fiscais e lobistas.

Buscando por fim nessa “plutocracia” (o governo do dinheiro), o Supremo Tribunal Federal declarou, em 2015, que as doações de empresas eram inconstitucionais. Entramos, então, na atual fase de relacionamento entre dinheiro e eleições no Brasil, em que as campanhas só podem ser custeadas por recursos públicos do Fundo Partidário e por doações de pessoas físicas.

A inauguração dessa nova fase se deu nas eleições municipais de 2016. Não por acaso, o grande nome dessa eleição foi João Doria (PSDB), eleito prefeito de São Paulo ainda no primeiro turno. Para além do marketing e de seu discurso de “gestor” e de “não político”, Doria se beneficiou de uma particularidade da legislação eleitoral brasileira: a possibilidade de utilizar sua fortuna pessoal para cobrir os gastos de sua candidatura.

De acordo com o art. 23 , §§ 1º e 1º-A, da Lei nº 9.504/1997, as pessoas físicas podem destinar até 10% dos rendimentos brutos recebidos no ano anterior para financiar candidatos ou partidos. Se o sujeito for candidato, pode utilizar sua renda e o seu patrimônio até o limite máximo de gastos autorizado pela Justiça Eleitoral.

Essa regra de financiamento de campanhas é extremamente injusta e antidemocrática. Enquanto um assalariado pode doar no máximo R$ 1.249 nas eleições (10% de 12 salários mínimos, mais 13º salário e adicional de férias), Joesley Batista, por exemplo, poderia aplicar até R$ 221.433,33 (10% dos seus rendimentos brutos, conforme cópia da sua declaração de Imposto de Renda anexada no acordo de delação premiada).

No caso de candidatos, a regra é ainda mais desproporcional, pois sequer existe o limite de 10% dos rendimentos do ano anterior. O aspirante a um cargo público pode financiar toda a sua campanha com recursos próprios, desde que respeitado o teto de gastos definido pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Foi essa regra que permitiu que Doria utilizasse R$ 4,4 milhões de seu patrimônio para se tornar prefeito de São Paulo. E ele não foi o que mais gastou. Vitorio Medioli (PHS) desembolsou quase R$ 4,5 milhões para se tornar prefeito de Betim/MG e Rodrigo Pacheco (PMDB) queimou R$ 4,7 milhões na sua tentativa frustrada de se tornar prefeito de Belo Horizonte/MG.

Na lista dos 10 maiores doadores de 2016, figuram Carlos Enrique Amastha (PSB, prefeito de Palmas/TO, R$ 4,4 milhões), Luiz Binotti (PSD, prefeito de Lucas do Rio Verde/MT, R$ 3,2 milhões), Alcides Ribeiro Filho (Professor Alcides, PSDB, candidato derrotado à prefeitura de Aparecida de Goiânia/GO, R$ 2,26 milhões), Vanderlan Vieira Cardoso (PSDB, candidato derrotado à prefeitura de Goiânia/GO, R$ 2,2 milhões) e Alexandre Kalil (PHS, prefeito de Belo Horizonte/MG, R$ 2,2 milhões). Todos empresários e autoproclamados “não-políticos” e “gestores”.

Entre os top 10 do financiamento eleitoral em 2016, apenas dois não estavam na disputa: os gêmeos Pedro e Alexandre Grendene, que aportaram respectivamente R$ 2,48 milhões e R$ 1,82 milhão no último pleito.

Para dar uma dimensão do montante doado, elaborei o quadro abaixo com todas as pessoas físicas que investiram mais de R$ 100.000,00 nas eleições municipais de 2016.

 

Permitir que os mais ricos possam aportar mais dinheiro nas eleições – e, o que é ainda mais grave, que candidatos milionários tenham mais chances de ser eleitos – é uma agressão aos princípios democráticos de nossa Constituição.

Mais do que isso, a regra brasileira que estabelece a própria condição financeira do doador como limite para doações é também uma aberração em termos internacionais.

Para mostrar como os diversos países limitam (ou não) a influência do dinheiro nas eleições, utilizei a base de dados sobre financiamento eleitoral do Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral (International IDEA, em inglês). O resultado está no mapa abaixo:

 

No mapa acima, classifiquei os países de acordo com dois critérios: i) se permitem ou não doações de empresas para partidos ou candidatos; e ii) se há limites para doações de pessoas físicas e jurídicas.

Comecemos pelos países mais liberais, destacados com a cor verde. São os países que permitem doações de pessoas jurídicas e não impõem limites às contribuições de indivíduos ou empresas. Nesse grupo destacam-se países de tradição anglo-saxã (EUA, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia), países europeus desenvolvidos (Suécia, Noruega, Alemanha, Holanda, Suíça, Áustria), boa parte da África e a nossa vizinha Venezuela.

Um degrau abaixo no grau de liberalidade no financiamento eleitoral estão os países marcados em laranja. Eles permitem doações de empresas, mas com um teto para o valor a ser aplicado por pessoas físicas e jurídicas nas eleições. É o modelo dominante na América do Sul, na Rússia e no leste europeu, assim como em alguns países desenvolvidos, como Japão, Itália e Finlândia.

O grupo mais restritivo (vermelho), é o dos países que adotam o mesmo sistema que o Brasil escolheu a partir de 2015: vedação de contribuições feitas por empresas, com limites para doações de pessoas físicas. Entre as nações mais relevantes nesse grupo estão Canadá, Coreia, Portugal, Espanha, França e Bélgica, mas também países com histórico de instabilidade política e corrupção, como Grécia, Egito, Tunísia e Afeganistão.

Acontece, porém, que o Brasil pertence ao grupo mais restritivo apenas no papel. Isso se dá porque o tipo de limite que nossa legislação estabelece – baseado na renda do doador – é totalmente diferente dos demais países do mundo que fazem essa opção legislativa. Dê uma olhada na tabela abaixo, elaborada a partir da mesma base de dados do International IDEA [para facilitar a leitura, clique com o botão direito do mouse na tabela e abra-a em outra guia, aumentando o zoom]:

Limites para Doações de Pessoas Físicas e Jurídicas na Experiência Internacional

Como pode ser visto na tabela acima, a maioria dos países estabelece algum tipo de teto nominal para as doações de pessoas físicas e empresas. Esses limites podem ser estabelecidos em termos de um valor máximo (US$ 735 em Trinidad e Tobago, US$ 900 mil no Japão), de “x” salários mínimos (10 na Eslovênia e 5.000 no Paraguai e no Quirguistão) ou como porcentagem do valor máximo de despesas autorizadas para os candidatos (1% na Argentina e 10% na Guatemala e na Mauritânia).

O único país que tem um sistema parecido com o brasileiro, de colocar o limite em termos de um percentual dos ganhos do doador, é a Índia. Ainda assim, ela apresenta um limite bem inferior, pois se baseia no lucro líquido (7,5%, no caso), e não nos rendimentos brutos, como é o caso do Brasil (10%).

Na verdade, a jabuticaba do teto de doações brasileiro é quase como se não houvesse limite à influência do dinheiro nas campanhas eleitorais, principalmente se levarmos em conta os super-ricos. E, se eles são candidatos então… o poder é ainda maior. Doria que o diga.

Ao não dispor de um limite efetivo às doações privadas, é como se o Brasil migrasse para um grupo bastante particular no comparativo internacional: um país com vedação às doações de empresas, mas praticamente sem limite para doações de pessoas físicas (inclusive candidatos). Esse tipo de modelo de financiamento de campanhas é tão pouco significativo que apenas com muito esforço se consegue identificá-lo no mapa acima. Analisando a questão sob esse prisma, deveríamos estar destacados no mapa com a cor rosa, ao lado apenas de Honduras, Libéria e Filipinas – nações com pouca probabilidade de serem que consideradas exemplos a serem seguidos nessa matéria.

A simples adoção deste ou daquele modelo institucional obviamente não é garantia de sucesso no combate à corrupção. O que chama a atenção, no entanto, é como o modelo brasileiro continua permissivo à influência do dinheiro nas eleições, mesmo com a proibição das doações empresariais.

De um lado, vedamos as contribuições de empresas sem dispor de um aparato estatal para punir efetivamente o financiamento ilegal – vide o recente julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE e a proposta de Janot para suspender os processos envolvendo caixa dois na Lava Jato. Por outro, limites baseados na renda do indivíduo favorecem os milionários – sejam eles superdoadores, sejam candidatos. A combinação desses dois fatores estimula a permeabilidade da política ao poder do dinheiro.

Como tudo o que está ruim pode piorar, segundo reportagem da Folha o relator da reforma política na Câmara, Vicente Cândido (PT/SP), pretende propor o aumento do teto para doações de que pessoas físicas (ele será superior a 10% dos rendimentos brutos, portanto). A se confirmar essa tendência, vamos esperar que novos milionários aportem recursos na política brasileira. Roberto Justus e Luciano Huck já ensaiaram alguns passos nessa direção.

Como diria a canção da Legião – por coincidência chamada Andrea Doria, em homenagem ao príncipe da Sereníssima República de Gênova, terra de banqueiros e mercadores – eu já me acostumei com a estrada errada que tomamos e com a nossa própria lei.

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