O E$pírito das Leis https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br Thu, 13 Dec 2018 11:46:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Carlos Drummond, Temer e as MPs do Código de Minas https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/08/02/carlos-drummond-temer-e-as-mps-do-codigo-de-minas/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/08/02/carlos-drummond-temer-e-as-mps-do-codigo-de-minas/#respond Wed, 02 Aug 2017 08:00:41 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=113 As três medidas provisórias editadas na semana passada deveriam nos fazer refletir até que ponto o objetivo do Presidente de se safar da Justiça atropela a democracia e pode comprometer o desenvolvimento sustentável do país

[…]
Com tanto minério em roda
Podendo ser extraído,
A icominas se açoda
E nem sequer presta ouvido
Ao grave apelo da história
Que recortou nessa imagem
Um outro azul da memória
E um assombro da paisagem.
[…]
Tudo exportar bem depressa,
Suando as rotas camisas.
Ficam buracos? Ora essa,
O que vale são divisas
Que tapem outros “buracos”
Do tesouro nacional,
Deixando em redor os cacos
De um país colonial.
[…]
E vem de cima um despacho
Autorizando: derruba!
Role tudo, de alto a baixo,
Como, ao vento, uma embaúba!
E o pico de Itabirito
Será moído, exportado.
Só quedará no infinito
Seu fantasma desolado.
O Pico do Itabirito” (Carlos Drummond de Andrade, Versiprosa, 1967)

 

Os versos acima são de um poema de Drummond denunciando as pressões das mineradoras para explorar a região do Pico do Itabirito, patrimônio histórico e natural de Minas Gerais, marco de orientação para bandeirantes e tropeiros desde os tempos do Ciclo do Ouro.

Itabirito em tupi significa “pedra que risca vermelho”: a cor do minério de ferro, commodity que no século XX substituiu o ouro como principal riqueza extraída das entranhas de Minas.

De acordo com Drummond, a sanha mineratória na região começou com a St_John_del_Rey_Mining_Company. Depois veio a Hanna Mining. A indignação do poeta, no entanto, centra-se na Icominas, que alguns anos depois se transformou em Icomi, Caemi e finalmente MBR. Em 2001 ela foi comprada pela Vale.

O pico ficou, mas todo o seu entorno já foi moído e exportado, como previsto por Drummond. Dá uma olhada nesta imagem de satélite extraída do Google Maps:

Imagem de satélite da região do Pico do Itabirito (MG)
Imagem de satélite da região do Pico do Itabirito (MG)

Por coincidência, o livro do Drummond com o poema “O Pico do Itabirito” saiu em 1967, mesmo ano em que foi editado o Código de Minas, marco regulatório do setor.

Assim como o Pico do Itabirito ainda resiste, mesmo que praticamente na forma de um painel de outdoor, o Código de Minas de 1967 continua em vigor. Ele também foi desfigurado ao longo do tempo, com alterações frequentes; a mais importante foi realizada há mais de 20 anos, com FHC.

Na semana passada, o Governo Temer editou no mesmo dia, de uma só tacada, três medidas provisórias reformulando todo o marco regulatório do setor de mineração no Brasil.

Uma delas criou a Agência Nacional de Mineração (ente regulador que substitui o DNPM), a outra alterou de forma substantiva o Código de Minas e a terceira implantou uma nova sistemática de cobrança de royalties, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Naturais.

É inegável a necessidade de se reformular o setor de mineração no Brasil: ele gera empregos e riquezas, é um dos principais produtos de nossa pauta de exportações e o código atual é anacrônico, inibe investimentos em pesquisa e até alimenta uma máfia de empresas envolvidas com a obtenção e venda de licenças de exploração mineral.

Mas, justamente pela sua importância para o país, a atividade de exploração de riquezas minerais envolve múltiplos interesses e objetivos, muitos deles divergentes: as mineradoras e seus lucros, a política econômica e a balança comercial, os empregados e seus postos de trabalho, os Estados e municípios e os royalties, os consumidores e o preço dos produtos, a coletividade (incluindo aí as gerações futuras) e o meio ambiente sustentável…

Nesse contexto, o processo legislativo deveria constituir-se num fórum para debatermos, de forma plural, os prós e os contras de qualquer proposta destinada a mudar essa regulação. Representantes de cada um dos interesses deveriam ter condições razoavelmente equânimes para expressar seus pontos de vista aos parlamentares. E esses, por sua vez, deveriam debater com profundidade as mudanças em pauta e decidir por uma regulação equilibrada, vocacionada a assegurar o que costumamos chamar de “desenvolvimento sustentável”.

Mas exercer a democracia dá trabalho, e nós brasileiros gostamos de atalhos. E um dos mais utilizados se chama “medida provisória” – filha do decreto-lei de nossas ditaduras, o instrumento que instituiu o mesmo Código de Minas que Temer agora está alterando.

Na minha opinião, as medidas provisórias são o mais danoso mecanismo de nosso “presidencialismo de coalizão”.

[Aliás, abro aqui um par de colchetes para alfinetar meus amigos cientistas políticos.

Desde que Sérgio Abranches – mais um mineiro neste texto – cunhou essa expressão, ainda em 1988, os pesquisadores da área desenvolveram uma obsessão com pesquisas sobre governabilidade e disciplina partidária.

Pouca atenção ainda é dada àquela que é, a meu ver, a principal conclusão do artigo: a tendência intrínseca do presidencialismo de coalizão ao conluio entre a burocracia (incluída aí a classe política) e os interesses privados, mantendo-nos presos ao ciclo de extração de renda do Estado e da sociedade. Se eu entendi bem seu artigo genial, este é o verdadeiro “dilema institucional brasileiro” exposto por Abranches. Ou seja, o sistema que instituímos na Constituição de 1988 gera uma tendência incontornável para o rent seeking – expressão inglesa que define a busca de pessoas físicas e jurídicas influentes por uma boquinha do Estado, à custa de toda a sociedade.

Para fechar esse longo desvio acadêmico, deem uma olhada neste trecho do artigo original:

Proliferam os incentivos e subsídios, expande-se a rede de proteção e regulações estatais. Esse movimento tem o resultado, aparentemente contraditório, de limitar progressivamente a capacidade de ação governamental. O governo enfrenta uma enorme inércia burocrático-orçamentária, que torna extremamente difícil a eliminação de qualquer programa, a redução ou extinção de incentivos e subsídios, o reordenamento e a racionalização do gasto público. Como cada item já incluído na pauta estatal torna-se cativo desta inércia, sustentada tanto pelo conluio entre segmentos da burocracia e os beneficiários privados, quanto pelo desinteresse das forças políticas que controlam o Executivo e o Legislativo em assumir os custos associados a mudanças nas pautas de alocação e regulação estatais, restringe-se o raio de ação do governo e reduzem-se as possibilidades de redirecionar a intervenção do Estado. Verifica-se, portanto, o enfraquecimento da capacidade de governo, seja para enfrentar crises de forma mais eficaz e permanente, seja para resolver os problemas mais agudos que emergem de nosso próprio padrão de desenvolvimento (ABRANCHES, 1988, p. 6).]

Voltando às medidas provisórias, elas são um instrumento valioso para o rent seeking no Brasil porque, por meio delas, o Executivo ganha, os parlamentares ganham, as empresas que têm poder de lobby ganham e a coletividade… bem, a coletividade quase sempre perde, porque geralmente não há quem tenha força suficiente para defendê-la (aliás, será que nossa sociedade sabe mesmo o que quer?).

Nesse contexto, reformar todo o sistema regulatório da mineração brasileira, uma área tão importante para nosso desenvolvimento sustentável, na base da canetada, por meio de MP, não só é antidemocrático, como revela um oportunismo sem limites dos principais agentes envolvidos.

Obviamente há o interesse das mineradoras, que vislumbraram uma oportunidade para mudar o Código de Minas de forma atropelada, sem audiências públicas, sem debate na sociedade e com pouca discussão no Congresso – afinal, desde que foram publicadas no Diário Oficial, as mudanças já estão em vigor em sua quase inteireza.

Mas, nesse caso específico, eu vislumbro um claro oportunismo do Presidente da República em alterar a regulação da mineração no Brasil.

Veja bem. Nos últimos dois meses, praticamente todas as ações políticas tomadas em Brasília giram em torno de um único fator: Michel Temer precisa de 172 votos para que a Câmara barre o processo que corre contra ele no STF.

Sua popularidade está próxima de zero, segundo as últimas pesquisas. Além disso, poucos partidos apoiam o Presidente de forma maciça a ponto de garantir sua governabilidade com base no puro convencimento ideológico – e nesse caso ele não está só: desde Sarney, todos enfrentaram esse problema em algum momento.

Diante desses fatos, os governantes brasileiros geralmente buscam os votos necessários para seus objetivos negociando no varejão (cargos, emendas parlamentares, promessas de doações de campanhas) ou recorrendo às chamadas bancadas – frentes parlamentares que defendem abertamente determinados interesses, como a da Bíblia (evangélicos), da bala (parlamentares que defendem um endurecimento da política de segurança pública), os ruralistas, etc.

No caso das MPs recentemente editadas por Temer, temos também a bancada da mineração no Congresso, que é presidida pelo deputado Sérgio Souza (PMDB/PR) – clique aqui para conhecer os seus 226 membros fundadores.

Para se ter uma ideia do seu poder, a Frente Parlamentar da Mineração é responsável por 60% dos 25 membros titulares da Comissão Especial que debate um projeto de lei que pretendia alterar o Código de Minas antes das MPs do Temer.

Pertencem à bancada da mineração as duas figuras mais importantes da Comissão: seu presidente, o deputado Gabriel Guimarães (PT) e o relator Leonardo Quintão (PMDB).

Não por acaso, ambos mineiros.

Não por acaso, ambos tiveram suas campanhas fortemente financiada por mineradoras.

Gabriel Guimarães, pela Companhia Brasileira de Mineração e Metalurgia, Vale, Companhia Brasileira de Alumínio, Anglo Gold e Votorantim.

Leonardo Quintão, pelas mesmas empresas e mais Kinross Mineração, Flapa Mineração e Incorporações, LMA Mineração, Mineração Polaris e ainda as siderúrgicas Usiminas, Gerdau, Vallourec e Magnesita. Para saber os valores, consulte aqui o site do TSE e pesquise os nomes dos ilustres deputados.

O que é mais interessante nesta história é que a bancada da mineração é fortemente pró-Temer, de acordo com os números.

Veja o caso da votação, na Comissão de Constituição e Justiça (a famosa CCJ) do atual processo sobre a admissibilidade do processo criminal contra ele.

Dos 66 membros da Comissão, 31 pertenciam à Frente Parlamentar da Mineração. Desses, 24 votaram a favor de Temer – ou seja, mais da metade dos 41 votos totais que o Presidente conseguiu veio da bancada da mineração.

Em termos percentuais, no gráfico abaixo podemos ver que naquela votação da CCJ o percentual de aprovação de Temer entre a bancada da mineração (77,4%) foi significativamente superior aos 62,1% de votos que ele conseguiu no grupo total.

Votação a favor de Temer na CCJ
Elaboração do autor a partir de dados obtidos no site da Câmara dos Deputados.

 

Outra evidência do apoio dos deputados ligados às mineradoras a Temer vem da votação sobre a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff no ano passado.

Se tomarmos apenas os membros da Comissão Especial que deliberava sobre as mudanças no Código de Minas – partindo do pressuposto de que eles são os mais diretamente interessados nesse assunto – podemos ver que a imensa maioria se posicionou pelo “Tchau, querida”. Conforme você pode ver na tabela abaixo, isso aconteceu independentemente de estarem formalmente vinculados à bancada da mineração.

 

Resumo da ópera: a edição de três medidas provisórias às vésperas da votação do seu processo no plenário da Câmara beneficiando um setor fortemente organizado e capaz de influenciar um grande número de deputados como a mineração revela um grande oportunismo de ambas as partes.

Em troca de apoio na votação que pode afastá-lo da Presidência da República e transformá-lo em réu no STF, Temer oferece uma regulação longamente desejada por grupos econômicos que têm, em suas mãos (ou bolsos?) um grande número de deputados.

Observe, caro leitor, que eu não estou questionando aqui o mérito das medidas provisórias e nem a necessidade de reformas no marco regulatório do setor.

Meu foco aqui foi explicitar os interesses em jogo e demostrar como esse arranjo institucional de presidencialismo de coalizão combinado com ampla liberdade para editar medidas provisórias agride o espírito democrático e favorece o rentismo no país.

É bom ficarmos de olho, antes que se cumpra a profecia do Drummond, de ver nossas montanhas definitivamente moídas e exportadas.

E olha que CDA tem dons premonitórios. Afinal, em 1984 ele escreveu no jornal Lira Itabirana:

 

I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

Mas isso é assunto para outro dia. Até lá!

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Compra-se tudo, tudo se vende https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/21/compra-se-tudo-tudo-se-vende/#respond Fri, 21 Jul 2017 11:48:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=105 Tramitação da Medida Provisória que pretendia reduzir os setores beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos revela como as leis no Brasil são mal feitas e movidas pelo interesse econômico

Está ao alcance das mãos, experimente
Como é antigo o passado recente
Dentro de mais alguns instantes
De novo tudo igual ao que era antes
[…]
Compra-se tudo, tudo se vende
É conversando que a gente se entende
[…]
Dinheiro é bom, dinheiro é bom até assim
Ainda é muito bom mesmo quando é ruim
Se você não provou, um dia ainda vai provar
É fácil dizer, difícil é acreditar
E quem é que quer ver as coisas como realmente são?

“Qualquer Negócio” (Britto, Miklos, Gavin, Belloto, Mello, Fromer)

 

No último post, demonstrei como a decisão do governo Dilma de migrar a base de tributação das empresas da folha salarial para o faturamento – conhecida popularmente como desoneração da folha de pagamentos – tornou-se um grande negócio para diversos setores e um problema fiscal bilionário que afeta o financiamento da Previdência Social.

O roteiro é bastante típico da forma como fazemos políticas públicas no Brasil, principalmente aquelas relacionadas a incentivos fiscais: i) pega-se uma ideia que pode até ser boa, ii) edita-se uma medida provisória sem nenhum estudo sério sobre suas consequências, iii) a MP é desvirtuada no Congresso para ampliar seus benefícios ou beneficiários e iv) depois de virar lei, editam-se outras MPs para prorrogar prazos de vigência e aumentar ainda mais os incentivos e quem tem direito a recebê-los.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, a ideia inicial era que atendesse 6 setores e gerasse um impacto fiscal de R$ 1,43 bilhão por ano a partir de 2012. No final de 2015 já eram mais de 50 os segmentos contemplados e a conta paga por todos nós chegou a R$ 25 bilhões anuais.

O propósito deste texto é demonstrar como é difícil desarmar essas bombas fiscais que são criadas para atender ao interesse de alguns, com o pagamento a cargo de milhões de contribuintes.

Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma 2, bem que tentou. A duras penas, aprovou a Lei nº 13.161/2015, aumentou as alíquotas e reduziu o rombo para R$ 15 bilhões em 2016.

Agora é a vez de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Temer: editou a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos. Seu plano era reduzir o rombo da desoneração fiscal para menos de R$ 10 bilhões neste ano e abaixo de R$ 2 bilhões em 2018. Ou seja, voltaríamos ao plano original lá de 2011.

De acordo com a Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República para justificar a MP, a restrição da desoneração deve-se a “necessidade de redução do déficit da Previdência Social pela via da redução do gasto tributário, com o consequente aumento da arrecadação”.

Pela leitura desse documento, aliás, vê-se que continuamos tomando medidas importantes sem o necessário estudo prévio – ou, se ele existe, não é transparente e passível de debate pela sociedade.

A Exposição de Motivos, exigida pela legislação para dar satisfação ao público quanto aos requisitos de “urgência” e “relevância” de uma MP, é lacônica (oito parágrafos curtos), não faz menção a qualquer análise técnica e não apresenta justificativas para a escolha dos setores que vão continuar com a desoneração na folha.

Sobre esse aspecto, os dados disponibilizados pela Receita Federal aqui revelam que a geração de emprego parece não ter sido o critério dominante para se manter a desoneração para os setores de transporte terrestre, construção civil e infraestrutura e empresas jornalísticas, em detrimento dos demais. No gráfico abaixo, o tamanho dos polígonos representa o volume de empregados afetados pela medida em cada setor, sendo que a cor verde demonstra aqueles que continuarão tendo direito à desoneração da folha salarial:

 

 

Da mesma forma, tampouco a renúncia fiscal parece ser a razão dominante para a escolha feita pelo governo de preservar alguns setores e acabar com a desoneração de outros:

Mesmo relevando essa falha do governo em realizar estudos prévios ou, talvez, não torná-los públicos, a intenção de rever a desoneração da folha neste cenário de grave crise fiscal é bem-vinda.

Mas querer não é poder. Do outro lado existem interesses muito bem organizados e articulados com quem realmente decide: nossos representantes no Congresso. Pera lá! Representantes de quem?!?!?!

Analisando a tramitação da MP nº 774 no Congresso, é possível concluir, mais uma vez, como o processo de elaboração das leis brasileiras é extremamente permeável à ação de grupos de interesses econômicos. E é importante deixar claro como tudo isso é realizado sob um verniz de democracia e participação social.

Tome-se o caso da audiência pública realizada para discutir a matéria. Observando-se a lista dos participantes, vemos a predominância de representantes dos setores prejudicados pela extinção da desoneração da folha de pagamentos. Convidados pelos parlamentares, esses empresários ou representantes de entidades de representação empresarial têm uma grande oportunidade de estar frente a frente com os parlamentares e ter voz ativa no processo legislativo – vozes que são amplificadas pela cobertura da mídia no Congresso e pelas transmissões da TV Câmara e TV Senado.

Da relação de 11 participantes da audiência pública, apenas um do governo (Receita Federal) e dois representantes dos trabalhadores. Vê-se, portanto, como as audiências públicas no Congresso são um simulacro de canal de participação social, uma vez que a distribuição de suas vagas é extremamente desigual, sendo favorecidos os grupos com maior articulação e acesso aos parlamentares.

Aliás, a apresentação do Coordenador-adjunto do Dieese foi a única a transmitir uma visão relativamente abrangente da questão em debate, revelando como a desoneração da folha de pagamentos não tem efeitos claros sobre a geração de empregos tanto na experiência internacional quanto nos poucos estudos sérios realizados sobre o tema no Brasil até o momento. As demais foram falas interessadas dos setores afetados, com visões catastrofistas sobre os impactos da MP sobre o emprego e a produção – tudo para justificar a manutenção do incentivo.

Outro mito da democracia brasileira desmascarado pelos dados da tramitação legislativa é o da representatividade: em geral os parlamentares são representantes de setores específicos, e não do seu eleitorado ou – suprema ilusão! – da população em geral.

Tome-se o caso das emendas propostas pelos deputados com o objetivo de alterar o texto da MP nº 774. Das 90 emendas propostas, 67 destinavam-se explicitamente (sim, caro(a) leitor(a), eu li todas as emendas!!!) a beneficiar determinado setor, mantendo seu direito à desoneração da folha.

Frise-se que essas emendas não foram propostas com base em critérios técnicos: nas justificativas às emendas não há menção a estudos confiáveis sobre a relação custo-benefício da medida, donde se conclui que o propósito era simplesmente manter o privilégio.

A situação fica mais complicada quando verificamos que, em geral, há um estreito vínculo prévio entre o parlamentar que propõe a emenda e o setor beneficiado por ela.

Como pode ser visto na tabela abaixo, na maioria das vezes o senador ou deputado que propõe uma emenda destinada a manter a desoneração para um setor já tem um relacionamento com ele. Essa relação é expressa tanto em termos de uma participação em frentes parlamentares de apoio ao segmento (as famosas “bancadas” empresariais) ou, pela via mais direta, doações de campanha vindas de empresas que atuam naquele ramo.

 

Fonte: Dados coletados pelo autor, a partir de informações das páginas da Câmara, do Senado e do TSE.

Na tabela acima pode-se ver emenda de deputado que recebeu doações da Embraer propondo a manutenção da desoneração para a indústria aeronáutica, parlamentar que é presidente da Frente de Apoio ao Setor Calçadista defendendo a continuidade do benefício para as empresas do setor de calçados e couros, emendas voltadas para o setor frigorífico – carnes e derivados, suínos e avicultura – sendo propostas por congressistas da frente ruralista que receberam doações da JBS e da BR Foods (Sadia, Perdigão e etc).

E por aí vai… as evidências indicam que o processo legislativo é dominado por uma relação íntima entre parlamentares e o setor empresarial, construído ao longo do mandato – as frentes parlamentares são uma indicação disso – ou que já vem desde a campanha, por meio do financiamento eleitoral.

No caso em questão não houve nenhuma emenda propondo melhorar o sistema de desoneração, aperfeiçoando seus mecanismos de funcionamento ou eliminando eventuais distorções. A discussão se pautou apenas para tentar manter o incentivo fiscal para este ou aquele setor.

Aliás, quanto mais analiso os dados de comportamento parlamentar mais eu me convenço que ele é pautado estritamente pelo vínculo entre políticos e empresários. Proposição de projetos, relatorias, apresentação de emendas, votação em plenário, etc. não são frutos do debate de ideias, mas sim da retribuição por apoio financeiro nas campanhas ou pela expectativa de recebimento no futuro.

A tramitação da MP nº 774/2017 ainda não terminou. O parecer apresentado pelo relator, senador Airton Sandoval (PMDB/SP, suplente de Aloysio Nunes Ferreira), ainda será debatido em Plenário e, se aprovado, seguirá para o Senado. Mas já podemos ver que a toada é a mesma. As emendas acatadas restituem a desoneração para os principais setores – têxteis, calçados, couro, tecnologia da informação e comunicação e call centers – e ainda inclui as chamadas “empresas estratégicas de defesa”.

Não é por acaso que os setores reincluídos na desoneração estiveram presentes na audiência pública. E certamente não deve ser por acaso que os novos beneficiários (o parecer cita nominalmente a Embraer, a Iveco e a Avibrás) foram colocadas lá.

Como diria a canção dos Titãs que abre este artigo, no processo legislativo brasileiro “tudo se compra, tudo se vende; é conversando que a gente se entende”. “De novo tudo igual ao que era antes”.

 

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O “grande acordo nacional” passa pela reforma política https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/07/06/o-grande-acordo-nacional-passa-pela-reforma-politica/#respond Fri, 07 Jul 2017 02:11:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=81 A esta altura do campeonato já está claro que a “Operação Machado-Jucá” encontra-se em curso acelerado. Para quem não se lembra, trata-se do diálogo entre o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o senador Romero Jucá para fazer “um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, porque “aí parava tudo”, “delimitava onde está, pronto”.

Nas últimas semanas, tivemos a absolvição da chapa Dilma-Temer por “excesso de provas”, a Segunda Turma do STF concedendo habeas corpus para libertar várias figuras sob prisão preventiva (Genu, Bumlai, Eike Batista, José Dirceu), a indicação ultra-rápida de uma nova Procuradora-Geral da República que não é alinhada com o atual chefe do MP (e, por tabela, da Lava Jato) Rodrigo Janot, a sucessão de decisões do Supremo e do Senado aliviando a barra de Aécio Neves e sua família, a decisão da Polícia Federal de encerrar as atividades da sua força-tarefa na Lava Jato em Curitiba…

O processo está tão engrenado que nem a peça central do plano Machado-Jucá parece tão imprescindível assim, uma vez que crescem as movimentações para que Rodrigo Maia, o Botafogo, substitua Michel Temer, que se mostra menor a cada dia.

Nesse cenário, a aprovação de uma nova reforma política se prestaria a garantir que tudo continue como dantes no quartel de Abrantes.

No último post deste blog defendi que a proposta de criação do “distritão” e de um fundo de R$ 3,5 bilhões para financiar as campanhas eleitorais é uma estratégia de sobrevivência dos políticos enrolados com a Operação Lava Jato.

A lógica é simples: como os partidos receberão uma bolada de recursos públicos para gastar nas eleições e os caciques regionais continuarão tendo liberdade para distribuir o dinheiro entre os candidatos, é muito provável que os maiores beneficiados sejam eles mesmos. Com isso, aumentam suas chances de reeleição e, assim, permanecem com todas as regalias, proteções e, o que é mais importante, o foro privilegiado – pois do jeito que as coisas vão ele não será extinto nunca.

Para ilustrar meu raciocínio, fiz um gráfico mostrando como os partidos distribuíram seus recursos de forma extremamente desigual entre os candidatos de cada Estado nas eleições de 2014, com um detalhe importante: destaquei os deputados federais envolvidos na Lava Jato, segundo levantamento feito pela Folha.

No gráfico acima as bolinhas representam, em cada Estado, o valor repassado pelos partidos políticos a seus candidatos. Vê-se que há uma disparidade imensa, com alguns poucos privilegiados recebendo valores extraordinários – Benito Gama (PTB/BA) é o campeão, com quase R$ 6 milhões – e a maioria recebendo muito pouco, ou nada.

Em amarelo estão destacados os deputados federais investigados na Lava Jato por receber propinas ou dinheiro de caixa dois. Como pode ser visto, a maioria deles figura entre os principais beneficiários na partilha de recursos arrecadados pelos partidos.

Se você tiver a curiosidade de analisar a situação por partido (selecionando na caixa no topo do gráfico), vai ver que muitos dos artífices do “grande acordo nacional” estão nesse grupo: Eduardo Cunha (o pai do impeachment), o próprio Rodrigo Maia, Rodrigo Rocha Loures (o da mala de dinheiro, à época um dos braços direitos de Temer), Paulinho da Força, Bruno Araújo (PSDB/PE, ministro das Cidades, o homem do “sim” decisivo no impeachment), além de figuras proeminentes da oposição que estão se prestando a esse papel, como Vicente Cândido (PT/SP, relator da reforma política) e Carlos Zarattini (PT/SP).

Todos eles investigados.

Todos eles de olho na bolada de recursos públicos que será destinada aos partidos caso a reforma política seja aprovada.

Todos eles buscando a reeleição e a manutenção do foro privilegiado.

Todos eles personagens-chave no “grande acordo nacional” para barrar a Lava Jato.

Essa é a reforma política do projeto Machado-Jucá. “Pra parar tudo”. Pra “estancar a sangria”. “Pra chegar do outro lado da margem”.

Caro(a) leitor(a), não se perca no noticiário frenético da política. Não desperdice seu ímpeto cívico atacando petralhas ou coxinhas. Preste atenção na reforma política – o diabo mora nos detalhes.

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Distritão e dinheirama: a “reforma política” dos políticos da Lava Jato https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/29/distritao-e-dinheirama-a-reforma-politica-dos-politicos-da-lava-jato/ https://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/2017/06/29/distritao-e-dinheirama-a-reforma-politica-dos-politicos-da-lava-jato/#respond Thu, 29 Jun 2017 06:00:56 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://oespiritodasleis.blogfolha.uol.com.br/?p=59 Proposta de reforma política quer destinar R$ 3,5 bilhões para partidos e criar sistema eleitoral que prejudicará a governabilidade e beneficiará caciques políticos envolvidos com a Operação Lava Jato

“Money don’t get everything it’s true
What it don’t get, I can’t use
Now give me money
That’s what I want”

[Money (that’s what I want) – J. Bradford/B. Gordy Jr.]

Money (That’s what I want) foi composta em 1959 e, na voz de Barrett Strong, tornou-se o primeiro sucesso da gravadora Motown. O hit atravessou o Atlântico e, em 1º de janeiro de 1962, foi uma das canções que John, Paul, George e Pete Best (Ringo só veio depois) submeteram aos executivos da gravadora Decca na tentativa de assinar um contrato. Mas os homens da Decca disseram que os Beatles não tinham futuro porque as bandas de guitarras em breve sairiam de moda. #sqn.

Tentando se redimir de um dos maiores erros da história do show business, no ano seguinte a Decca assinou com os Rolling Stones. E advinha qual foi uma das primeiras gravações de Mick Jagger, Keith Richards e cia? Money! Yeah, that was what all of them wanted!

Ao analisar a atual proposta de reforma política, podemos dizer que dinheiro também é tudo o que os nossos parlamentares querem. Ainda não refeitos do baque da proibição das doações de empresas pelo Supremo Tribunal Federal, deputados e senadores querem a todo custo saciar sua fome de recursos para as campanhas eleitorais.

Conforme relato da Folha, esse assunto foi o prato principal de um jantar oferecido pelo Ministro Gilmar Mendes (STF) a Michel Temer, Rodrigo Maia (DEM/RJ, presidente da Câmara), Eunício Oliveira (PMDB/CE, presidente do Senado), Aécio Neves (PSDB/MG) e um seleto grupo de comensais em março passado. A ideia, àquela altura, era instituir o financiamento público de campanhas, combinado com um sistema de eleição por lista fechada para deputados federais, estaduais e vereadores.

A proposta de Gilmar Mendes foi encampada pelo relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT/SP) [veja aqui o seu terceiro relatório]. Para quem não está por dentro, funcionaria assim: partido definiria em convenção uma lista de candidatos classificados por ordem de preferência. No dia da eleição, nós votaríamos num partido, e não mais num candidato específico. Após a contagem de votos, seria definido o número de cadeiras a que cada legenda teria direito e elas seriam ocupadas pelos candidatos designados na lista do partido. Só para ficar claro, se o hipotético partido PQP recebeu votos suficientes para ter 3 vagas na Câmara dos Deputados, elas seriam ocupadas pelos três primeiros candidatos da sua lista prévia.

Um detalhe importantíssimo: já que o dinheiro das empresas secou, para custear as campanhas seria criado o Fundo de Financiamento da Democracia, composto por R$ 2 bilhões para ser distribuído entre os partidos. Esse dinheiro, claro, virá “do seu, do meu, do nosso” bolso – deve ser por isso que o fundo tem “democracia” no nome.

Não sei se foi porque quase ninguém mais acredita nos partidos ou porque começaram a dizer que a proposta era uma estratégia para manter o foro privilegiado da cúpula do Congresso, mas o fato é que a ideia de lista fechada aparentemente foi abandonada. Enquanto o país acompanha o novo núcleo temático da novela da Lava Jato, o embate entre Temer e Janot, nossos representantes continuam a conversar sobre a reforma política em jantares e almoços. E a bola da vez para resolver o problema dos políticos – e não do país – é o “distritão”.

De acordo com as últimas notícias, parlamentares do governo e da oposição estão selando um pacto para colocar mais dinheiro nas eleições de 2018 (sim, pode faltar dinheiro para emitir passaporte, mas devem estar sobrando R$ 3,5 bilhões para destinar aos políticos nas próximas eleições). De quebra, estão decidindo que a disputa será na base do “ganhou mais votos, levou” –  essa é a lógica do “distritão”.

Na experiência internacional, os países definem as regras de seleção dos parlamentares tendo em vista diferentes objetivos. Alguns privilegiam a escolha de candidatos que, na média, representem o perfil da população e sua diversidade de opiniões políticas; em outros, incentiva-se o vínculo entre os candidatos e a região onde moram.

A depender das regras também podemos ter modelos mais ou menos fáceis de ser compreendidos pelo eleitorado – variável importante neste momento de falta de confiança na política.

Os sistemas eleitorais também têm impactos diretos na governabilidade do Presidente da República, na medida em que podem gerar um Congresso composto por poucos partidos ou fragmentado em inúmeras legendas – situação que eleva consideravelmente o custo de governar, como aprendemos com o Mensalão e a Lava Jato.

Além disso, dependendo das regras do jogo, temos sistemas mais caros ou mais baratos – e mais ou menos permeáveis à influência de grandes doadores privados.

No modelo do “distritão” apenas um desses 5 grandes objetivos (representatividade da população, proximidade com o eleitor, facilidade de compreensão, governabilidade e custo) é atendido.

Se o Congresso optar por ele na atual reforma política, em 2018 serão eleitos os candidatos mais votados em cada Estado, independentemente da votação total de seu partido. Para a população, será fácil entender essa regra – e aí está a sua única vantagem. No mais, o “distritão” agrava todas as mazelas do atual sistema eleitoral brasileiro – esse modelo que produz corrupção, crise de governabilidade e afasta a população da política.

As eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil são caríssimas. Disputadas nos Estados, os candidatos têm que fazer campanha em regiões muito grandes, seja em termos de território ou de população. Além disso, quem quiser se tornar deputado federal tem que vencer no voto não apenas os adversários das outras legendas, mas também os colegas do próprio partido ou coligação. No modelo atual, portanto, há um claro incentivo para que se gaste muito na campanha.

É por isso que existe uma relação positiva entre número de votos e doações eleitorais no Brasil – ou seja, as chances de ser eleito aumentam com o total de dinheiro que você consegue arrecadar, o que abre um imenso flanco para corrupção. No gráfico abaixo você consegue visualizar essa associação nas eleições para a Câmara de 2014 – basta selecionar o Estado no filtro e passar o cursor sobre as bolinhas para saber quanto cada candidato

 

Se o Congresso optar pelo “distritão” em 2018, nada disso vai mudar. Aliás, pode até piorar. No sistema atual, as vagas de deputado em cada Estado são distribuídas segundo a soma de votos de todos os candidatos de um partido ou coligação, para daí serem escolhidos os mais votados em cada “time”. Na proposta do “distritão”, valerá o salve-se quem puder – ou seja, os mais votados serão eleitos, independentemente do desempenho agregado do partido.

Assim, o dinheiro ganhará ainda mais importância na campanha, pois a conexão com os votos será potencializada, pois abriremos mão da intermediação dos partidos. Com o “distritão” não importa a força do partido e sim exclusivamente o potencial – financeiro, arrecadatório ou de popularidade – do candidato.

Essa característica do “distritão” certamente levará a um Congresso ainda mais fragmentado a partir de 2019. Na medida em que o peso do partido perderá importância nas eleições, haverá um incentivo para que candidatos fortes migrem para partidos pequenos.

Se o que vale é quem tem mais votos, tanto faz para o milionário “não-político”, a celebridade ou o líder religioso concorrer por um partido grande ou pequeno. Aliás, num partido pequeno seu trabalho será ainda mais fácil, porque não precisará se sujeitar aos mandos e desmandos dos velhos e novos caciques partidários.

A tendência, portanto, será termos ainda mais partidos com representação no Congresso e uma diminuição das bancadas das legendas tradicionais. Em outras palavras, quem quer que vença as eleições presidenciais de 2018, seu trabalho para governar será ainda maior do que agora. Sob esse ponto de vista, esperamos mais crises políticas pela frente.

Eleições mais caras, pouco vínculo com o eleitor (as eleições continuarão sendo disputadas em âmbito estadual) e pior governabilidade não são os únicos defeitos do “distritão”. A combinação de muito dinheiro público (R$ 3,5 bilhões) e a regra do “vence quem ganha mais votos” pode potencializar o grande problema do sistema eleitoral brasileiro: a seleção de parlamentares que não nos representam. E o que é pior: aumentará a probabilidade de reelegermos os políticos enrascados com a Lava Jato.

Como você pode ver no gráfico abaixo, uma das excrecências de nossas regras eleitorais é dar muito poder aos diretórios regionais na distribuição do dinheiro de campanha arrecadado pelos partidos (tanto o recebido do fundo partidário quantos o arrecadado junto a pessoas físicas e, até 2014, empresas). Os caciques regionais detêm ampla liberdade para alocar essa grana entre os candidatos, o que resulta numa distribuição extremamente desigual de recursos. Clique no gráfico abaixo e veja como cada partido repartiu o dinheiro entre os candidatos de cada Estado nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados.

 

No modelo que está sendo proposto, os líderes partidários terão R$ 3,5 bilhões para aplicar nas campanhas de seus correligionários, além das doações individuais. De acordo com a sugestão que está atualmente na mesa, 2% desse valor será distribuído igualmente entre todos os partidos e os outros 98% serão alocados conforme a bancada eleita em 2014.

E aí é que está a grande jogada. As maiores bancadas eleitas em 2014 foram, respectivamente, PT (13,3%), PMDB (12,7%), PSDB (10,5%) e, na sequência, PP, PSD, PR e PSB (todos entre 6,6% e 7,4%). Multiplique esses percentuais por R$ 3,5 bilhões e veja quanto cada um vai levar…

Essa montanha de dinheiro a ser recebida pelos grandes partidos – justamente os mais envolvidos com a Lava Jato – será distribuída (em malas, talvez…) pelos líderes dos diretórios estaduais entre os seus candidatos.

Como no “distritão” será eleito quem ganhar mais votos independentemente do desempenho dos outros candidatos do partido, é de se esperar uma disparidade ainda maior na distribuição do dinheiro vindo do tal Fundo de Financiamento da Democracia. E, obviamente, haverá muita gente na mira da Lava Jato que vai fazer de tudo para ficar com um bom quinhão desse dinheiro público para continuar no poder.

Colocar mais dinheiro público e deixar que os partidos distribuam é, portanto, um cheque em branco para i) beneficiar os grandes partidos (que ganharão a maior fatia do bolo) e ii) privilegiar os caciques dos partidos ou seus asseclas mais próximos (justamente os que estão implicados na Lava Jato).

Reforma política (assim como a tributária) é um daqueles temas que todo mundo é a favor, mas na hora do vamos ver dá uma preguiça tremenda de acompanhar, estudar e propor soluções. Quando alguma coisa chega a ser aprovada, quase sempre acaba piorando as coisas – pois só os diretamente interessados é que se envolvem; a população em geral prefere continuar no flaflu entre petralhas e coxinhas nas redes sociais.

Nós estamos numa encruzilhada histórica e nossos parlamentares estão a ponto de aprovar uma reforma política que aumenta a quantidade de dinheiro que poderão gastar nas suas campanhas, beneficiando justamente aqueles que gostaríamos que fossem retirados de lá depois das revelações da Lava Jato.

De quebra, a proposta da “reforma política” proposta pelos políticos pode levar a um Congresso ainda mais fragmentado, menos representativo e com maiores chances de que o critério de eleição seja o dinheiro, a fama ou o tamanho do rebanho religioso – sem, com isso, aumentarmos a responsividade dos políticos ao seu eleitorado.

Temos muitos motivos para deixar de nos preocuparmos com o debate direita e esquerda e unirmos nossas forças para sepultar essa proposta de “distritão” com mais dinheiro público nas campanhas. Aliás, chega de dar dinheiro para os políticos. That’s what I don’t want.

 

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