Eleições virtuais
Dados de despesas de campanha mostram que ainda há muito o que se pesquisar antes de afirmar que elas foram determinantes para o sucesso deste ou daquele candidato
Mais cedo ou mais tarde, como tudo atualmente, as eleições migrariam para o mundo virtual. Não me refiro ao ativismo das pessoas a favor deste ou daquele candidato nas redes sociais, mas no uso de ferramentas digitais como estratégia de campanha.
Os analistas, em sua maioria, ignoramos o fato de que quase todo brasileiro atualmente tem um smartphone nas mãos e usa freneticamente as redes sociais para se informar e comunicar. Daí para a internet se tornar o fórum principal do debate político era um passo, mas quase ninguém percebeu isso até o início da campanha.
No entanto, no país das conclusões apressadas, fomos de um extremo a outro: às redes sociais foi atribuído o papel determinante para uma superestimada renovação da política brasileira. O objetivo deste texto é lançar um pouco de luz nesta discussão, a partir dos dados das prestações de contas de partidos e candidatos divulgados até o momento.
Conforme pode ser visto no gráfico abaixo, o impulsionamento de conteúdos na internet situa-se na nona posição entre os maiores gastos de campanha em 2018. Ao todo, todas as agremiações e candidatos declararam ter investido mais de R$ 77 milhões divulgando massivamente propaganda eleitoral nas redes sociais.
Para termos ideia da importância que foi dada à estratégia digital em 2018, as despesas com impulsionamento superaram os gastos com pesquisas eleitorais (R$ 42 milhões), envio de correspondência e malas diretas (R$ 31 milhões), publicidade na mídia impressa (R$ 30 milhões) e até produção de jingles e vinhetas (R$ 24 milhões).
Analisando os dados, porém, podemos identificar que o peso dado às redes sociais foi bastante díspar entre os partidos. Entre as maiores legendas, agraciadas com fatias maiores do fundo eleitoral, o impulsionamento de conteúdos não ultrapassou o limite de 3% das despesas totais.
Já para os partidos menores, principalmente os novos competidores – PSL, Rede, Psol e especialmente o Novo, líder absoluto com 14% de suas despesas destinadas a esse fim –, as redes sociais assumiram um papel muito mais decisivo na veiculação de suas propostas.
Nesse ponto, uma questão importante a ser pesquisada no futuro é identificar se e como essa disparidade no perfil de gastos foi determinante para a migração de votos dos partidos tradicionais (principalmente MDB, PSDB e PT, os grandes derrotados da eleição) para os novatos PSL, Novo, Psol e Rede.
Muito se falou durante e após a eleição no poder do Whatsapp como principal meio de difusão de fake news na campanha. Sobre essa importante questão, infelizmente, os registros do TSE mais confundem do que esclarecem.
Como pode ser visto no gráfico abaixo, entre as empresas contratadas por partidos e políticos para prestar o serviço de impulsionamento de conteúdo na internet, destaca-se a Adyen do Brasil, que recebeu mais do que o dobro de recursos do Facebook e quase quatro vezes mais do que o Google. Quanto ao Whatsapp, a empresa sequer consta nos registros do TSE.
Consultando o site da Adyen, constatamos que se trata de uma fintech de origem holandesa que gerencia os pagamentos digitais de empresas como Uber, Ifood, Ebay e 99, entre outras. Ou seja, o TSE registra como fornecedor dos candidatos e partidos não o prestador último de serviços (que no caso seria a rede social), mas a empresa intermediária pelo seu pagamento – para exemplificar, é como se no seu extrato bancário constasse a empresa de cartão de crédito como o estabelecimento em que você almoçou ontem.
Outro problema com os dados do TSE é que ele não permite distinguir entre as redes sociais pertencentes ao mesmo grupo – é o caso, por exemplo, de Whatsapp, Instagram e Facebook, todos de propriedade de Mark Zuckerberg. Para as eleições vindouras, é fundamental que o TSE aprenda a lição e implemente melhorias no seu sistema de transparência de dados.
No gráfico acima também chama a atenção o fato de que três das quatro empresas apontadas na reportagem da Folha sobre o patrocínio ilegal de disparos em massa na campanha eleitoral (Quickmobile, Yacows e Croc Services) não aparecerem nas prestações de contas dos partidos e candidatos. Apenas a empresa SMS Market, também citada na matéria de Patrícia Campos Mello, consta no gráfico acima, mas com um valor bastante reduzido: R$ 7.150,00.
Também salta aos olhos o fato de que o presidente eleito não ter declarado gastos de um real sequer com impulsionamento de conteúdo na internet. Mesmo levando em conta que Bolsonaro era o candidato melhor posicionado nas redes sociais, é de se estranhar o fato de sua campanha não ter investido nessa estratégia de comunicação, principalmente levando em conta que a incerteza foi a marca dessas eleições.
Se realmente não houve gastos do presidente eleito com o impulsionamento de propaganda eleitoral na internet, ou se se trata de omissão de despesas ou mesmo de caixa dois de campanha, a Justiça Eleitoral terá dificuldades de discernir uma coisa da outra. Trata-se de mais um efeito colateral da atabalhoada decisão do Supremo Tribunal Federal de proibir doações de empresas, que jogou ainda mais sombras sobre o financiamento eleitoral no Brasil.
Apesar de todas essas dúvidas e incertezas, os dados oficiais disponibilizados pelo TSE são importantes para desmistificar o poder das redes sociais no resultado eleitoral. Existem casos de inequívoco sucesso – e o desempenho eleitoral surpreendente de Bolsonaro é o melhor exemplo -, mas a opção de investir pesadamente no impulsionamento de conteúdo nas redes sociais não se converteu automaticamente em garantia de vitória.
Tome-se o caso da eleição para deputado federal. Se por um lado os recordistas de gastos com impulsionamento de conteúdo na internet foram bem sucedidos em conseguir uma cadeira na Câmara – Célio Studart (PV/CE), Aécio Neves (PSDB/MG) e Carla Zambelli (PSL/SP) –, o mesmo não pode ser dito para os três candidatos que os sucedem no ranking. Mesmo dispendendo mais de R$ 200 mil nas redes sociais, Humberto Laudares (PPS/SP), André Regis (PSDB/PE) e Hélio José (PROS/DF) não conseguiram um lugar ao sol de Brasília.
Os dados acima indicam que ainda é muito cedo para desprezar os meios tradicionais de se fazer campanha no Brasil. Apesar do aumento do protagonismo das redes sociais e do freio de arrumação provocado pela Lava Jato sobre o setor de marketing eleitoral, itens como serviços gráficos, propaganda em rádio e TV e cabos eleitorais ainda parecem dar resultado.
Mais do que isso, o dinheiro ainda conta nas eleições –seja para fazer campanha nas redes sociais, seja para imprimir santinhos.
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Há pouco mais de um ano e meio, num arroubo de pretensão, escrevi um email para Hélio Schwartsman, um dos meus ídolos no jornalismo, falando do meu blog pessoal, o Leis e Números, e perguntando se havia espaço para ele ser hospedado no site da Folha. Generoso, Hélio prometeu dar uma passada de olhos e mostrá-lo para a direção do jornal.
Menos de uma semana depois, recebi uma ligação do Vinicius Mota, secretário de redação, me convidando para ser um dos blogueiros da Folha. Até hoje me parece insólito terem aberto as portas do jornal para alguém totalmente fora do circuito, tendo por base apenas o que eu escrevia na internet.
Desde então, foram dezenas de textos, no digital e no impresso. Neles, critiquei candidatos (de Bolsonaro a Haddad, passando até por Luciano Huck), programas governamentais (como a lei do audiovisual, o trem da alegria de Romero Jucá e Randolfe Rodrigues e a regulamentação dos aplicativos de transporte) e corporações diversas, como cartórios, carreiras da elite do funcionalismo público e setores empresariais dependentes do Estado.
Nesse período, nunca recebi qualquer repreensão da direção da Folha. Nunca me pediram para escrever sobre qualquer assunto – ou, o que seria ainda pior, para evitar qualquer tema. Meus textos nunca tiveram uma vírgula sequer alterada. A liberdade de criação de que desfrutei foi absoluta.
Essa minha história pessoal reflete, a meu ver, a importância que a Folha tem para a imprensa e a sociedade brasileiras. Em tempos de notícias falsas e mentiras deslavadas, é essencial ter no país um jornal deste porte que se dispõe a dar espaço para quem tem o que dizer e respeita a pluralidade de visões de seus colaboradores.
Com um aperto no peito, encerro hoje minhas contribuições aqui no blog e na Folha. A partir de janeiro, vou assumir um outro projeto pessoal (não, não tem nada a ver com o novo governo, rsrsrs).
Gostaria de agradecer ao Hélio e ao Vinicius pelo apoio, à confiança de Sérgio Dávila, que sempre destacou meus textos nas suas “dicas do editor”, e a toda a equipe do jornal – em especial a Fábio Zanini, Rodrigo Vizeu, Ricardo Balthazar, Fábio Takahashi e Dani Braga pelas trocas de ideias.
E, claro, a todos os leitores que me prestigiaram ao longo desta incrível experiência de escrever para um público tão numeroso e qualificado. A partir de agora, volto a estar ao lado de vocês como leitor deste grande “jornal a serviço do Brasil”.