Superministério ou o pior emprego do mundo?
Embora por demais arriscada, criação de um superministério da Economia pode ser uma boa medida – a começar pelo nome.
Num país em que a maioria da população não compreende a estrutura governamental, chamar os órgãos pelo seu nome real, deixando de lado as velhas tradições, é didático e transparente. Em pleno século XXI, Economia faz muito mais sentido do que Fazenda.
A ideia, é bom recordar, não é nova. Fernando Collor fez isto em 1990, reunindo as pastas da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio e entregando-as a Zélia Cardoso de Mello, então com apenas 36 anos. Mas o superministério da Economia, assim como o governo que o criou, teve vida curta. Depois do impeachment, rei morto, rei posto: um dos primeiros atos de Itamar Franco foi voltar cada caixinha para seu devido lugar na Esplanada dos Ministérios, recriando o Ministério da Indústria e Comércio (com o dono do Bamerindus, José Eduardo Andrade Vieira) e o Ministério do Planejamento (atribuído ao professor Paulo Haddad). No velho ministério da Fazenda, foram três ministros em sete meses (Gustavo Krause, Paulo Haddad e Eliseu Rezende), até emplacar FHC e o Plano Real.
Quase 30 anos depois, a ideia ressurge, sob os mesmos propósitos de racionalização dos gastos e reestruturação do Estado. No entanto, ilude-se quem pensa que reduzir ministérios é solução para nosso grave problema fiscal. A poupança com a eliminação de cargos em comissão, se houver, será mínima. No caso do superministério da Economia a despesa potencial com comissões nos três ministérios a serem fundidos é de R$ 20 milhões por mês, uma gota no negro oceano de mais de R$ 170 bilhões de rombo por ano, e ainda assim existem importantes senões.
Cada uma das três pastas a serem fundidas tem secretarias, diretorias e departamentos com temáticas muito específicas (que cuidam da gestão de pessoal de todo o governo federal à regulação de loterias), o que dificulta a eliminação de áreas – e consequentemente cargos – devido à superposição de tarefas. Sem dúvida há potencial de enxugamento da estrutura, mas ele é muito menor do que se alardeia por aí.
Some-se a isso o fato de que a maioria desses cargos já é ocupada por servidores de carreira, o que faz com que o valor da despesa com cargos comissionados seja bem menor do que o valor potencial apresentado na tabela acima. Isso se deve ao fato de que, em regra, servidor concursado recebe 60% do “valor cheio” da gratificação quando ocupa uma posição de chefia ou assessoramento. E como pode ser visto no gráfico abaixo, nos atuais ministérios da Fazenda, Planejamento e MDIC mais de 90% dos cargos de chefia e assessoramento são ocupados por aprovados em concursos públicos.
(Aproveitando a oportunidade, é bom afastar aqui outro mito que envolve a reforma ministerial. O tão falado “aparelhamento” do Estado por indicações políticas de partidos é menor do que se alardeia, concentra-se em órgãos específicos e é muito difícil de ser identificado, pois na ocupação de cargos por servidores públicos há que se discernir a nomeação por critérios técnicos daquela realizada por afinidade partidária ou ideológica).
A questão, portanto, não se localiza no enxugamento da estrutura ou no orçamento disponível. Os superpoderes do Ministério da Economia estarão na concentração, sob o mesmo teto e um só comando, da elaboração e execução do orçamento (SOF e Tesouro), da arrecadação tributária (Receita e PGFN), da política monetária (Banco Central), da supervisão do mercado financeiro (Bacen, CVM e Susep), da concessão de crédito oficial (BNDES, Banco do Brasil e Caixa), da política de comércio exterior, da gestão da força de trabalho no governo federal, do patrimônio da União (imobiliário e estatais), além de centenas de políticas setoriais que permeiam secretarias e departamentos dos três ministérios a serem fundidos.
Ter as várias dimensões da política econômica seguindo um mesmo norte é algo raro em nossa história. O potencial de ganhos dessa estratégia é imenso, assim como os riscos de dar errado.
Nestes tempos de equipe de transição, saiu em boa hora o livro “O Pior Emprego do Mundo: 14 ministros da Fazenda revelam como tomaram as decisões que mudaram o Brasil e mexeram no seu bolso” (editora Planeta), de Thomas Traumann. Leve e instrutivo, é um agradável convite a, olhando para trás, imaginar o que pode vir pela frente com gestão econômica do país sob nova direção. Afinal, como diz o ex-ministro Delfim Netto na frase que abre o livro: “nada é mais educativo que o fracasso”.
A seguir apresento os cinco principais riscos que, na minha opinião, o novo superministro da Economia pode incorrer levando em conta as experiências narradas no livro de Thomas Traumann:
1) Coordenação:
Por mais paradoxal que pareça, o principal atrativo da fusão ministerial na área econômica será também o seu maior desafio. Cada um dos ministérios envolvidos tem culturas próprias, carreiras específicas e, muitas vezes, objetivos conflitantes. Traumann cita em seu livro diversos presidentes que compuseram seu ministério de forma a ter contrapontos à visão dominante do Ministério da Fazenda. Para citar dois casos mais recentes: enquanto FHC no seu primeiro mandato colocou o desenvolvimentista José Serra no Planejamento para se opor à ortodoxia de Pedro Malan na Fazenda, Lula também tinha em José Dirceu (Casa Civil) e nos empresários Luiz Fernando Furlan (MDIC), Roberto Rodrigues (Agricultura) e José Alencar (vice-presidente) uma crítica interna ao fiscalismo de Antonio Palocci (Fazenda) e Henrique Meirelles (Banco Central).
Com a criação do superministério da Economia, todas as políticas estarão sob a mesma batuta, e tocar de maneira harmoniosa agendas tão distintas exigirá do maestro e de seus músicos uma afinação rara em nossa história.
2) A resistência de lobbies e grupos de interesses:
Logo nos primeiros meses do governo Figueiredo, Mario Henrique Simonsen pediu demissão da Secretaria de Planejamento, o “superministério” da época, que concentrava o controle do orçamento, as estatais e a política de preços do governo. Sem suporte do governo para levar adiante um plano ortodoxo de combate à inflação, o barítono Simonsen saiu de cena para o retorno ao palco de Delfim Netto, o comandante do “milagre econômico” de 1968 a 1974.
No relato de Thomas Traumann, mais de quinhentos empresários se acotovelaram no salão do Palácio do Planalto para a nova posse de Delfim em 15/08/1979 – todos saudosos das políticas expansionistas da época do Brasil Grande. Essa história dá uma medida de como um ministério com superpoderes sobre a política fiscal, monetária e creditícia, contando ainda com os bancos públicos sob sua tutela, tornará a nova pasta da Economia atraente para lobbies empresariais.
Além disso, implementar um ajuste fiscal do tamanho de nossa crise significa enfrentar corporações e grupos de interesses com grande poder de mobilização e influência política. A reforma da previdência e o combate aos privilégios afeta categorias poderosas em Brasília, assim como desarmar as bombas fiscais criadas pelas bilionárias desonerações e incentivos fiscais concedidos na última década demandará encarar choro e ranger de dentes de setores inteiros que sobrevivem graças às benesses federais. Até quando o superministro conseguirá levar adiante essa cruzada?
3) A governabilidade e as relações com o Congresso:
Traumann defende no seu livro o argumento de que, no seu relacionamento com o Congresso, o ministro da Fazenda sempre joga com as brancas – ou seja, dispõe de um crédito de confiança para aprovar suas políticas iniciais, mesmo que o remédio seja amargo, como foram o confisco da poupança de Zélia, as privatizações com Malan ou o teto de gastos de Meirelles. O problema é que, ao menor sinal de fraqueza, deputados e senadores viram a mesa e tornam o ministro refém de suas vontades.
O futuro presidente do BNDES, Joaquim Levy, sentiu na pele a resistência do Congresso quando foi ministro da Fazenda no segundo mandato de Dilma Rousseff. Ao pressentir que o próprio PT tinha reservas contra suas ousadas medidas de austeridade fiscal, deputados e senadores não titubearam ao barrarem a maioria das propostas de Levy – que, sem sustentação, pediu demissão com menos de um ano no cargo.
Ainda mais recentemente, Henrique Meirelles viu sua reforma da previdência empacar quando Michel Temer perdeu condições de governabilidade após as revelações do Joesley Day. A partir daí, o ímpeto reformista da equipe econômica transformou-se em estratégia de contenção, pois o Congresso viu na fragilidade do presidente uma oportunidade de aprovar medidas expansionistas, como o novo Refis, o Rota 2030 e o recente reajuste do teto do funcionalismo público.
A lua de mel do futuro ministro da Economia, como de todos os seus antecessores, um dia acabará. Seus movimentos iniciais, portanto, devem ser milimetricamente pensados para extrair o máximo de resultados enquanto a maré no Congresso estiver a seu favor. Quando o vento virar, habilidade política talvez venha a ser um ativo mais valioso do que conhecimento técnico.
4) Soberba:
Quanto mais poder, mais visado se torna o cargo. Na selva de Brasília, cada palavra deve ser cuidadosamente sopesada para não ser o estopim de uma crise que pode custar a cabeça de quem a profere. Rubens Ricupero, ministro da Economia que sucedeu FHC nos primórdios do plano Real, sentiu-se excessivamente à vontade numa entrevista a Carlos Monforte, na Rede Globo, abusando dos elogios à sua própria gestão. Sem saber que suas palavras estavam sendo transmitidas nacionalmente para as antenas parabólicas, soltou o clássico “eu não tenho escrúpulos, o que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde”. A repercussão foi tamanha que, no dia seguinte, viu-se obrigado a pedir demissão do cargo. Ficou a lição de como um trabalho bem sucedido pode ruir da noite para o dia quando se baixa a guarda.
5) O apoio presidencial:
Na visão de Traumann, o cargo de ministro da Fazenda seria o pior emprego do mundo porque, a cada divulgação das dezenas de indicadores econômicos (PIB, inflação, emprego, câmbio, produção industrial, etc.) o nó da forca que adorna o pescoço do ministro se aperta ou se afrouxa de acordo com o resultado. Por sua vez, seu chefe, o Presidente da República, só se interessa por um índice: o da sua própria popularidade.
Na situação atual, em que temos uma crise fiscal urgente a debelar, é razoável questionar até quando o novo ministro terá crédito com o presidente se seus índices de popularidade começarem a fraquejar.
É preciso lembrar que, na história brasileira recente, poucos ministros gozaram de apoio presidencial duradouro para um ajuste fiscal vigoroso. Os exemplos mais eloquentes talvez sejam Malan após a crise de 1999 (quando implementou o tripé macroeconômico junto com Armínio Fraga), Palocci até a crise do Mensalão e Meirelles antes das denúncias contra Temer na Lava Jato. Como regra geral, ou o ocupante do Palácio do Planalto apoia a frouxidão fiscal do ministro da Fazenda (o caso clássico é Guido Mantega em Lula II e Dilma I) ou os presidentes simplesmente não têm paciência de esperar o resultado do aperto nos cintos.
No caso atual, como o presidente eleito é um recém convertido ao conservadorismo econômico, as dúvidas sobre seu comprometimento com as ideias do futuro superministro são pertinentes.
Como bem aponta Alan Blinder, ex vice-presidente do Banco Central americano e conselheiro econômico no governo de Bill Clinton, em frase citada por Thomas Traumann, “os políticos usam os economistas como os bêbados usam o poste: mais para apoiar do que para iluminar”. Em se tratando do futuro presidente, só o tempo dirá como ele utilizará não o poste, mas o Posto.
Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.