Nos autos da Lava Jato, o mapa para entender a política no Brasil
Abertura de inquérito contra a cúpula do MDB no STF revela como funciona o presidencialismo de coalizão brasileiro
No fim das contas
Estamos dando voltas
Num círculo vicioso
Perigoso para o sistema nervoso
(“Círculo Vicioso” – Rita Lee, Carlini e Marcucci)
Sérgio Machado é um político experiente. Membro fundador do PSDB, transferiu-se depois para o (P)MDB. Ocupou cargos importantes nos governos FHC, Lula e Dilma. Foi deputado e senador, além de presidente da Transpetro, a estatal de transporte de petróleo e gás da Petrobrás, de 2003 a 2014.
A trajetória de Sérgio Machado o credencia a apresentar um diagnóstico abalizado sobre o funcionamento do sistema político brasileiro. E ele está no Termo de Colaboração nº 01, firmado com o Ministério Público Federal no âmbito da Operação Lava Jato.
“Desde 1946 o sistema funciona com três instâncias: 1) políticos indicam pessoas para cargos em empresas estatais e órgãos públicos e querem o maior volume possível de recursos ilícitos, tanto para campanhas eleitorais, quanto para outras finalidades; 2) empresas querem contratos e projetos e, neles, as maiores vantagens possíveis, inclusive por meio de aditivos contratuais; e 3) gestores de empresas estatais têm duas necessidades, uma a de bem administrar a empresa e outra a de arrecadar propina para os políticos que os indicaram”.
Na opinião de Sérgio Machado, nenhum dirigente se mantém no cargo se não dançar conforme essa música. Ele próprio permaneceu na presidência da Transpetro de junho de 2003 a novembro de 2014 dando corda a esse sistema. O delator admite ter intermediado a distribuição de mais de 100 milhões de reais para os caciques do MDB que o indicaram ao cargo. Em sua lista de beneficiados estão José Sarney (18,5 milhões), Romero Jucá (21 milhões), Renan Calheiros (32 milhões), Edison Lobão (24 milhões) e Jader Barbalho (3 milhões em espécie).
Além da cúpula do MDB do Senado, uma série de outros políticos, de diferentes partidos, teriam sido agraciados, do PT (Cândido Vaccarezza) e PC do B (Jandira Feghali) ao PSDB (o falecido senador Sérgio Guerra, que presidiu o partido de 2007 a 2013), passando inclusive pelo presidente Michel Temer.
Parte dessas propinas teria sido distribuída em espécie, contratos forjados ou transações no exterior. Um montante considerável chegou às campanhas eleitorais por meio de doações oficiais feitas pelas empreiteiras que alimentavam o esquema na Transpetro: Queiroz Galvão, Camargo Corrêa, Galvão Engenharia, entre outras.
Na última quarta-feira, o ministro Edson Fachin autorizou a abertura de inquérito contra a cúpula do MDB, tendo como base as denúncias de Sérgio Machado, Joesley Batista e outros elementos obtidos nas investigações da Lava Jato.
Além de fornecerem a base para os processos criminais, as revelações extraídas nas delações ajudam a interpretar o funcionamento da política brasileira. A Operação Lava Jato teve o mérito de extrair depoimentos de peças-chave do maior mecanismo de corrupção até hoje descoberto no país: a começar pelos financiadores (a cúpula das maiores empreiteiras do país e do maior dos “campeões nacionais”, o grupo JBS), passando pelos operadores do sistema (de doleiros como Lúcio Funaro a marqueteiros como João Santana) e chegando a políticos como Sérgio Machado e Delcídio do Amaral.
O ponto mais interessante é que a narrativa dos delatores apresenta incrível verossimilhança quando coletamos e analisamos os dados oficiais sobre financiamento eleitoral e produção legislativa no Brasil dos últimos anos. Esse foi o desafio a que eu me propus ao escrever o livro “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”, que sairá em breve pela Companhia das Letras.
Entremeando histórias extraídas das delações da Lava Jato com uma montanha de dados sobre doações de campanha, resultados de eleições e a tramitação de projetos no Congresso, procuro mostrar como a política brasileira é capturada por interesses venais de políticos poderosos e grandes grupos econômicos.
Caciques políticos se formam na política brasileira sobretudo pelo potencial de arrecadar dinheiro para o seu partido. E nessa tarefa ninguém é tão eficiente quanto o MDB. No gráfico abaixo consta o valor captado pelos diretórios nacional e estaduais do partido junto a empresas, indivíduos e ao Fundo Partidário nas eleições de 2014. Nele está a chave para entender o inquérito recém-aberto no STF contra a cúpula do partido.
No gráfico é possível ver que o maior montante, obviamente, foi obtido pelo Diretório Nacional do partido, que arrecadou, em valores atuais, quase 255 milhões de reais. Em seguida vieram os diretórios estaduais do Rio de Janeiro (156 milhões), Ceará (56 milhões), Rio Grande do Norte (51 milhões), Amazonas (41 milhões), Alagoas (35 milhões) e Roraima (31 milhões).
Se você estranhou o fato de que estados com baixa representatividade na economia e no tamanho do eleitorado têm um papel tão destacado na coleta de contribuições de campanha do MDB, é só se lembrar de quais são as figuras mais proeminentes do partido no cenário político atual, todos eles às voltas com a Lava Jato: o presidente Michel Temer, que comando o partido por anos, seguido por Eduardo Cunha (RJ), Eunício Oliveira (CE), Henrique Eduardo Alves (RN), Eduardo Braga (AM), Renan Calheiros (AL) e Romero Jucá (RR). Bingo!
Essas sete lideranças partidárias tiveram em suas mãos, nas eleições passadas, mais de 600 milhões de reais arrecadas apenas pelas vias oficiais – não estamos falando aqui de caixa dois. Nesse jogo de poder e dinheiro, os caciques regionais dos partidos controlam não apenas o volume de arrecadação, como também o fluxo de distribuição do dinheiro entre os seus correligionários. E a destinação do dinheiro entre os candidatos não é nem um pouco democrática, como pode ser visto abaixo (ao passar o cursor pelo gráfico, é possível identificar com detalhes quanto cada candidato recebeu do respectivo diretório estadual).
Num cenário em que as campanhas foram se tornam cada vez mais caras, não é difícil imaginar porque determinados políticos se tornaram tão poderosos, chegando ao ponto de controlarem verdadeiras bancadas particulares de parlamentares no Congresso e a exigirem uma lealdade que os livrou muitas vezes de serem afastados ou cassados: eles detêm a chave do cofre, e o distribuem da forma como bem entendem.
Esse poder dos caciques sobre sua base parlamentar reflete-se na atratividade que eles exercem sobre o grande empresariado e os grupos de interesses. Em seus depoimentos à força tarefa da Lava Jato, Lúcio Funaro expõe a forma de relacionamento entre os líderes do MDB na Câmara e no Senado no que dizia respeito à tramitação de projetos de lei e medidas provisórias.
Na visão de Funaro, esse grupo de lideranças do MDB se encarregava de mapear o conteúdo e identificar setores econômicos que poderiam se beneficiar com a aprovação das mudanças legais em pauta. Os caciques políticos então designavam algum membro do partido que conduziria as negociações com os executivos do setor interessado, visando o pagamento de propinas via caixa dois ou doações oficiais. Fechava-se, assim, o sistema de engrenagens do sistema político brasileiro e deixando-o pronto para girar novamente, visando o próximo ciclo eleitoral.
A nota fúnebre dessa história é que, mesmo com os processos da Lava Jato e a proibição das doações de empresas, esse mecanismo não foi desarticulado. Os grandes caciques continuam dominando seus partidos como verdadeiros coronéis regionais e as campanhas continuam a movimentar bilhões de reais – a grande diferença é que o dinheiro das empresas foi substituído pelo financiamento público. Também não houve qualquer avanço institucional para combater o caixa dois e o sistema político-eleitoral manteve-se praticamente intacto, sem nenhuma reforma de peso.
Sem combater a origem do problema, pouco adiantará colocar todo mundo na prisão, pois outros virão e ocuparão seu lugar – a começar pelos seus próprios filhos e netos, herdeiros de suas fortunas e de seu poder político. E o sistema continuará a girar a favor da concentração de renda e de poder.