Lições do futebol brasileiro para o STF
Por incrível que pareça, campeonato brasileiro alcançou mais segurança jurídica do que a cúpula de nosso Judiciário
Cadê o penalty / Que não deram pra gente no primeiro tempo?
Vencer era uma necessidade / Um privilégio fazer planos e classificar
Sonhar, jogar, decidir e ganhar / Depois festejar e se banhar num mar de rosas
Penalty! Penalty! Penalty! Penalty! Penalty!
Mas como não foi possível / Isso tudo acontecer
A cidade, magoada e triste, grita e chora / E pergunta pra você
Penalty! Penalty! Penalty! Penalty!
(“Cadê o penalty” – Jorge Ben)
Nesse último final de semana começou o Brasileirão 2018. Para confirmar o ditado de que no Brasil até o passado é incerto, não há consenso sobre qual foi sua primeira edição. Até algum tempo atrás, reconhecia-se o Galo como primeiro campeão, em 1971. De uns tempos pra cá, no entanto, vários outros torneios foram considerados como Campeonatos Brasileiros, a ponto de hoje a CBF reconhecer dois campeões num mesmo ano (Santos e Botafogo, em 1968) e até uma só equipe vencendo dois campeonatos num único ano – o Palmeiras em 1967.
Quanto à (des)organização da competição, a inconstância de nossas instituições salta aos olhos, a começar pelo número de participantes. O populismo da ditadura militar inchou o campeonato a ponto de termos 94 times em 1979, enquanto uma disputa judicial a respeito do rebaixamento no campeonato de 1999 (caso Gama x Botafogo) e o esforço dos grandes clubes para resgatar o sócio Fluminense das profundezas da terceira divisão geraram um campeonato com incríveis 116 equipes competindo pelo título de 2000.
Se olharmos a forma de disputa, nossa criatividade é ainda maior. Já tivemos sistemas de mata-mata com apenas um turno ou turno e returno, divisão de grupos que disputavam entre si ou entre grupos diferentes, finais decididas em jogo único ou em jogos de desempate (alguns em campo neutro, outros não!), triangulares decisivos, os campeões da primeira e da segunda divisão disputando o título, e por aí vai… Além disso, não foram poucos os casos em que o sistema de disputa foi alterado inclusive com o campeonato em andamento. Não é à toa que o título brasileiro de 1987 é contestado até hoje nos tribunais – sem falar na tal Taça das Bolinhas!
Em outras terras em que as instituições se mantêm ao longo do tempo, as coisas são bastante diferentes. No país que inventou o futebol, o campeonato que desde 1992 é chamado de Premier League funciona basicamente da mesma forma desde que foi criado: número estável de clubes, sistema de pontos corridos com jogos em turno e returno, com o campeão sendo aquele que somou mais pontos e os três piores sendo rebaixados. Para ficar bem claro: na Inglaterra essas regras de disputa valem desde 1888!
Por aqui, a desordem na organização do futebol e seus regulamentos esdrúxulos gerou um histórico de viradas de mesa, erros grosseiros de arbitragem favorecendo sempre o lado mais forte e decisões no “tapetão”. Muitos desses “causos” são contados e analisados de forma muito divertida por meu amigo, o economista Alexandre Goldschmidt, no seu livro Emoção Roubada: futebol brasileiro e suas décadas inacreditáveis.
Passeando pelos relatos surreais das inúmeras arbitrariedades ocorridas nos grandes campeonatos do final da década de 1970 aos dias atuais, o livro mostra como os grandes clubes consolidaram sua hegemonia explorando seu poder sobre a CBF, os árbitros e a Justiça Desportiva – seja para evitar vergonhosos rebaixamentos, seja para acumular títulos estaduais e nacionais.
De 2003 pra cá, contudo, uma grande mudança aconteceu no futebol brasileiro. A adoção dos pontos corridos a partir de 2003 gerou uma estabilidade nunca vista desde que Charles Mueller ensinou os brasileiros a jogar bola.
Estamos no 16º campeonato seguido com um sistema em que se sagra campeão quem obtém mais pontos depois de jogar contra todos os outros adversários duas vezes, numa partida em casa e outra fora. O número de participantes na Série A se mantém constante em 20 clubes desde 2006, sendo que os quatro piores descem para a segunda divisão.
Não são poucos os críticos que argumentam que a adoção do sistema de pontos corridos tirou muita da emoção do campeonato brasileiro. Além de não ser verdade, é inegável que a fórmula atual é a mais justa: premia-se o time mais efetivo (que em geral é o que se prepara melhor), estimula a organização dos clubes e penaliza os de pior desempenho ao longo do ano.
Embora o sistema não seja infalível a manipulações (o escândalo da Máfia do Apito aconteceu já com os pontos corridos), ficou bem mais difícil valer-se recorrentemente da arbitragem e do tapetão para se tornar campeão ou não ser rebaixado. Prova disso é que desde 2003 vários dos gigantes do Clube dos 13 experimentaram a sensação, para muitos inédita, de ser rebaixado para a Série B.
Em muitos aspectos, o futebol é uma bela metáfora para a vida. Na política, parece que ainda estamos no tempo do mata-mata e das estranhas fórmulas de disputa, em que a cúpula do Judiciário tem se responsabilizado pelo tapetão e pelas tentativas de viradas de mesa. São inúmeros os exemplos de que ainda não chegamos ao nível do “level playing field” – o campo de jogo nivelado para ambos os adversários, como dizem os ingleses.
O julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE foi conduzido em ritmos diferenciados de acordo com os objetivos de seu então presidente: acelerado quando ainda não se vislumbrava o impeachment, depois lento (com um demorado pedido de vista) a partir do momento em que o ocupante da Presidência já tinha mudado. Quando chegou a hora de julgar, uma providencial mudança dos membros assegurou o resultado que mantinha o status quo.
Na questão do cumprimento de pena em segunda instância, enquanto a Lava Jato se encarregava de empresários, doleiros e operadores do esquema, o entendimento favoreceu o combate à corrupção. À medida que políticos graduados começaram a se ver ameaçados, a Justiça Desportiva – ops, o STF – ameaça mudar sua jurisprudência para manter em campo velhos e novos corruptos.
No caso do julgamento da legalidade do auxílio-moradia, além de um “efeito suspensivo” por quase quatro anos – a liminar concedida pelo ministro Fux –, o STF enviou para uma Câmara de Conciliação a matéria, evitando mais uma vez o fim desse privilégio.
A história da organização do campeonato brasileiro de futebol mostra como, sem regras estáveis e instituições sólidas, ficamos a mercê de todo tipo de manipulação em favor de quem tem mais poder de pressão. Está passando da hora de o STF comandar uma revisão de nosso sistema recursal e de suas práticas internas de pedidos de vistas e definição de pautas. Precisamos urgentemente de entrar na era dos pontos corridos, em que o melhor vence e os piores são rebaixados. Sem tapetão, juiz ladrão e viradas de mesas.
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