O auxílio-moradia, a inveja e outras mumunhas mais
O debate sobre distorções salariais nos altos cargos do serviço público não pode ficar restrita ao auxílio-moradia de juízes e procuradores
“A inveja é o pecado mais adequado a um mundo que
estimula a competitividade e a superação.
Que diz a todo momento:
seja um vencedor, inveje o próximo para superá-lo e,
se possível, arrasá-lo”.
(Zuenir Ventura. Mal Secreto: A Inveja)
Na capa do primeiro número da Folha da Noite, jornal que foi o precursor da Folha, há o relato da reunião que fundou a associação dos funcionários municipais em São Paulo. Corria o ano de 1921.
Como resultado da assembleia, foi enviada uma representação à Câmara Municipal reivindicando o aumento de seus vencimentos. O expediente começa da seguinte forma: “Sabem v.v. exas. que, para bom desempenho de funcções e melhor aproveitamento da atividade humana é de necessidade absoluta a serenidade de espírito, e quando as asperezas da vida e as aperturas da necessidade acompanham um indivíduo, falece ao seu espírito a serenidade e ele não póde produzir com abundância e bôa qualidade.”
Quase cem anos depois, o país desperta para discutir o auxílio-moradia de juízes e membros do Ministério Público – servidores públicos que ganham em torno de R$ 30 mil e ainda recebem esse “penduricalho” de mais 4.300 e poucos reais. A despeito desse movimento saudável de abrir a caixa preta para criticar os inúmeros benefícios da magistratura e do Ministério Público, é importante ter um olhar mais amplo para o processo que gera distorções como o auxílio-moradia.
O economista Dan Ariely, professor de psicologia e economia comportamental da Duke University, em uma das deliciosas histórias do livro “Previsivelmente Irracional”, conta como uma regulação no mercado de capitais americano acabou se revelando um tiro que saiu pela culatra. Em reação a escândalos na mídia que denunciavam os exorbitantes salários e benefícios dos executivos de grandes empresas, baixou-se uma norma determinado que toda companhia aberta deveria publicar os rendimentos de seus CEOs.
O objetivo governo com a determinação de tornar públicas todas as regalias era constranger as empresas e, assim, estimulá-las a cortar os abusos. O resultado: em 1993 um CEO americano ganhava, em média, 131 vezes mais que os demais empregados da empresa. Em 2008, quando o livro foi publicado, a diferença passou a ser de 369 vezes.
Para Ariely, esse resultado aparentemente contraditório pode ser explicado pelo ciúme e pela inveja. Na sua visão, nós, humanos, preocupamos mais com nossa posição relativa do que a absoluta. Além disso, miramos sempre para nossos pares e para quem se encontra acima de nós, quase nunca para baixo. No caso dos executivos americanos, quando os ganhos dos demais CEOs tornaram-se públicos, cada um passou a se comparar aos outros, e isso gerou uma corrida para assegurar a si mesmo os benefícios usufruídos pelos seus semelhantes. Em vez de reduzir a média, a decisão estimulou uma corrida para o topo.
A recente polêmica envolvendo o auxílio-moradia no Judiciário tem um pouco a ver com essa história contada pelo economista Dan Ariely. Buscando dar um basta a históricos abusos remuneratórios no setor público, as Emendas Constitucionais nº 19/1998 e 41/2003 definiram como teto remuneratório, em todos os poderes e níveis federativos da República, o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
No entanto, assim como no caso dos executivos americanos, o que era para ser teto passou a ser encarado por diversas corporações como uma meta. Na queda de braço com o governo em suas negociações salariais, o anseio de toda categoria é sempre ficar próximo do limite máximo legal – aliás, inúmeras propostas legislativas buscam vincular, na Constituição, as remunerações das carreiras mais fortes (as ditas “carreiras típicas de Estado”) a determinado percentual do subsídio dos ministros do Supremo. Os juízes estaduais conseguiram – sua remuneração está fixada em 90,25% do que ganham os membros do STF. Por simetria, membros do Ministério Público, ministros do TCU e conselheiros dos TCEs seguem a mesma regra.
Para as demais carreiras vale a lei do mais forte: quanto maior o poder de pressão, melhores os reajustes. No governo Lula, muitas dessas carreiras conseguiram expressivos ganhos salariais. Surfando nos anos de bonança, esses servidores da “elite” do Poder Executivo (os do Legislativo e TCU idem) conseguiram bem mais do que uma recomposição inflacionária dos anos de achatamento de FHC: sua remuneração passou a tangenciar o teto remuneratório, como pode ser visto no gráfico abaixo.
Analisando o gráfico anterior, vemos que a remuneração dos ministros do Supremo está estacionada em R$ 33.763 desde 01/01/2015. Com o agravamento da crise fiscal, o governo tem segurado reajustes no teto, justamente para conter o efeito cascata que ele induz direta ou indiretamente sobre todo o funcionalismo público. O auxílio-moradia, portanto, é uma forma de auto concessão de um reajuste salarial disfarçado, burlando o teto. Seu uso tornou-se disseminado a partir da decisão liminar do ministro Luiz Fux validando regulamentação do Conselho Nacional de Justiça de 2014.
O gráfico acima demonstra, no entanto, que o problema do auxílio-moradia não é exclusivo do Judiciário – em termos absolutos, o Executivo gasta mais do que os demais poderes com essa rubrica (mas lembrando que no gráfico acima não se encontram os gastos com o Judiciário e o MP estaduais). E se você acha que a situação do auxílio-moradia é um absurdo, é bom saber que essa estratégia de criar penduricalhos salariais tem se espalhado por outras carreiras poderosas em Brasília.
Em 2016 os membros das carreiras jurídicas vinculadas à Advocacia Geral da União conseguiram em lei o direito a receber honorários de sucumbência nas causas ganhas pela União. De acordo com dados do Portal da Transparência, de fevereiro a novembro de 2017 essa rubrica engordou os contracheques de procuradores e advogados públicos, na média, em R$ 3.800 mensais – R$ 480 milhões ao todo em 10 meses.
Já em 2017 foi a vez dos auditores e analistas da Receita Federal garantirem, também em lei, um bônus de eficiência e produtividade na atividade tributária. Enquanto o governo federal não regulamenta a forma de cálculo e distribuição desse extra salarial, auditores vêm recebendo R$ 3 mil mensais (os analistas tributários R$ 1,8 mil). E tem um detalhe importante: assim como no caso dos honorários de sucumbência da AGU, o bônus da Receita é pago também aos servidores aposentados.
A grande diferença entre a história contada por Dan Ariely e os penduricalhos na remuneração de servidores do topo do funcionalismo brasileiro é que, no primeiro caso, trata-se do setor privado – ou seja, as exorbitantes remunerações de CEOs são bancadas pelos acionistas, e não pelo conjunto da sociedade. Por esse motivo, temos que romper urgentemente a lógica das corporações de servidores que só olham para o lado e para cima, nunca para os milhões de brasileiros que estão bem abaixo.
Uma rápida conta de guardanapo de bar para dar noção do quanto essas distorções representam.
- O Brasil tinha em 2016, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 18.011 juízes. Sendo o auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais, essa regalia para os magistrados pode chegar a custar R$ 946,2 milhões aos Erários federal e estaduais.
- Somemos aí os 12.816 membros do Ministério Público, perfazendo mais R$ 673,3 milhões.
- Apenas com os honorários de sucumbência da AGU temos pelo menos mais uns R$ 580 milhões anuais – extrapolando para um ano inteiro os números de fevereiro a novembro de 2017.
- No caso da Receita Federal, a Exposição de Motivos da MP nº 765/2016, que instituiu o bônus, previa despesas de R$ 2 bilhões por ano entre 2017 e 2019 para estimular a eficiência e a produtividade de auditores e analistas.
Resumo da ópera: Tomando apenas esses benefícios extras para as quatro carreiras citadas, temos despesas que podem chegar a R$ 4,2 bilhões por ano. Só para você ter ideia do quanto representa esse agrado, se olharmos lá pra baixo da pirâmide de distribuição de renda no Brasil, o orçamento para o Bolsa Família em 2018 é de R$ 28,7 bilhões.
Ou seja: levando em conta apenas três penduricalhos salariais para servidores que já têm rendimentos que beiram ou ultrapassam os R$ 30 mil (e estão entre os 2% ou 3% mais ricos da população brasileira), a União e os Estados despendem um montante igual a 15% do maior programa social do governo, que atende quase 14 milhões de famílias miseráveis no país.
Essa distorção gritante entre poucos milhares que ganham muito e milhões de miseráveis e desempregados que dependem de transferências do governo para sobreviver deveria mobilizar candidatos ao Legislativo e ao Executivo em 2018. Defender uma revisão completa da política remuneratória no serviço público, visando erradicar toda forma de penduricalhos e pagamentos indevidos, deveria ser uma importante bandeira a ser levantada nos programas de governo.
Mas realizar uma reforma dessa magnitude é tarefa extremamente complexa. Não é nem um pouco trivial definir um sistema de remuneração que seja capaz de atrair bons quadros para o serviço público, coibir os incentivos à corrupção e ainda levar em conta a produtividade e o retorno para o cidadão. Em outras palavras, é necessário definir salários despidos de privilégios, mas também sem o sucateamento de outros tempos.
Para piorar a situação, não temos no horizonte nem um nome que demonstre ter força para implementar essa reforma contra a incrível resistência exercida por categorias tão poderosas. O caso mais provável é que essas medidas terão que ser tomadas a força, quando explodir a hecatombe fiscal que se avizinha.
A culpa da crise obviamente não é apenas dos servidores públicos. Afinal, junto com o R$ 1 bilhão anual do auxílio-moradia vieram centenas de bilhões em incentivos fiscais concedidos a grandes empresas nos últimos 20 anos. No entanto, na hora em que a crise chegar (e isso está bem próximo), vai sobrar para todos – mas principalmente para o contribuinte e o cidadão comum, que paga a conta desses privilégios e não tem retorno algum.
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