A voracidade política na Caixa
Escândalos na Caixa Econômica Federal acontecem há décadas. É preciso reconhecer que as coisas não estão funcionando direito e pensar em maneiras para conter o apetite dos políticos nos bancos públicos brasileiros.
O caso Morel
O crime da mala
Coroa-Brastel
O escândalo das jóias
E o contrabando
E um bando de gente importante envolvida…
Juram que não
Torturam ninguém
Agem assim
Pro seu próprio bem.
São tão legais
Foras da lei
Sabem de tudo
O que eu não sei.
E eu nesse mundo assim
Vendo esse filme passar…
Assistindo ao fim
Vendo o meu tempo passar
(“Alvorada Voraz” – Luiz Schiavon; Paulo P.A. Pagni; Paulo Ricardo)
Durante muitos anos “Rádio Pirata ao Vivo” foi o disco mais vendido da indústria fonográfica brasileira – vendeu mais de 3 milhões de cópias, uma fábula naquela pindaíba geral que foram os anos 80 no Brasil. Ouvindo “Alvorada Voraz” na rádio um dia desses, cheguei a pensar que Paulo Ricardo tinha dons premonitórios. Mais de trinta anos atrás, falava em malas, joias, “um bando de gente importante envolvida” e “foras da lei que sabem tudo o que eu não sei”. Imediatamente me lembrei das malas de dinheiro de Rocha Loures e de Geddel, das joias do Cabral e de tantas delações da Lava Jato.
Mas a verdade é que a música do RPM falava de algo que existia naquela época e continuou a vigorar até hoje. O caso “Coroa-Brastel”, citado na letra da música, foi um escândalo rumoroso que envolveu um grande grupo econômico da época (a rede de comércio Brastel e seu braço financeiro, Coroa), empréstimos milionários da Caixa Econômica Federal e a suspeita de tráfico de influência dos ministros da Fazenda e do Planejamento. O desenrolar do processo envolveu foro privilegiado, morosidade do Judiciário e – como é a marca da história brasileira – todos os envolvidos sendo absolvidos. O prejuízo, claro, foi pago pelos milhares de correntistas que tomaram cano da empresa e os milhões de contribuintes que assumiram os custos de mais um caso de mau uso do dinheiro público.
Corta para 2017. A delação premiada de Lúcio Funaro indica que as coisas não mudaram muito na Caixa Econômica Federal desde “Alvorada Voraz”. O doleiro conta em detalhes como ele e Eduardo Cunha nomearam um dos vice-presidentes da empresa e cobravam comissões pelos empréstimos concedidos pelo banco a grandes empresas. A propina era repartida pelo grupo político do (P)MDB da Câmara, comandado por Michel Temer. Ainda segundo Funaro, o atual presidente da Caixa, Gilberto Occhi, na época ocupando outra vice-presidência, tinha uma meta mensal de propina a ser batida para o Partido Progressista (PP). Uma das vice-presidências mais poderosas, a de Pessoa Jurídica, era comandada por Geddel Vieira Lima – aquele dos 51 milhões guardados num apartamento.
Na distribuição do butim do presidencialismo de coalizão brasileiro, cargos de comando em estatais valem muito. Eles geram a seiva que alimenta a erva daninha da base aliada – um amontado de siglas sem sentido ideológico algum que em troca de votos no Congresso saqueiam o erário. E nesse arranjo, grandes empresas nadam de braçada com empréstimos subsidiados e licitações viciadas.
A análise da estrutura corporativa da Caixa dá uma ideia de como esse mecanismo funciona. Em maio de 1994, a Caixa Econômica Federal tinha um presidente e seis diretores. Hoje o comandante do banco tem ao seu redor 12 (doze!) vice-presidentes. Essa criação de “boquinhas” para apadrinhados de diferentes partidos ocorreu de forma gradativa durante os governos de FHC, Lula e Dilma – o que demonstra que o patrimonialismo não respeita coloração partidária.
O mesmo ocorreu com outro banco estatal relevante. Entre 1991 e 2013, a mesa de reuniões do Conselho de Administração do BNDES teve de dobrar de tamanho: passou de 6 para 12 cadeiras. E os andares da Diretoria também tiveram que ser ampliados: eram 6 diretores e agora são 9.
Só em termos de comparação, o Bradesco tem um presidente e 7 vices. O Itaú tem dois diretores gerais e 3 diretores vice-presidentes, além do presidente.
Em termos das possibilidades de exploração dos cargos, a indicação de mais apadrinhados para ocupar posições de direção na Caixa e no BNDES tornou-se ainda mais vantajosa para os partidos políticos com a expansão do capital social desses bancos oficiais. É claro que na evolução demonstrada pelos gráficos abaixo estão grandes programas de governo – das privatizações de FHC à política de campeões nacionais das administrações e ao Minha Casa, Minha Vida de Lula e Dilma–, mas também é inegável supor que mais dinheiro para emprestar também significa mais propina e desvios de recursos para os partidos.
Resolver o problema do uso político dos bancos oficiais vai muito além da troca dos atuais dirigentes e a contratação de headhunters para encontrar executivos no mercado, como decidiu recentemente o Conselho de Administração da Caixa. Como ficou claro na delação premiada de Joesley Batista, o senador Aécio Neves interferiu na escolha do novo presidente da Vale – e olha que a empresa já foi há muito tempo privatizada e o processo estava sendo conduzido por uma agência de seleção internacional.
Neutralizar o uso das estatais pelos partidos políticos exige repensar a função e a necessidade de cada uma das centenas de estatais federais – fechando algumas, privatizando outras e redefinindo o foco de outras, além de usar melhores mecanismos de governança corporativa. E, sobretudo, exige um sistema político-eleitoral menos dependente de dinheiro – além de mais transparência, melhores condições de investigação e um sistema processual que desestimule a impunidade.
Essa agenda deveria interessar tanto à direita quanto à esquerda brasileiras. Mas, infelizmente, elas estão muito aquém de nossas necessidades. Por aqui impera a “Alvorada Voraz” e seu presidencialismo de cooptação.
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