A desilusão com as eleições brasileiras
Não é bom subestimar a evolução dos votos brancos e nulos nas eleições brasileiras dos últimos anos: o segredo das urnas em outubro talvez saia daí
Meu pai sempre me dizia:
Meu filho, tome cuidado!
Quando eu penso no futuro,
Não esqueço o meu passado
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão
(“Dança da Solidão” – Paulinho da Viola)
Três grandes temas dominaram as análises sobre os resultados das últimas eleições municipais no Brasil: o fraco desempenho do PT, o sucesso de candidatos que se apresentaram como não-políticos (Dória, Kalil, etc.) e o elevado índice de abstenção nas principais cidades brasileiras. No calor dos resultados das urnas, esses três movimentos foram imediatamente relacionados com a descrença da população com o modo tradicional de fazer política, ainda mais diante das revelações da Operação Lava-Jato.
Poucos dias depois, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes , e alguns analistas começaram a desconstruir a tese de que a elevada abstenção seria um protesto “contra tudo o que está aí”. Em artigo no caderno Ilustríssima da Folha, em 13/11/2016, o cientista político Fernando Limongi tentou colocar uma pedra na discussão ao apontar que, de forma agregada, os índices de abstenção aumentaram de forma pouco significativa nas últimas eleições.
A causa para a sensação de que muita gente ter deixado de comparecer às urnas, segundo o pesquisador, estava relacionada a defasagens no cadastro eleitoral do TSE, que não contabilizava eleitores já falecidos ou que migraram para cidades distantes. A partir daí a discussão morreu, e aparentemente ninguém falou mais sobre isso.
Realmente os problemas com os registros eleitorais nos impedem de afirmar, com segurança, se as abstenções vêm subindo ou não, principalmente nos grandes centros. Mas uma análise mais profunda dos dados das últimas eleições brasileiras nos permite constatar que essa tal de “desilusão com a política” já se faz presente. E entender esse movimento talvez seja a chave para quem queira se sair vitorioso em outubro.
Para isso, em vez de olhar para o número de abstenções, levei em conta apenas aquelas pessoas que abriram mão de um tempo em seus domingos e se dirigiram a uma seção eleitoral para exercer o seu dever cívico nos últimos anos. Meu interesse particular está precisamente naquelas pessoas que se fizeram presentes, enfrentaram fila e, em vez de votarem num candidato ou partido, anularam seu voto ou pressionaram a tecla “branco” da urna eletrônica.
Diferentemente da questão do não comparecimento às urnas, aqui não estamos falando de problemas com a base de dados do TSE ou ausências por doenças, viagens ou devido à crise econômica. A lógica relacionada aos votos brancos e nulos é outra: estamos tratando apenas de quem efetivamente esteve presente e invalidou o seu voto.
Para dar uma dimensão mais exata desse fenômeno, calculei as taxas de votos em branco e nulos sobre o total dos eleitores que compareceram à votação (e não sobre o total do eleitorado, como normalmente se faz) nas últimas eleições brasileiras.
Você pode conferir nos gráficos abaixo que há uma nítida tendência de crescimento dos índices de votos brancos e nulos a cada eleição no Brasil, atingindo todos os cargos em disputa. Esses percentuais são mais baixos para o cargo de Presidente da República – a disputa com maior repercussão na mídia e que polariza nosso posicionamento político –, mas já atingem níveis preocupantes nos outros cargos, como nas eleições para Senador, em que quase um quarto de todos os que foram às urnas votaram em branco ou anularam o voto em 2014.
Na era da urna eletrônica, quem aparece para votar e quer protestar contra a “farsa das eleições” tem duas opções: ou aperta o botão “branco” ou digita um número que não foi atribuído a nenhum candidato ou partido e depois “confirma”.
Mas há suspeitas de que tanto o voto em branco quanto o voto nulo estejam associados não ao protesto, mas a um erro do eleitor. Isso pode acontecer tanto com o cidadão que teve “um branco” e esqueceu o número do candidato, quanto com aquele que se enrolou todo com a urna e apertou qualquer coisa para se livrar logo daquela obrigação. Infelizmente, isso é mais comum do que se imagina no Brasil, dado o grande contingente da população com baixa escolaridade ou pessoas idosas com pouca habilidade em lidar com sistemas eletrônicos.
É importante lembrar que esses erros na votação, que podem na invalidação dos votos, são potencializados pela realização de várias eleições simultâneas no Brasil. Para você ter uma ideia, em 2018 cada eleitor vai votar 6 vezes de uma só vez: presidente, governador, dois senadores, deputado federal e deputado estadual/distrital. Nessas condições, não é impossível alguém se perder em meio a tantos nomes e números e acabar teclando “branco” ou confirmando um número errado.
Para tentar elucidar se os votos brancos e nulos estão mais relacionados com erros do eleitor no momento da votação do que com algum tipo de protesto contra a política brasileira fiz um exercício simples. Minha hipótese (bem razoável, na minha opinião) é que nos locais em que há mais pessoas com baixa escolaridade é de se esperar que o percentual de votos inválidos seja maior. Ou seja, pessoas com pouca instrução teriam mais problemas com a urna, o que levaria a mais votos nulos e em branco.
Para isso, coletei os dados das votações de todas as zonas eleitorais brasileiras em todos os municípios de 2002 em diante – nesse período a votação já havia se tornado 100% eletrônica em todo o território nacional. Calculei então o percentual de votos brancos e nulos para cada cargo em disputa e correlacionei com o índice de baixa escolaridade dos eleitores naquela zona eleitoral. Como baixa escolaridade eu considerei o percentual de eleitores analfabetos ou com no máximo ensino fundamental incompleto.
Os resultados podem ser vistos no gráfico abaixo, em que você pode escolher o cargo em disputa e o ano da eleição:
Se você tiver a paciência de comparar os gráficos para cada cargo ao longo do tempo, vai perceber um fato interessantíssimo: para todos os cargos, a reta que indica a correlação entre os percentuais de baixa escolaridade e de votos brancos e nulos nas zonas eleitorais brasileiras vai de positivamente inclinada para negativamente inclinada do início da década de 2000 até as eleições de 2014 e 2016.
Traduzindo para o português, isso significa que enquanto no passado zonas eleitorais com baixa escolaridade produziam mais votos em branco e nulos (o que comprova a tese do erro no uso da urna eletrônica), nas últimas eleições essa relação é negativa: os votos brancos e nulos aparecem com mais frequência nas regiões com escolaridade mais alta. Além disso, a inclinação da reta torna-se mais intensa, assim como os coeficientes de correlação – indicando que esse fenômeno tem se intensificado nos últimos anos.
Como essa tendência é observada para todos os cargos, acredito que temos elementos suficientes para desconfiar que esse movimento de crescimento de votos brancos e nulos não tem a ver com erros na votação, mas sim a um comportamento do eleitor, principalmente nas regiões de mais alta escolaridade (e, extrapolando, mais alta renda).
Essa tendência se adequa à narrativa de que, mesmo antes das manifestações de junho de 2013, a forma tradicional de fazer política vem sendo contestada nos principais núcleos urbanos brasileiros. O crescimento dos votos nulos e brancos seria, assim, uma medida do descompasso de partidos e candidatos em levarem em conta a pauta de ambições da sociedade, que a meu ver se tornou mais exigente de 2013 pra cá.
Esse eleitorado de mais alta escolaridade e renda, concentrados nos principais núcleos urbanos do país, é o mesmo que, nos anos 80 e início dos 90, constituía o grosso do eleitorado do PT – antes que o Bolsa Família e outros programas de Lula deslocaram o eixo para o interior do Norte e Nordeste. É também o mesmo grupo social que bateu panelas contra Dilma em 2016 e foi determinante para o impeachment.
Nesse contexto, os resultados acima levantam inúmeras questões para o cenário que se descortina em 2018. Essas regiões de escolaridade (e renda) mais alta, que nas últimas eleições têm refutado a política tradicional por meio de votos em branco e nulos, tendem a ser mais receptivas a candidatos com discurso conservador, ou ideias progressista de diminuição da desigualdade social ainda têm apelo?
Esse protesto ou desalento com a política continuará favorecendo o discurso de que precisamos de “gestores”, e não de políticos? As regiões metropolitanas de classe média e alta abandonaram de vez o barco do PT? O desinteresse com a política favorecerá a reeleição de candidatos enrolados com a Lava Jato ou será um catalisador para uma maior renovação do Congresso Nacional?
Nessa dança da desilusão dos votos brancos e nulos, vale o conselho do pai do Príncipe do Samba: “quando penso no futuro, não esqueço o meu passado”. Saber interpretar os anseios dessa massa crescente de eleitores que têm rejeitado a política nas últimas eleições talvez seja o Santo Graal para ser bem sucedido em outubro.
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