O FGTS, o Fies e mais uma oportunidade perdida
Câmara dos Deputados quase aprovou medida que flexibiliza o uso de recursos do FGTS, mas o lobby da construção civil não deixou.
Come senators, congressmen, please heed the call
Don’t stand in the doorway, don’t block up the hall
For he that gets hurt will be he who has stalled
There’s a battle outside, and it is ragin’
It’ll soon shake your windows and rattle your walls
For the times they are a-changin
“The times they are a-changin’” (Bob Dylan)
Uma disputa nos bastidores da Câmara dos Deputados na semana passada exemplifica como os lobbies se movimentam em defesa de seus interesses – e como as políticas públicas e econômicas são geralmente decididas com pouco ou nenhum estudo ou discussão no Brasil.
Estou falando do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o FGTS. Instituído em 1966, no furor de reformas microeconômicas implementadas pela dupla Roberto Campos-Octávio Bulhões no início da ditadura militar, o FGTS foi concebido tendo em mente dois objetivos complementares: acabar com o arcaico instituto da estabilidade de emprego na iniciativa privada e gerar uma poupança de longo prazo para financiar projetos de infraestrutura urbana.
Reformulado pela Lei nº 8.036/1990 (sim, o governo Collor também foi um importante período de reformas microeconômicas, apesar de tudo o mais), atualmente os empregadores recolhem 8% da remuneração para a conta individual do trabalhador no FGTS. O titular dos recursos, por sua vez, só pode usar a reserva em caso de demissão ou aposentadoria, além de situações especiais como compra de casa própria, doenças graves como câncer e AIDS ou desastres naturais.
Na teoria o FGTS é chamado de pecúlio: um montante de dinheiro reservado para uma eventualidade futura. Na prática, o FGTS é uma poupança forçada imposta pelo governo aos trabalhadores para financiar seus programas. Como o governo remunera muito mal essa poupança – TR mais 3% ao ano, o que na maior parte dos anos ficou abaixo da inflação – o FGTS é um subsídio aos projetos de habitação, saneamento e infraestrutura urbana escolhidos pelo governo.
O que aconteceu na semana passada foi uma tentativa de autorizar o trabalhador a utilizar seu dinheiro paralisado no FGTS para abater dívidas do financiamento estudantil.
Ao longo da tramitação da Medida Provisória nº 785/2017, que reformula o Fies, a deputada Leandre (PV/PR) propôs uma emenda que autoriza o trabalhador a sacar valores da sua conta do FGTS para amortizar ou quitar o financiamento estudantil contraído por ele próprio ou por algum de seus dependentes. Na mesma direção, porém de modo mais cauteloso, o deputado João Fernando Coutinho (PSB/PE) propôs o uso do FGTS para liquidar até 50% do valor de anuidades escolares e da dívida junto a instituições de ensino superior.
Como não poderia deixar de ser, o setor de construção civil deu o grito. O Sinduscon-SP enviou nota aos parlamentares anunciando que a medida levaria a atual política habitacional ao colapso, “paralisando os investimentos em andamento e inviabilizando o crédito imobiliário acessível para a baixa renda”. Da mesma forma, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção – CBIC publicou comunicado alarmando que se a proposta for aprovada, “o Brasil continuará com seus escandalosos índices de déficit habitacional e falta de saneamento”.
A proposta foi acatada no parecer do deputado Alex Canziani (PTB/PR), relator da matéria. Durante a deliberação do projeto em plenário, no entanto, o PSOL apresentou um destaque para votação em separado desse dispositivo, e a mudança foi suprimida do texto em votação simbólica. No seu discurso de defesa do FGTS, o deputado Chico Alencar (PSOL/RJ) apontou o dedo para o ajuste fiscal e o capital especulativo, que pretendiam com essa medida “tungar o patrimônio do trabalhador” – sem cogitar que o trabalhador também pode ser estudante. Já o deputado Daniel Almeida (PC do B/BA) foi mais explícito quanto aos interesses em jogo e defendeu o uso exclusivo do FGTS pelo setor de construção civil.
Não estamos falando aqui de ninharia. A aplicação de recursos do FGTS cresceu exponencialmente nos últimos anos. Em 2017 estima-se que o fundo injetará R$ 80 bilhões no setor de construção civil, via projetos de habitação popular, saneamento e infraestrutura urbana. Outro tanto também será direcionado ao setor por quem sacar seu FGTS para comprar casa própria. De acordo com o Balanço de 2016, foram mais de R$ 14 bilhões direcionados ao financiamento habitacional por esse canal no ano passado. Estamos tratando, portanto, de algo entre R$ 90 e 100 bilhões só neste ano.
A economia brasileira mudou muito desde 1966. 50 anos depois, porém, o governo continua tomando (essa é uma boa palavra) recursos compulsoriamente dos trabalhadores para subsidiar o setor de construção civil.
O Brasil encontra-se numa encruzilhada e, por isso, seria muito importante levar mais a sério o papel que o FGTS exerce nesse processo. De um lado, são inegáveis nossas carências crônicas de poupança de longo prazo e de investimentos em habitação e em infraestrutura básica, como é o caso do saneamento. Por outro, os nossos níveis educacionais e a produtividade de nossa mão-de-obra é baixíssima. A proposta em questão, portanto, lidava com esse impasse. Mas, infelizmente, pouquíssimas pessoas tomaram conhecimento de que isso estava em pauta e perdemos mais uma oportunidade de repensar a função do FGTS.
Como eu sempre tenho dito por aqui, o debate sobre avanços institucionais no Brasil é sempre interditado por muito palavrório, argumentos rasos e números tirados da cartola. Os setores beneficiados pelo status quo há décadas fazem terrorismo direcionando o discurso sempre para os mais fracos – o cidadão, o consumidor, as camadas mais pobres da população – e nunca para os seus ganhos extras garantidos pela proteção estatal. Quem está de olho nas boquinhas estatais usa dos mesmos artifícios.
O governo e o Congresso, por sua vez, não promovem um debate profundo sobre os reais efeitos das medidas, pois operam segundo o timing das medidas provisórias e, assim, acabam sendo conduzidos pelo comportamento oportunista dos grupos de interesse. A academia, em geral, permanece encastelada em debates teóricos improdutivos e pouco tem a acrescentar às discussões com estudos técnicos.
Problemas complexos exigem pensar soluções igualmente complexas. Enquanto não nos conscientizarmos de que o desenvolvimento econômico e social do país pressupõe impor perdas a minorias em favor da maioria, nossas políticas públicas continuarão a ser dominadas segundo a lei do mais forte, do mais organizado e daquele que tem melhores relações com o poder.
E os tempos, por aqui, não estão mudando.
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No dia 13/10/2017 publiquei um texto criticando o custo econômico dos cartórios para o país.
Como não poderia deixar de ser, dois dias depois recebi uma nota da Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg.
Conforme você pode ver aqui, a associação se contrapõe às ideias que levantei no texto – adotadas em diversos países – de se executar os serviços prestados pelos cartórios de outras formas. De forma legítima, a Anoreg obviamente defende o rentável filão de seus associados.
E por falar em rentabilidade, a nota traz alguns dados muitos importantes para ilustrar os argumentos que utilizei no post. Enquanto a associação chama atenção para a maioria dos cartórios que recebe baixos valores mensais, eu fico com a parcela de cima da pirâmide – afinal, eu trato neste espaço de distorções e privilégios. De acordo com os dados da Anoreg, 2.085 cartórios (16,62% do total do país) auferem entre R$ 21.491,01 e R$ 132,473 por mês. Um degrau acima, 355 serviços notariais recebem até R$ 264.915,00 mensais. E 193 detentores desse serviço público podem chegar a receber assombrosos R$ 529.830,00 mensais – e isso após descontarem os repasses ao Estado, despesas de funcionamento e impostos!
Após receber a nota e informar que iria publicá-la aqui em nome da transparência e para fomentar o debate, questionei o posicionamento da Anoreg sobre críticas frequentemente feitas pela população a respeito do serviço dos cartórios, como as necessidades de i) redução de prazos de atendimento, ii) padronização na qualidade de atendimento aos clientes, iii) simplificação das exigências burocráticas presentes na legislação para reduzir os custos de transação no país, iv) fim da reserva de mercado territorial de cartórios de pessoa natural e imóveis para estimular a concorrência nos centros urbanos maiores, v) interligação tecnológica dos cartórios para facilitar consultas e vi) padronização das tabelas de emolumentos entre os Estados, com a consequente revisão dos valores cobrados.
Reiterei o pedido de posicionamento diversas vezes à assessoria de imprensa da Anoreg, sem sucesso. Infelizmente a associação não é tão rápida para discutir seu papel na redução do custo Brasil quanto o é para defender seus próprios interesses.
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