Os artistas que me desculpem, mas a Lei do Audiovisual não deve ser prorrogada

Bruno Carazza

A reação de artistas contra o fim da Lei do Audiovisual expõe como é difícil corrigir distorções dos incentivos fiscais no Brasil

O sistema é mau, mas minha turma é legal
Viver é foda, morrer é difícil
Te ver é uma necessidade
Vamos fazer um filme

“Vamos fazer um filme” (Renato Russo)

Sônia Braga, Wagner Moura, Antônio Pitanga e uma série de outros atores, diretores e roteiristas lançaram nesta semana um apelo pela preservação dos incentivos fiscais da Lei do Audiovisual, previstos para terminar em dezembro deste ano. Apesar de admirar muitos deles e de ter me divertido e emocionado com muitos de seus filmes – a maioria deles viabilizado pelos benefícios tributários –, preciso discordar da sua postura.

Para quem não recebeu o vídeo pelas redes sociais, você pode assisti-lo aqui. Os artistas se indignam contra o veto do Presidente Temer à Medida Provisória nº 770/2017, que durante a sua tramitação no Congresso recebeu o enxerto de um dispositivo que prorrogaria os benefícios fiscais da Lei do Audiovisual até o final de 2019.

De acordo com a lei, o investimento de pessoas físicas e empresas em obras audiovisuais será abatido do imposto de renda até o limite de 6% da renda anual (indivíduos) e 4% do faturamento (pessoas jurídicas). Esse valor, portanto, deixa de constar no caixa geral do Tesouro – de onde poderia ser destinado a custeio, investimentos e outras políticas públicas – e vai direto para os produtores escolhidos pelo doador.

Para se ter uma ideia do montante envolvido nesse programa, a proposta orçamentária de 2018 prevê que mais de R$ 185 milhões serão destinados à produção de filmes no Brasil por meio desses benefícios tributários. Em 2017 a previsão foi de quase R$ 300 milhões.

A encrenca em torno da Lei do Audiovisual explicita, porém, como é difícil corrigir distorções que geram privilégios para alguns e prejuízo para milhões no Brasil.

É preciso reconhecer, entretanto, que a situação relatada pelos artistas no vídeo é a mais pura verdade. Antes da criação da Lei do Audiovisual, o cinema brasileiro agonizava. A aprovação da lei, e dos benefícios tributários que ela criou, propiciou a retomada da produção audiovisual no país, que hoje é sim bastante pujante.

_ “Mas se o sistema funciona, então por que os incentivos não podem ser prorrogados?”, você poderia me perguntar. Eu responderia que a mudança é necessária justamente porque a situação mudou; porque “o setor audiovisual brasileiro hoje é um setor economicamente saudável”, como disse a cineasta e VJ Marina Person aos 42 segundos do vídeo.

Ora, se é assim, precisamos repensar se os incentivos, que retiram recursos importantes para tantas outras áreas carentes no país, continuam sendo necessários.

Mas retirar um benefício fiscal é uma das coisas mais difíceis no Brasil. Sempre que o governo cogita encerrar uma dessas benesses, quem se beneficia delas se mobiliza, grita, esperneia, manipula a opinião pública, pressiona autoridades e parlamentares, e acaba conseguindo a sua prorrogação. É por isso que os atores e produtores estão fazendo esse lobby.

Os incentivos da Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/1993) retratam bem esse roteiro batido. A ideia inicial era que eles vigorassem por 10 anos, terminando no final de 2003. Em 2001 uma Medida Provisória estendeu o prazo final para 2006. Em 2006, uma lei jogou o fim para 2010. Quando chegou 2010, adivinha? O Congresso empurrou o encerramento para 2016. Dessa vez o governo não deixou para a última hora e, já em 2015, nova lei foi aprovada determinando que ao final de 2017 apareceria a tela de “the end”. E lá se vão 24 anos desde que o sistema foi criado.

Na defesa dessas inúmeras prorrogações, o enredo também é semelhante a outras obras do gênero rent seeking, no qual o Brasil é especialista. As justificativas giram sempre em torno de supostos benefícios coletivos: a preservação de empregos, a renda gerada para a economia, a defesa da cultura nacional. Muita retórica, quase nenhum dado, pouca investigação sobre quem realmente ganha com os benefícios e quem paga por eles.

Aliás, por falar em dados, está aí outra deficiência crônica da política de incentivos fiscais no Brasil: a transparência é baixíssima, a avaliação dos resultados obtidos é menor ainda.

No caso da Lei de Audiovisual, temos até uma agência reguladora que fiscaliza o setor, mas que divulga pouquíssimos dados sobre a sua situação atual. Na página da Ancine há até uma seção solenemente denominada Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, mas os dados de renda de bilheteria e benefícios auferidos por cada filme remontam a… 2013!!!

[No entanto, a julgar pela recente declaração do Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, de que metade dos filmes brasileiros vendem menos bilhetes do que o número de seus amigos no Facebook, espera-se que os dados mais recentes sejam divulgados em breve. Tomara!]

Com base nos poucos dados disponíveis, procurei analisar o perfil das produções nacionais no que se refere ao público obtido e aos investimentos recebidos por meio dos incentivos fiscais do imposto de renda de pessoas e empresas.

O gráfico abaixo, apesar de restringir-se ao período de 1995 a 2013, oferece subsídios para exigirmos uma reavaliação séria dos resultados da Lei do Audiovisual antes que ela seja simplesmente prorrogada.

No gráfico, cada círculo representa um filme brasileiro; no eixo vertical está o valor que ele conseguiu captar no mercado por meio dos incentivos da Lei do Audiovisual e outros benefícios; no eixo horizontal, a renda obtida com a venda de ingressos nos cinemas.

Se a bolinha estiver azul, significa que o filme conseguiu auferir na bilheteria mais dinheiro do que recebeu de incentivos fiscais. Mas se o seu desempenho nos cinemas tiver sido inferior ao captado pela Lei do Audiovisual, a bolinha do filme está representada na cor vermelha. Além disso, quanto maior o círculo, mais dinheiro recebido de incentivos. Um detalhe importante: todos os valores estão corrigidos pela inflação.

 

Você pode clicar em cada bolinha para ver o nome do filme, sua bilheteria e os incentivos recebidos, mas para facilitar eu destaquei alguns para ficar mais claro meu argumento.

Tome o caso dos filmes cujos nomes estão em azul. Certamente você assistiu vários deles no cinema ou na TV. São os grandes blockbusters brasileiros: grandes sucessos de crítica (Tropa de Elite, Carandiru, 2 Filhos de Francisco, Cidade de Deus), comédias populares (Se Eu Fosse Você, Minha Mãe é uma Peça, De Pernas pro Ar), filmes religiosos (Nosso Lar, Chico Xavier).

O que marca esse grupo de blockbusters é que sua renda de bilheteria foi tão grande que devemos nos perguntar se os incentivos fiscais captados por eles precisariam mesmo ter sido concedidos. Afinal, eram excelentes produtos ou baseavam-se em receitas de sucesso já consagradas no mercado, contavam com atores globais e foram realizados por grandes produtoras nacionais (O2, Conspiração, Globofilmes, etc.) em geral associados a grandes distribuidoras internacionais. Esses filmes certamente fariam sucesso mesmo sem um centavo de incentivo fiscal e suas produtoras poderiam muito bem captar esses recursos no mercado, sem precisar de recursos públicos.

Por outro lado, temos os filmes cujos nomes eu destaquei em vermelho. Do ponto de vista de bilheteria, foram retumbantes fracassos financiados com o dinheiro público. O grupo é bastante heterogêneo: tem tanto o cult Abril Despedaçado quanto produções infantis ou filmes históricos que ficaram às moscas.

De acordo com os dados da Ancine, o campeão em sentido contrário é Coração Iluminado, do falecido diretor Hector Babenco. Pessoas e empresas abateram mais de R$ 30 milhões do imposto de renda para a produção do filme, mas o filme arrecadou pouco mais de R$ 300 mil nos cinemas. Ou seja, as 17.850 que foram ao cinema assisti-lo geraram uma renda equivalente a um centésimo dos incentivos fiscais recebidos pelo filme!

Esse grupo de empresas que captam muitos recursos via incentivos ao audiovisual e geram baixíssima renda merecem ser analisados com cautela. O déficit pode ser justificado em termos de sua contribuição cultural – talvez seja o caso de Abril Despedaçado, uma produção franco-suíça-brasileira que foi indicada ao Globo de Ouro e ao BAFTA. Mas em outros casos a qualidade é tão sofrível, a temática tão banal e os benefícios tão elevados que o filme mereceria, na verdade, receber como prêmio uma auditoria do TCU ou até mesmo uma investigação do Ministério Público Federal. Num caso ou no outro, o sistema precisava ser revisto para evitar que um filme em que a sociedade aplica tantos recursos tributários não seja visto por quase ninguém.

Por fim, destaquei em verde alguns filmes que, apesar de terem conseguido grande sucesso de público, aparentemente não recorreram a incentivos fiscais. De acordo com os dados da Ancine, produções como O Auto da Compadecida, Os Normais 2, A Grande Família e Carlota Joaquina geraram bilheterias milionárias sem recorrer à Lei do Audiovisual. Eles indicam que é possível produzir obras de qualidade e/ou de grande apelo popular correndo os riscos do mercado e sem essa dependência estatal que caracteriza o setor.

O que os dados acima demonstram é que precisamos estudar seriamente os resultados das políticas de benefícios fiscais no Brasil. Os objetivos iniciais foram alcançados? O setor contemplado já tem capacidade de caminhar com as próprias pernas, recorrendo ao mercado em vez do Estado? Não seria o caso de remodelar o sistema buscando gastar menos, para redirecionar recursos para outras políticas públicas que atendam à massa da população (saúde, educação, transporte) e eliminar distorções?

Ao contrário dos artistas do vídeo-manifesto pela prorrogação da Lei do Audiovisual, eu quero assistir a um filme diferente em 2018. A turma é legal, mas o sistema é mau.

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Como esperado, meu último post (“Os cartórios e o preço da fé pública no Brasil”) gerou reação imediata dos detentores de cartórios no Brasil. Recebi uma nota da Anoreg, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil, questionando alguns pontos e destacando outros do texto. Como o meu lema neste blog é “mais informação, menos opinião”, assim que eu receber uns esclarecimentos adicionais que solicitei à associação escreverei um texto adicional a respeito do tema, explicitando o posicionamento da Anoreg.

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