A um ano das eleições, um programa de governo fadado ao fracasso
Reduzir a imensa desigualdade no Brasil exige uma ampla agenda de reformas que ataque privilégios – e nenhum candidato sequer cogita enfrentá-los
Penso: como vai minha vida?
Alimento todos os desejos
Exorciso as minhas fantasias
Todo mundo tem um pouco de medo da vida
Pra que perder tempo desperdiçando emoções
Grilar com pequenas provocações
Ataco se isso for preciso
Sou eu quem escolho e faço os meus inimigos
Saudações a quem tem coragem
aos que tão aqui pra qualquer viagem
“Pense e Dance” (Dé/Frejat/Guto Goffi)
Daqui a um ano estaremos na véspera da eleição. Por enquanto não temos ideia de quem serão os candidatos a presidente. Lula conseguirá escapar do julgamento em segunda instância que pode torná-lo Ficha Suja? Bolsonaro continuará crescendo nas pesquisas? O PSDB se unirá em torno de Alckmin ou Doria? Marina Silva sairá do ostracismo e finalmente se tornará viável eleitoralmente? E Henrique Meirelles, será ungido pelo empresariado e emplacará sua candidatura? Ou surgirá um outsider salvador da Pátria, tipo Luciano Huck?
Enquanto aguardamos o circo eleitoral ser montado, vejo pouca gente debatendo ideias em lugar de nomes. E nossos problemas se acumulam e vai se formando uma bomba relógio – fiscal, social, demográfica – para o próximo governo.
As medidas variam. Na Ilustríssima da Folha de domingo (01/10), Ricardo Balthazar e Vinícius Torres Freire fizeram um apanhado dos últimos estudos publicados sobre a evolução da desigualdade de renda no Brasil. A incorporação de dados fiscais por estudos como os de Marcelo Medeiros (UnB), Pedro Souza (IPEA) e Fábio Castro (Receita Federal) e, mais recentemente, de Marc Morgan, discípulo de Thomas Piketty, tem abalado a crença de que a desigualdade havia caído significativamente nas últimas duas décadas. Mais do que isso, mostram um quadro ainda mais sombrio, em que os extratos mais ricos da sociedade detêm fatias da renda nacional maiores do que supúnhamos:
Discordâncias metodológicas a parte, a verdade é que, não importa a medida, os dados sobre desigualdade no Brasil são vergonhosos. E se traduzem em outras estatísticas: desemprego, estupros, furtos e roubos, homicídios. O que já é triste torna-se trágico quando nós mesmos, ou nossos entes mais queridos, viramos estatísticas – a desigualdade socioeconômica no Brasil cobra um preço bem alto.
Os números mostram que, se por um lado políticas públicas como o Bolsa Família e reajustes reais de salário mínimo mostraram-se eficientes para enfrentar a miséria, não são suficientes para reduzir o fosso entre os pobres e os muito ricos.
Também não adianta jogar a responsabilidade para a educação, uma espécie de panaceia no imaginário popular, a saída mais comum para encerrar de forma consensual qualquer discussão sobre a situação política do país. Petralhas e coxinhas sempre acabam fazendo as pazes na mesa do bar ao concordarem que o Brasil não melhora enquanto não se investir na educação.
A grande questão é que nossos problemas são urgentes, o caos social está batendo à porta (alô, alô, Rio de Janeiro!), e não podemos nos dar ao luxo de esperar uma ou duas gerações receberem educação de qualidade para nos tornarmos um país decente. Não estou com isso querendo dizer que investir em educação não é importante – muito pelo contrário, chegamos a este ponto justamente porque, há séculos, ninguém investe seriamente em educação pública e básica de qualidade.
Mas para atacar o problema de verdade e começar a colher resultados imediatos é necessário encarar uma extensa rede de privilégios que são a marca de nosso (sub)desenvolvimento: privilégios criados pela legislação, nas opções de políticas públicas, no desenho do sistema tributário, na falta de concorrência, no fechamento do país ao mercado externo.
A autodeclarada classe média brasileira – que na verdade é classe alta, segundo as estatísticas de renda –, se pensar bem, pode ter acesso a vários privilégios criados por esse sistema excludente. É só pensar nas universidades gratuitas, na ausência de limites para despesas médicas no Imposto de Renda, na coleta diária do lixo no seu bairro e que só acontece semanalmente (quando acontece!) na periferia da sua cidade.
E o que dizer dos ricos e super-ricos? Nos beneficiários dos créditos subsidiados do BNDES para as suas empresas, dos recorrentes Refis, das baixas alíquotas de imposto sobre heranças, na isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos? Vocês acham que os grandes capitalistas brasileiros, que construíram fortunas com base em conluios entre si e com os políticos, apoiariam a campanha de candidatos que se colocarem contra esse estado de coisas?
Muito do nosso atraso advém da estratégia que cada grupo social desenvolve para conseguir arrancar do Estado – logo, da sociedade como um todo – benefícios privados. E cada qual usa belos argumentos para justificar os favores pleiteados – geralmente baseados falsamente em argumentos coletivistas, como a geração de empregos, o aumento dos investimentos, a melhoria dos serviços públicos…
Para agravar a situação, temos um sistema político que se sustenta agradando corporações: de igrejas evangélicas a altos servidores públicos, de taxistas a militares. Isso sem falar dos ruralistas, seguramente o maior partido político do Brasil hoje em dia.
O Brasil não conseguirá diminuir de forma significativa uma das piores iniquidades sociais e econômicas do planeta com base apenas em transferências de renda e algumas políticas públicas voltadas para os mais pobres. E justamente porque adiamos há anos algumas dessas decisões antiprivilégios, como a Reforma da Previdência, o quadro fiscal agora oferece pouca margem de manobra para ampliar consideravelmente programas como o Bolsa Família, por exemplo.
Como se não bastasse, o atual governo tem sido pródigo na concessão de mais benefícios para grupos de interesses. Dependente de negociações para assegurar a paralisação das ações que correm contra o Presidente na Justiça, com uma popularidade que beira o ridículo e com sua legitimidade questionada por boa parte da população desde que assumiu o Palácio do Planalto, o governo cede em praticamente tudo: começou com a concessão de reajustes salariais para o funcionalismo, passou por renegociações generosas das dívidas de ruralistas e agora abriu-se a porteira para um refinanciamento de pai pra filho de dívidas tributárias de grandes empresas e a criação de um fundo público de pelo menos R$ 2 bilhões para campanhas eleitorais.
É por isso que decidi assumir uma quixotesca missão de discutir, nas próximas semanas, diversos desses privilégios incrustados em nossa sociedade e alimentados pelo Estado brasileiro. A ideia é selecionar normas, políticas públicas ou tributos que geram concentração de renda e apresentar evidências de seu custo – fiscal ou social. Proponho chamar a atenção dos leitores para uma espécie de programa de governo voltado para tentar mitigar a imensa desigualdade de renda brasileira.
Mas de antemão já aviso que se trata de um exercício utópico. Mesmo se algum louco decidisse assumir essa agenda, ele estaria fadado ao fracasso. Afinal de contas, ninguém ganha eleição defendendo a eliminação de privilégios de grupos poderosos ou de uma vasta parcela da população que se julga no direito de usufruir deles.
Nesse ponto, a lógica da ação coletiva é batata. De um lado, temos a imensa maioria silenciosa e desarticulada que se beneficiaria dessas mudanças, mas pouco fará para defendê-las; de outro, uma minoria ruidosa e bem organizada que se mobiliza para matar na raiz qualquer ameaça a seus benefícios. No Brasil são tantos os benefícios e privilégios oferecidos a diferentes grupos sociais que alguém que se disponha a enfrentá-los fará tantos inimigos que suas chances de vitória são reduzidas a zero.
Além disso, ainda há a ideologia cega a dificultar qualquer movimento nessa direção. Esquerdistas que bradam contra a desigualdade levantarão suas bandeiras contra medidas contrárias a alguns de seus dogmas – para boa parte deles, instituir cobrança de mensalidades para quem tem condições de pagar é uma afronta ao ideal de universidade pública e gratuita, mesmo que os recursos sejam realocados para a educação básica ou para o desenvolvimento de mais pesquisas que beneficiariam a coletividade.
Assim também acontece com a direita. Para ficar no exemplo das universidades, quantos torcem o nariz para sistemas de quotas simplesmente porque afrontam seu ideal de meritocracia, esquecendo que não existe igualdade de oportunidades num sistema tão injusto em que as chances de vencer o Enem são dadas principalmente pela sorte de ter nascido num lar abastado e, em geral, branco?
A notícia ruim, para cada um de nós, é que o limite para empurrarmos o problema da desigualdade com a barriga está bem próximo. E é bom não perder de vista que diversos estudos sérios sugerem que os instrumentos mais eficientes para reduzir a iniquidade numa sociedade são as guerras, o caos social e as grandes epidemias.
Se algum candidato se comprometesse a enfrentar esses privilégios para reduzir de forma drástica a desigualdade brasileira e evitar essa saída teria o meu voto.
Como isso não vai acontecer, nas próximas semanas tentarei discutir como esses tratamentos diferenciados recebidos do Estado são construídos e como eles afetam a concentração de renda (e poder) no Brasil.
Saudações a quem tem coragem.
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