Flechada no próprio pé: uma pequena análise econômica das delações premiadas

Bruno Carazza

O vazamento do áudio de Joesley Batista e a intenção de Rodrigo Janot e de ministros do Supremo de invalidar o acordo com a JBS dizem muito sobre o uso ineficiente das delações premiadas na Lava Jato

De tanto levar frechada do seu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Tauba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

“Tiro ao Álvaro” (Adoniran Barbosa)

Sempre a meta de uma seta no alvo
mas o alvo na certa não te espera
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada
Quando se parte rumo ao nada.

“A Seta e o Alvo” (Nilo Romero e Paulinho Moska)

 

“Enquanto houver bambu, lá vai flecha. Até o dia 17 de setembro, a caneta está na minha mão”. Rodrigo Janot era só auto-confiança no dia 1º de julho, quando foi a estrela maior do 12º Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Entrevistado por Renata Lo Prete, o Procurador-Geral da República estava leve e fazia brincadeiras em várias perguntas, conforme destacou a reportagem da Folha.

Ao ser questionado sobre o suposto excesso de benefícios dos acordos de delação e leniência firmados com os executivos do grupo J&F, a holding que controla a JBS, Janot foi peremptório: “Se você me perguntar se eu faria de novo, hoje afirmo tranquilamente que faria.”

Dois meses depois, os procuradores ouviram um novo áudio de Joesley e seu braço-direito Ricardo Saud. No meio da gravação, entre uma dose e outra de whisky, comentários impublicáveis sobre mulheres e ministros do STF e a revelação de que um dos principais auxiliares de Janot tinha feito jogo duplo durante as negociações do polêmico acordo de colaboração premiada. A poucos dias do final do seu mandato, a caneta continua na mão de Janot. Mas agora ele considera rever o acordo.

A reviravolta no caso JBS revela muito sobre a falta de critério na utilização do instrumento mais poderoso no combate à corrupção e ao crime organizado já introduzido no arcabouço jurídico brasileiro.

Comum em outras jurisdições, a concessão de vantagens para criminosos que colaborem com a Justiça é uma prática relativamente recente no Brasil. Surgiu com a Lei nº 10.149/2000, que criou o programa de leniência no âmbito do combate a cartéis – posteriormente aprimorado com a Lei nº 12.529/2011, que reestruturou o CADE. Mais de uma década depois, e no calor das manifestações de junho de 2013, o Congresso aprovou a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e uma legislação contra as organizações criminosas (Lei nº 12.850/2013).

Todas essas normas contêm incentivos como redução ou eliminação de penas para pessoas físicas e jurídicas que colaborem com as investigações no âmbito do combate a cartéis, à corrupção e ao crime organizado, respectivamente. E, como tudo em economia, se os incentivos não forem colocados de maneira apropriada, o resultado pode ser bem ruim – por melhores que sejam as intenções.

A seguir, reapresento algumas considerações sobre a lógica econômica dos acordos de colaboração premiada – e como ela vem sendo desvirtuada pelo Ministério Público por uma visão de curto prazo na Operação Lava Jato, que pode inclusive comprometer o desestímulo à corrupção no futuro.

Ao negociar com os donos e principais executivos da JBS, a equipe de Janot fez uma aposta ambiciosa: em troca das informações do maior doador de campanhas de 2014, ela não apresentaria denúncia contra os crimes cometidos pelo grupo goiano e aplicaria multas num patamar bem inferior aos benefícios recebidos com a corrupção.

De acordo com o art. 4º da Lei nº 12.850/2013, o benefício do não oferecimento da denúncia está sujeito a duas condições: que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e que seja o primeiro a propor o acordo. No caso da JBS, o atendimento a esses requisitos não está nem um pouco claro.

Em primeiro lugar, com base em que podemos afirmar que Joesley Batista e companhia não eram os líderes de uma organização criminosa que montou um super esquema de compra de apoio político para obter benefícios estatais variados, de fiscalização sanitária frouxa a empréstimos bilionários subsidiados pelo BNDES?

Da mesma forma, em que sentido os executivos da JBS foram os primeiros a contribuir no caso em análise na Procuradoria-Geral da República? A Lava Jato já teve dezenas de acordos firmados, com doleiros, executivos da Petrobrás, empreiteiros e alguns políticos. Sendo assim, esse pioneirismo exigido pela lei não parece ter sido atendido.

Essa falta de critérios quanto à concessão dos benefícios dos acordos de colaboração premiada tem sido recorrente ao longo de toda a Operação Lava Jato – e, por causa dela, a Operação Lava Jato pode se tornar apenas um evento episódico, e não um ponto de inflexão na prevenção a desvios de recursos públicos no Brasil.

Nos países mais rigorosos, a regra é conceder os benefícios apenas àqueles chegarem primeiro com um proposta de delatar para as autoridades. Essa regra constitui um importante pilar no combate à corrupção e outros delitos, pois ela busca desestabilizar a estrutura da organização criminosa. Ao prever que “o vencedor leva tudo”, a lei cria um ambiente de insegurança entre os criminosos, estimulando que algum deles traia seus comparsas em busca dos benefícios máximos da lei. Teoria dos jogos na veia, né?

No caso da Operação Lava Jato essa regra foi afastada. A Força Tarefa em Curitiba optou por ir puxando a extensa e bem entrelaçada teia de relacionamentos entre grandes grupos econômicos e a elite política brasileira propondo o abrandamento das punições à medida que os personagens foram aparecendo: primeiro no núcleo entre Alberto Yousseff e os diretores e gerentes da Petrobrás (Paulo Roberto Costa, Pedro Barusco, Nestor Cerveró, etc.), passando por operadores financeiros do esquema, depois envolvendo as empreiteiras e assim por diante.

É fato que essa estratégia teve o mérito de expandir as investigações e revelar ao país como nosso sistema político está carcomido, mas ela certamente tem importantes efeitos colaterais.

Em primeiro lugar, não é certo que todos os acordos de delação cumprem a exigência legal de trazer contribuições substantivas para as investigações a ponto de justificarem seus generosos benefícios. Tome-se o caso da Odebrecht: a partir do momento em que a Polícia Federal e as agências americana e suíça descobriram o tal Departamento de Operações Estruturadas da empreiteira, obtendo o sistema de contabilidade das propinas, restou muito pouco a ser esclarecido. Sob esse aspecto, as penas aos executivos e as multas impostas ao grupo econômico poderiam ser bem mais pesadas, até mesmo para cumprirem seu caráter pedagógico.

Além disso, diante das significativas reduções de penas e multas para mais de uma centena de agentes envolvidos diretamente com corrupção bilionária, não é difícil perceber à nossa volta o sentimento de que o crime compensa no Brasil. Afinal, dezenas desses personagens passaram períodos relativamente curtos na prisão e agora desfrutam de boa parte do patrimônio obtido com os crimes praticados. Veja que incentivo a Lava Jato está, paradoxalmente, dando para os corruptores de amanhã!

E há um fator adicional: ao sinalizar com substantivas reduções de penas e multas para executivos e empresários que apresentarem indícios de compra de favores, a Operação coloca praticamente toda a responsabilidade pela corrupção nos políticos, quando na verdade esse é um crime que tem oferta e demanda. Nesse sentido, a Lava Jato faria um grande favor ao país se aplicasse multas tão elevadas a ponto de que seus controladores fossem forçados a vender seus ativos para outros investidores, conseguindo inclusive manter as unidades produtivas e os empregos. Se os controladores da JBS, Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez e demais fossem forçados a abrir mão de suas empresas em troca de sua liberdade, teríamos um sinal claro de que o crime não compensa.

Imagino que, a essa altura dos fatos, Rodrigo Janot não tenha mais tanta convicção de que faria tudo de novo com relação à JBS. Sua caneta deve estar pesando para propor ao STF a revisão do acordo firmado. Eu não sei como a História vai avaliar a Operação Lava Jato, mas eu temo que o excesso de benevolência para com os grandes grupos econômicos não terá contribuído para romper a cultura de corrupção que impregna as relações entre o público e o privado no país.

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