Compra-se tudo, tudo se vende

Bruno Carazza

Tramitação da Medida Provisória que pretendia reduzir os setores beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos revela como as leis no Brasil são mal feitas e movidas pelo interesse econômico

Está ao alcance das mãos, experimente
Como é antigo o passado recente
Dentro de mais alguns instantes
De novo tudo igual ao que era antes
[…]
Compra-se tudo, tudo se vende
É conversando que a gente se entende
[…]
Dinheiro é bom, dinheiro é bom até assim
Ainda é muito bom mesmo quando é ruim
Se você não provou, um dia ainda vai provar
É fácil dizer, difícil é acreditar
E quem é que quer ver as coisas como realmente são?

“Qualquer Negócio” (Britto, Miklos, Gavin, Belloto, Mello, Fromer)

 

No último post, demonstrei como a decisão do governo Dilma de migrar a base de tributação das empresas da folha salarial para o faturamento – conhecida popularmente como desoneração da folha de pagamentos – tornou-se um grande negócio para diversos setores e um problema fiscal bilionário que afeta o financiamento da Previdência Social.

O roteiro é bastante típico da forma como fazemos políticas públicas no Brasil, principalmente aquelas relacionadas a incentivos fiscais: i) pega-se uma ideia que pode até ser boa, ii) edita-se uma medida provisória sem nenhum estudo sério sobre suas consequências, iii) a MP é desvirtuada no Congresso para ampliar seus benefícios ou beneficiários e iv) depois de virar lei, editam-se outras MPs para prorrogar prazos de vigência e aumentar ainda mais os incentivos e quem tem direito a recebê-los.

No caso da desoneração da folha de pagamentos, a ideia inicial era que atendesse 6 setores e gerasse um impacto fiscal de R$ 1,43 bilhão por ano a partir de 2012. No final de 2015 já eram mais de 50 os segmentos contemplados e a conta paga por todos nós chegou a R$ 25 bilhões anuais.

O propósito deste texto é demonstrar como é difícil desarmar essas bombas fiscais que são criadas para atender ao interesse de alguns, com o pagamento a cargo de milhões de contribuintes.

Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma 2, bem que tentou. A duras penas, aprovou a Lei nº 13.161/2015, aumentou as alíquotas e reduziu o rombo para R$ 15 bilhões em 2016.

Agora é a vez de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Temer: editou a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos. Seu plano era reduzir o rombo da desoneração fiscal para menos de R$ 10 bilhões neste ano e abaixo de R$ 2 bilhões em 2018. Ou seja, voltaríamos ao plano original lá de 2011.

De acordo com a Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da Fazenda ao Presidente da República para justificar a MP, a restrição da desoneração deve-se a “necessidade de redução do déficit da Previdência Social pela via da redução do gasto tributário, com o consequente aumento da arrecadação”.

Pela leitura desse documento, aliás, vê-se que continuamos tomando medidas importantes sem o necessário estudo prévio – ou, se ele existe, não é transparente e passível de debate pela sociedade.

A Exposição de Motivos, exigida pela legislação para dar satisfação ao público quanto aos requisitos de “urgência” e “relevância” de uma MP, é lacônica (oito parágrafos curtos), não faz menção a qualquer análise técnica e não apresenta justificativas para a escolha dos setores que vão continuar com a desoneração na folha.

Sobre esse aspecto, os dados disponibilizados pela Receita Federal aqui revelam que a geração de emprego parece não ter sido o critério dominante para se manter a desoneração para os setores de transporte terrestre, construção civil e infraestrutura e empresas jornalísticas, em detrimento dos demais. No gráfico abaixo, o tamanho dos polígonos representa o volume de empregados afetados pela medida em cada setor, sendo que a cor verde demonstra aqueles que continuarão tendo direito à desoneração da folha salarial:

 

 

Da mesma forma, tampouco a renúncia fiscal parece ser a razão dominante para a escolha feita pelo governo de preservar alguns setores e acabar com a desoneração de outros:

Mesmo relevando essa falha do governo em realizar estudos prévios ou, talvez, não torná-los públicos, a intenção de rever a desoneração da folha neste cenário de grave crise fiscal é bem-vinda.

Mas querer não é poder. Do outro lado existem interesses muito bem organizados e articulados com quem realmente decide: nossos representantes no Congresso. Pera lá! Representantes de quem?!?!?!

Analisando a tramitação da MP nº 774 no Congresso, é possível concluir, mais uma vez, como o processo de elaboração das leis brasileiras é extremamente permeável à ação de grupos de interesses econômicos. E é importante deixar claro como tudo isso é realizado sob um verniz de democracia e participação social.

Tome-se o caso da audiência pública realizada para discutir a matéria. Observando-se a lista dos participantes, vemos a predominância de representantes dos setores prejudicados pela extinção da desoneração da folha de pagamentos. Convidados pelos parlamentares, esses empresários ou representantes de entidades de representação empresarial têm uma grande oportunidade de estar frente a frente com os parlamentares e ter voz ativa no processo legislativo – vozes que são amplificadas pela cobertura da mídia no Congresso e pelas transmissões da TV Câmara e TV Senado.

Da relação de 11 participantes da audiência pública, apenas um do governo (Receita Federal) e dois representantes dos trabalhadores. Vê-se, portanto, como as audiências públicas no Congresso são um simulacro de canal de participação social, uma vez que a distribuição de suas vagas é extremamente desigual, sendo favorecidos os grupos com maior articulação e acesso aos parlamentares.

Aliás, a apresentação do Coordenador-adjunto do Dieese foi a única a transmitir uma visão relativamente abrangente da questão em debate, revelando como a desoneração da folha de pagamentos não tem efeitos claros sobre a geração de empregos tanto na experiência internacional quanto nos poucos estudos sérios realizados sobre o tema no Brasil até o momento. As demais foram falas interessadas dos setores afetados, com visões catastrofistas sobre os impactos da MP sobre o emprego e a produção – tudo para justificar a manutenção do incentivo.

Outro mito da democracia brasileira desmascarado pelos dados da tramitação legislativa é o da representatividade: em geral os parlamentares são representantes de setores específicos, e não do seu eleitorado ou – suprema ilusão! – da população em geral.

Tome-se o caso das emendas propostas pelos deputados com o objetivo de alterar o texto da MP nº 774. Das 90 emendas propostas, 67 destinavam-se explicitamente (sim, caro(a) leitor(a), eu li todas as emendas!!!) a beneficiar determinado setor, mantendo seu direito à desoneração da folha.

Frise-se que essas emendas não foram propostas com base em critérios técnicos: nas justificativas às emendas não há menção a estudos confiáveis sobre a relação custo-benefício da medida, donde se conclui que o propósito era simplesmente manter o privilégio.

A situação fica mais complicada quando verificamos que, em geral, há um estreito vínculo prévio entre o parlamentar que propõe a emenda e o setor beneficiado por ela.

Como pode ser visto na tabela abaixo, na maioria das vezes o senador ou deputado que propõe uma emenda destinada a manter a desoneração para um setor já tem um relacionamento com ele. Essa relação é expressa tanto em termos de uma participação em frentes parlamentares de apoio ao segmento (as famosas “bancadas” empresariais) ou, pela via mais direta, doações de campanha vindas de empresas que atuam naquele ramo.

 

Fonte: Dados coletados pelo autor, a partir de informações das páginas da Câmara, do Senado e do TSE.

Na tabela acima pode-se ver emenda de deputado que recebeu doações da Embraer propondo a manutenção da desoneração para a indústria aeronáutica, parlamentar que é presidente da Frente de Apoio ao Setor Calçadista defendendo a continuidade do benefício para as empresas do setor de calçados e couros, emendas voltadas para o setor frigorífico – carnes e derivados, suínos e avicultura – sendo propostas por congressistas da frente ruralista que receberam doações da JBS e da BR Foods (Sadia, Perdigão e etc).

E por aí vai… as evidências indicam que o processo legislativo é dominado por uma relação íntima entre parlamentares e o setor empresarial, construído ao longo do mandato – as frentes parlamentares são uma indicação disso – ou que já vem desde a campanha, por meio do financiamento eleitoral.

No caso em questão não houve nenhuma emenda propondo melhorar o sistema de desoneração, aperfeiçoando seus mecanismos de funcionamento ou eliminando eventuais distorções. A discussão se pautou apenas para tentar manter o incentivo fiscal para este ou aquele setor.

Aliás, quanto mais analiso os dados de comportamento parlamentar mais eu me convenço que ele é pautado estritamente pelo vínculo entre políticos e empresários. Proposição de projetos, relatorias, apresentação de emendas, votação em plenário, etc. não são frutos do debate de ideias, mas sim da retribuição por apoio financeiro nas campanhas ou pela expectativa de recebimento no futuro.

A tramitação da MP nº 774/2017 ainda não terminou. O parecer apresentado pelo relator, senador Airton Sandoval (PMDB/SP, suplente de Aloysio Nunes Ferreira), ainda será debatido em Plenário e, se aprovado, seguirá para o Senado. Mas já podemos ver que a toada é a mesma. As emendas acatadas restituem a desoneração para os principais setores – têxteis, calçados, couro, tecnologia da informação e comunicação e call centers – e ainda inclui as chamadas “empresas estratégicas de defesa”.

Não é por acaso que os setores reincluídos na desoneração estiveram presentes na audiência pública. E certamente não deve ser por acaso que os novos beneficiários (o parecer cita nominalmente a Embraer, a Iveco e a Avibrás) foram colocadas lá.

Como diria a canção dos Titãs que abre este artigo, no processo legislativo brasileiro “tudo se compra, tudo se vende; é conversando que a gente se entende”. “De novo tudo igual ao que era antes”.

 

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