Desoneração de alguns e oneração de milhões
Enquanto acompanhamos o julgamento de nossos malvados favoritos, a agenda empresarial avança a toda velocidade no Congresso
O pato vinha cantando alegremente, “quem, quem”
Quando o marreco sorridente pediu
Pra entrar também no samba, no samba, no samba
O ganso gostou da dupla e fez também, “quem, quem”
Olhou pro cisne e disse assim “vem, vem”
Que o quarteto ficará bem, muito bom , muito bem
“O Pato” (Jayme Silva & Neuza Teixeira)
Lula, Aécio, Temer, Rodrigo Maia… Como discutimos sobre o destino que merecem nossos “malvados favoritos” nas investigações e processos que compõem a novela da nossa situação política!
Enquanto nossa atenção se concentra no noticiário político-policial, uma intensa agenda legislativa rentista avança a toda velocidade no Congresso Nacional. Nossos capitalistas que tanto criticam a carga tributária mas que adoram um benefício fiscal e um crédito subsidiado do BNDES têm se movimentado bastante em Brasília – e isso não tem a ver apenas com a manutenção ou substituição de Michel Temer na Presidência da República.
Hoje vou chamar a sua atenção para a reação empresarial contrária à proposta da equipe econômica de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.
Para quem não sabe, a partir de 2011, visando estimular o emprego e a produção nacional, o governo mudou a lógica de tributação destinada ao financiamento de nossa Previdência Social. Em inúmeros setores empresariais, a dupla Dilma-Mantega trocou o modelo baseado na folha de pagamentos (com alíquotas em torno de 20%, incluindo contribuições de empregados e empregadores) para um sistema de tributação sobre o faturamento das empresas (atualmente de 1,5% a 4,5%, dependendo do setor).
Essa decisão de política econômica é um exemplo claro de como atua nosso capitalismo rentista, e como é complicado desativar seu funcionamento. Vou explicar por quê.
“O pato vinha cantando alegremente”
No início não era o verbo.
Em termos de desoneração da folha de pagamentos, ao editar a Medida Provisória nº 540/2011 a intenção era beneficiar apenas alguns setores bem específicos: TI, equipamentos de comunicação, vestuário, calçados, móveis, couro e peles – segmentos que, na visão do governo à época, estavam tendo dificuldades de recuperar o nível de atividade que tinham atingido antes da crise de 2008/2009.
O programa de desoneração destinava-se a ser temporário (de agosto de 2011 a dezembro de 2012) e ter um impacto orçamentário de R$ 214 milhões em 2011 e R$ 1,43 bilhão no ano seguinte.
Já dizia Caetano que “a vida é real e de viés”, e a verdade é que, em se tratando de medidas provisórias concedendo benefícios, quando passa um boi, passa também uma boiada. E o lobby empresarial tratou rapidamente de mobilizar seus contatos no Congresso para expandir os limites da medida provisória durante a sua tramitação.
“Quando o marreco sorridente pediu pra entrar também no samba”
Enquanto a MP nº 540/2011 percorria seu caminho no Congresso Nacional, outros setores pegaram carona nela.
Empresas de call center, de projetos e circuitos integrados, de artigos para academias de ginástica e até de botões, grampos e ilhoses também conseguiram o benefício da desoneração da folha de pagamentos com a conversão na MP na Lei nº 12.546/2011.
E ainda tiveram um bônus adicional: deputados e senadores estenderam o prazo de vigência do programa de 2012 para o final de 2014.
Se você vai seguir este blog, vai ver que isto é muito comum em se tratando de tramitação legislativa no Congresso: ampliação de benefícios, extensão de beneficiários e prorrogação de prazos.
É o rent seeking brasileiro atuando na elaboração de leis.
“O ganso gostou da dupla e fez também, ‘quem, quem’ / Olhou pro cisne e disse assim ‘vem, vem’”
Com o programa de desoneração na rua, o pessoal começou a ver que ele valia a pena e seria um excelente negócio.
E por causa disso, até o final de 2014 foram editadas mais seis normas tratando da desoneração da folha de pagamentos: Leis nº 12.715/2012, 12.794/2013, 12.844/2013, 12.873/2013, 12.995/2014 e 13.043/2014.
Todas elas resultantes de medidas provisórias – com tramitação rápida e, portanto, pouco debate junto à sociedade.
Todas elas com pouquíssimos vetos presidenciais – o que demonstra que havia concordância da Presidência da República com o crescimento dos benefícios fiscais.
Todas elas expandindo os setores beneficiados, chegando a milhares de códigos da Tipi, a tabela utilizada para classificar os setores para fins tributários. Eram 28 na primeira MP!!!
Todas elas abaixando as alíquotas de pagamento ou ampliando (até eliminarem) o fim da vigência do programa.
Olhando pra trás, estava na cara que a situação sairia de controle.
“Que o quarteto ficará bom, muito bom, muito bem”
Um problema comum nos programas de benefícios fiscais é que a conta geralmente não fecha. E ela sobra para o contribuinte comum – você e eu, pobres mortais do Sistema Tributário Nacional.
No caso da desoneração da folha de pagamentos, o governo comprou uma promessa (feita pelas empresas beneficiadas, de gerarem ou garantirem empregos) e entregou algo concreto: alívio fiscal para os empresários.
O programa foi concebido deliberadamente para ser deficitário: as alíquotas aplicadas sobre a folha de pagamentos foram trocadas por outras incidentes sobre a receita bruta das empresas, mas num patamar abaixo do que seria neutro do ponto de vista fiscal. O nome disso é renúncia fiscal.
No gráfico abaixo você tem uma dimensão de como o governo abriu mão de recursos crescentes com a desoneração da folha de pagamentos (veja as barras azuis) até o final de 2014, quando terminou a parceria Dilma-Mantega. Esse movimento foi fruto da ampliação do programa para muitos setores (a linha laranja mostra o número de empresas beneficiadas) e da redução das alíquotas (os dados são da Receita Federal e podem ser encontrados aqui):
Como você pode conferir, a renúncia tributária com a desoneração da folha de pagamento para aproximadamente 80 mil empresas superou R$ 25 bilhões em 2015 – um valor equivalente ao orçamento do programa Bolsa Família, que faz a diferença para 14 milhões de famílias no país.
A situação chegou a tal ponto que o Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, Joaquim Levy, chamou a desoneração da folha de uma brincadeira grosseira e bilionária.
Para minorar o problema Levy até conseguiu aumentar as alíquotas sobre o faturamento com a MP nº 669/2015 e a aprovação da Lei nº 13.161/2015, mas o rombo continuou.
“A voz do pato era mesmo um desacato, jogo de cena com o ganso era mato”
Não sei se você está acompanhando o raciocínio até agora, por isso vou te relembrar de um fato muito importante: quando falamos de desoneração da folha de pagamentos, estamos tratando de um tributo destinado a financiar a Previdência Social. Sim, amiga(o), a desoneração aumentou o déficit da previdência.
Tanto é assim que a redação original da MP nº 540, em seu art. 9º, IV, já previa que “a União compensará o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da desoneração, de forma a não afetar a apuração do resultado financeiro do Regime Geral de Previdência Social”.
Traduzindo o fiscalês para leigos: o que as empresas deixaram de pagar à Previdência Social em função da desoneração da folha de pagamentos teve que ser compensado por toda a sociedade – seja por meio da redução do orçamento de outros programas governamentais, seja mediante o aumento da dívida pública.
Você pode não ter sentido, mas o dinheiro saiu do seu bolso e foi direto para o empresariado nacional. E a situação é tão grave que você será obrigado a trabalhar alguns anos a mais, porque a conta não fecha.
Com a intenção de corrigir essa distorção – e conseguir uns bilhões extras para atingir a meta de déficit deste ano e do próximo – a equipe de Henrique Meirelles convenceu o Presidente da República a editar, no final de março, a Medida Provisória nº 774/2017, retirando dezenas de setores do sistema de desoneração da folha de pagamentos.
Como seria de se esperar, o empresariado chiou. Pato, marreco, ganso e cisne – reunidos na Fiesp e em outras entidades patronais – posicionaram-se contra o fim da desoneração da folha.
Se você reparar bem, o discurso dos rentistas é sempre mascarado por algum objetivo público (manutenção do emprego, combate à inflação, aumento da produção nacional, etc.) que esconde seu real interesse: o ganho individual financiado por uma perda coletiva e difusa.
No caso da desoneração da folha, o objetivo do programa era que os empresários utilizassem o ganho fiscal para aumentar a produção e, consequentemente, o emprego.
Na prática, muita gente boa suspeita que isso não tem ocorrido – pelo menos não a ponto de ficar demonstrado que o programa tem dado um resultado social superior ao déficit fiscal que ele alimenta.
É por isso que o Ministério da Fazenda quer botar ordem na casa e cortar a desoneração de muitos setores. Afinal de contas, seria bastante incoerente exigir da sociedade um sacrifício tamanho como a reforma da Previdência e manter um benefício fiscal para empresas que pressiona o déficit previdenciário.
Mas o lobby do empresariado está atento e se mobiliza para barrar ou esvaziar a proposta do governo de reduzir drasticamente a desoneração da folha de pagamentos.
E é sobre isso que vamos conversar no próximo texto: como se articulam os interesses empresariais na tramitação da MP nº 774/2017.
O objetivo é não deixar o assunto passar em branco. Porque eles pensam, ao final, que os verdadeiros patos somos todos nós.
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