Distritão e dinheirama: a “reforma política” dos políticos da Lava Jato

Bruno Carazza

Proposta de reforma política quer destinar R$ 3,5 bilhões para partidos e criar sistema eleitoral que prejudicará a governabilidade e beneficiará caciques políticos envolvidos com a Operação Lava Jato

“Money don’t get everything it’s true
What it don’t get, I can’t use
Now give me money
That’s what I want”

[Money (that’s what I want) – J. Bradford/B. Gordy Jr.]

Money (That’s what I want) foi composta em 1959 e, na voz de Barrett Strong, tornou-se o primeiro sucesso da gravadora Motown. O hit atravessou o Atlântico e, em 1º de janeiro de 1962, foi uma das canções que John, Paul, George e Pete Best (Ringo só veio depois) submeteram aos executivos da gravadora Decca na tentativa de assinar um contrato. Mas os homens da Decca disseram que os Beatles não tinham futuro porque as bandas de guitarras em breve sairiam de moda. #sqn.

Tentando se redimir de um dos maiores erros da história do show business, no ano seguinte a Decca assinou com os Rolling Stones. E advinha qual foi uma das primeiras gravações de Mick Jagger, Keith Richards e cia? Money! Yeah, that was what all of them wanted!

Ao analisar a atual proposta de reforma política, podemos dizer que dinheiro também é tudo o que os nossos parlamentares querem. Ainda não refeitos do baque da proibição das doações de empresas pelo Supremo Tribunal Federal, deputados e senadores querem a todo custo saciar sua fome de recursos para as campanhas eleitorais.

Conforme relato da Folha, esse assunto foi o prato principal de um jantar oferecido pelo Ministro Gilmar Mendes (STF) a Michel Temer, Rodrigo Maia (DEM/RJ, presidente da Câmara), Eunício Oliveira (PMDB/CE, presidente do Senado), Aécio Neves (PSDB/MG) e um seleto grupo de comensais em março passado. A ideia, àquela altura, era instituir o financiamento público de campanhas, combinado com um sistema de eleição por lista fechada para deputados federais, estaduais e vereadores.

A proposta de Gilmar Mendes foi encampada pelo relator da reforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido (PT/SP) [veja aqui o seu terceiro relatório]. Para quem não está por dentro, funcionaria assim: partido definiria em convenção uma lista de candidatos classificados por ordem de preferência. No dia da eleição, nós votaríamos num partido, e não mais num candidato específico. Após a contagem de votos, seria definido o número de cadeiras a que cada legenda teria direito e elas seriam ocupadas pelos candidatos designados na lista do partido. Só para ficar claro, se o hipotético partido PQP recebeu votos suficientes para ter 3 vagas na Câmara dos Deputados, elas seriam ocupadas pelos três primeiros candidatos da sua lista prévia.

Um detalhe importantíssimo: já que o dinheiro das empresas secou, para custear as campanhas seria criado o Fundo de Financiamento da Democracia, composto por R$ 2 bilhões para ser distribuído entre os partidos. Esse dinheiro, claro, virá “do seu, do meu, do nosso” bolso – deve ser por isso que o fundo tem “democracia” no nome.

Não sei se foi porque quase ninguém mais acredita nos partidos ou porque começaram a dizer que a proposta era uma estratégia para manter o foro privilegiado da cúpula do Congresso, mas o fato é que a ideia de lista fechada aparentemente foi abandonada. Enquanto o país acompanha o novo núcleo temático da novela da Lava Jato, o embate entre Temer e Janot, nossos representantes continuam a conversar sobre a reforma política em jantares e almoços. E a bola da vez para resolver o problema dos políticos – e não do país – é o “distritão”.

De acordo com as últimas notícias, parlamentares do governo e da oposição estão selando um pacto para colocar mais dinheiro nas eleições de 2018 (sim, pode faltar dinheiro para emitir passaporte, mas devem estar sobrando R$ 3,5 bilhões para destinar aos políticos nas próximas eleições). De quebra, estão decidindo que a disputa será na base do “ganhou mais votos, levou” –  essa é a lógica do “distritão”.

Na experiência internacional, os países definem as regras de seleção dos parlamentares tendo em vista diferentes objetivos. Alguns privilegiam a escolha de candidatos que, na média, representem o perfil da população e sua diversidade de opiniões políticas; em outros, incentiva-se o vínculo entre os candidatos e a região onde moram.

A depender das regras também podemos ter modelos mais ou menos fáceis de ser compreendidos pelo eleitorado – variável importante neste momento de falta de confiança na política.

Os sistemas eleitorais também têm impactos diretos na governabilidade do Presidente da República, na medida em que podem gerar um Congresso composto por poucos partidos ou fragmentado em inúmeras legendas – situação que eleva consideravelmente o custo de governar, como aprendemos com o Mensalão e a Lava Jato.

Além disso, dependendo das regras do jogo, temos sistemas mais caros ou mais baratos – e mais ou menos permeáveis à influência de grandes doadores privados.

No modelo do “distritão” apenas um desses 5 grandes objetivos (representatividade da população, proximidade com o eleitor, facilidade de compreensão, governabilidade e custo) é atendido.

Se o Congresso optar por ele na atual reforma política, em 2018 serão eleitos os candidatos mais votados em cada Estado, independentemente da votação total de seu partido. Para a população, será fácil entender essa regra – e aí está a sua única vantagem. No mais, o “distritão” agrava todas as mazelas do atual sistema eleitoral brasileiro – esse modelo que produz corrupção, crise de governabilidade e afasta a população da política.

As eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil são caríssimas. Disputadas nos Estados, os candidatos têm que fazer campanha em regiões muito grandes, seja em termos de território ou de população. Além disso, quem quiser se tornar deputado federal tem que vencer no voto não apenas os adversários das outras legendas, mas também os colegas do próprio partido ou coligação. No modelo atual, portanto, há um claro incentivo para que se gaste muito na campanha.

É por isso que existe uma relação positiva entre número de votos e doações eleitorais no Brasil – ou seja, as chances de ser eleito aumentam com o total de dinheiro que você consegue arrecadar, o que abre um imenso flanco para corrupção. No gráfico abaixo você consegue visualizar essa associação nas eleições para a Câmara de 2014 – basta selecionar o Estado no filtro e passar o cursor sobre as bolinhas para saber quanto cada candidato

 

Se o Congresso optar pelo “distritão” em 2018, nada disso vai mudar. Aliás, pode até piorar. No sistema atual, as vagas de deputado em cada Estado são distribuídas segundo a soma de votos de todos os candidatos de um partido ou coligação, para daí serem escolhidos os mais votados em cada “time”. Na proposta do “distritão”, valerá o salve-se quem puder – ou seja, os mais votados serão eleitos, independentemente do desempenho agregado do partido.

Assim, o dinheiro ganhará ainda mais importância na campanha, pois a conexão com os votos será potencializada, pois abriremos mão da intermediação dos partidos. Com o “distritão” não importa a força do partido e sim exclusivamente o potencial – financeiro, arrecadatório ou de popularidade – do candidato.

Essa característica do “distritão” certamente levará a um Congresso ainda mais fragmentado a partir de 2019. Na medida em que o peso do partido perderá importância nas eleições, haverá um incentivo para que candidatos fortes migrem para partidos pequenos.

Se o que vale é quem tem mais votos, tanto faz para o milionário “não-político”, a celebridade ou o líder religioso concorrer por um partido grande ou pequeno. Aliás, num partido pequeno seu trabalho será ainda mais fácil, porque não precisará se sujeitar aos mandos e desmandos dos velhos e novos caciques partidários.

A tendência, portanto, será termos ainda mais partidos com representação no Congresso e uma diminuição das bancadas das legendas tradicionais. Em outras palavras, quem quer que vença as eleições presidenciais de 2018, seu trabalho para governar será ainda maior do que agora. Sob esse ponto de vista, esperamos mais crises políticas pela frente.

Eleições mais caras, pouco vínculo com o eleitor (as eleições continuarão sendo disputadas em âmbito estadual) e pior governabilidade não são os únicos defeitos do “distritão”. A combinação de muito dinheiro público (R$ 3,5 bilhões) e a regra do “vence quem ganha mais votos” pode potencializar o grande problema do sistema eleitoral brasileiro: a seleção de parlamentares que não nos representam. E o que é pior: aumentará a probabilidade de reelegermos os políticos enrascados com a Lava Jato.

Como você pode ver no gráfico abaixo, uma das excrecências de nossas regras eleitorais é dar muito poder aos diretórios regionais na distribuição do dinheiro de campanha arrecadado pelos partidos (tanto o recebido do fundo partidário quantos o arrecadado junto a pessoas físicas e, até 2014, empresas). Os caciques regionais detêm ampla liberdade para alocar essa grana entre os candidatos, o que resulta numa distribuição extremamente desigual de recursos. Clique no gráfico abaixo e veja como cada partido repartiu o dinheiro entre os candidatos de cada Estado nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados.

 

No modelo que está sendo proposto, os líderes partidários terão R$ 3,5 bilhões para aplicar nas campanhas de seus correligionários, além das doações individuais. De acordo com a sugestão que está atualmente na mesa, 2% desse valor será distribuído igualmente entre todos os partidos e os outros 98% serão alocados conforme a bancada eleita em 2014.

E aí é que está a grande jogada. As maiores bancadas eleitas em 2014 foram, respectivamente, PT (13,3%), PMDB (12,7%), PSDB (10,5%) e, na sequência, PP, PSD, PR e PSB (todos entre 6,6% e 7,4%). Multiplique esses percentuais por R$ 3,5 bilhões e veja quanto cada um vai levar…

Essa montanha de dinheiro a ser recebida pelos grandes partidos – justamente os mais envolvidos com a Lava Jato – será distribuída (em malas, talvez…) pelos líderes dos diretórios estaduais entre os seus candidatos.

Como no “distritão” será eleito quem ganhar mais votos independentemente do desempenho dos outros candidatos do partido, é de se esperar uma disparidade ainda maior na distribuição do dinheiro vindo do tal Fundo de Financiamento da Democracia. E, obviamente, haverá muita gente na mira da Lava Jato que vai fazer de tudo para ficar com um bom quinhão desse dinheiro público para continuar no poder.

Colocar mais dinheiro público e deixar que os partidos distribuam é, portanto, um cheque em branco para i) beneficiar os grandes partidos (que ganharão a maior fatia do bolo) e ii) privilegiar os caciques dos partidos ou seus asseclas mais próximos (justamente os que estão implicados na Lava Jato).

Reforma política (assim como a tributária) é um daqueles temas que todo mundo é a favor, mas na hora do vamos ver dá uma preguiça tremenda de acompanhar, estudar e propor soluções. Quando alguma coisa chega a ser aprovada, quase sempre acaba piorando as coisas – pois só os diretamente interessados é que se envolvem; a população em geral prefere continuar no flaflu entre petralhas e coxinhas nas redes sociais.

Nós estamos numa encruzilhada histórica e nossos parlamentares estão a ponto de aprovar uma reforma política que aumenta a quantidade de dinheiro que poderão gastar nas suas campanhas, beneficiando justamente aqueles que gostaríamos que fossem retirados de lá depois das revelações da Lava Jato.

De quebra, a proposta da “reforma política” proposta pelos políticos pode levar a um Congresso ainda mais fragmentado, menos representativo e com maiores chances de que o critério de eleição seja o dinheiro, a fama ou o tamanho do rebanho religioso – sem, com isso, aumentarmos a responsividade dos políticos ao seu eleitorado.

Temos muitos motivos para deixar de nos preocuparmos com o debate direita e esquerda e unirmos nossas forças para sepultar essa proposta de “distritão” com mais dinheiro público nas campanhas. Aliás, chega de dar dinheiro para os políticos. That’s what I don’t want.