Porque vocês não sabem do lixo ocidental

Bruno Carazza

Para ser competitivo, partidos têm que captar doações e ceder a demandas privadas

“Por que vocês não sabem do lixo Ocidental?
(…)
Eu sou da América do Sul
Sei vocês não vão saber”

(Para Lennon e Mccartney – Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges)

No último dia 20/05 escrevi um artigo para a Folha criticando as condições dos acordos de leniência e de delação premiada firmados com a JBS e seus principais executivos e acionistas. Para ilustrar meu argumento, citei o livro “Por que as Nações Fracassam?”, escrito pelo economista Daron Acemoglu (MIT) e pelo cientista político James Robinson (Universidade de Chicago).

Analisando o desenvolvimento de sociedades da Pré História até os dias atuais, os autores chegam a um diagnóstico que considero perfeito para descrever o Brasil: um país dominado há séculos por uma elite econômica e uma casta política umbilicalmente relacionadas, produzindo políticas públicas e leis concentradoras de renda e de poder.

Na conclusão do livro (atenção para o spoiller!), Acemoglu & Robinson apostavam que estávamos a ponto de atingir o momento crítico de criação de instituições políticas e econômicas pluralistas, que fomentam a alternância do poder, a competição e a inovação. Na visão dos autores, poucos países subdesenvolvidos pareciam tão aptos a romper o ciclo de extrativismo político e econômico e iniciar uma nova era de crescimento acompanhado de distribuição de renda como o Brasil.

Para Acemoglu & Robinson, a ascensão do PT ao poder representava a possibilidade dessa grande virada no desenvolvimento brasileiro. Um partido com forte base social, que cresceu ao longo de três décadas acumulando administrações municipais e estaduais que fomentavam a participação social (vide as experiências dos conselhos sociais e dos orçamentos participativos) e que chegou à Presidência da República comprometido com “a provisão de serviços públicos, expansão educacional e um nivelamento das condições do jogo” na economia. Na conclusão do livro, o Brasil é retratado pelos autores de modo muito mais auspicioso do que a Venezuela – e “seus políticos corruptos, com redes de compadrio” com o empresariado – ou o Peru, em que fitas de vídeos revelavam políticos sendo comprados por Fujimori e Montesinos. O Brasil havia “quebrado o molde” de típica República de Banana latino-americana.

Obviamente o otimismo de Acemoglu & Robinson não se devia apenas a uma predileção especial pelo PT. Na sua análise estão implícitas as mudanças no ambiente institucional que permitiram que um partido de esquerda vencesse as eleições presidenciais e implementasse o seu programa de governo sem rupturas. E isso aconteceu devido a um histórico que começa na redemocratização, se aprofunda com a Constituição de 1988, consolida-se com o Plano Real e, na visão dos autores, culmina com a eleição de Lula em 2002 e os sucessivos mandatos petistas. Uma história de sucesso, portanto, que sinalizava ao mundo que estávamos trilhando um caminho de reformas econômicas e sociais incrementais, voltadas para o crescimento e a redução da desigualdade social.

O livro de Acemoglu & Robinson foi lançado em 2012. Àquela época o Brasil já tinha decolado na capa da Economist, mas logo depois a mesma revista retrataria o mesmo Cristo Redentor desgovernado, perguntando se (melhor seria por que) havíamos “estragado tudo”. Sobretudo, naquela época ainda não havia a Operação Lava Jato.

As revelações obtidas pelas investigações da Polícia Federal e do Ministério Público, inclusive as derivadas das delações premiadas, expuseram as vísceras de nossa República, em que a “coisa pública” era devorada por um esquema tão extrativista que certamente surpreenderia Acemoglu & Robinson.

A Operação Lava Jato revelou que, ao contrário do que imaginaram os dois pesquisadores, a associação entre as elites política e econômica no Brasil não respeita coloração partidária. O envolvimento da cúpula do PT com as grandes empreiteiras e a JBS revela o mesmo modo de operação praticado desde sempre no Brasil: em troca de propinas e contribuições de campanhas, os políticos oferecem licitações de cartas marcadas, benefícios fiscais, crédito subsidiado em bancos públicos, regulação favorável e outras benesses para as grandes empresas. Aliás, é difícil imaginar um exemplo tão evidente dessa “parceria público-privada” no Brasil do que aquela conversa de Temer com Joesley Batista no porão da residência oficial, altas horas da noite…

Analisando os dados oficiais de financiamento eleitoral, percebe-se como o PT passa a atrair cada vez mais recursos à medida em que se consolida como uma alternativa viável de poder, a ponto de aproximar-se dos níveis de PSDB e PMDB, partidos que tradicionalmente ocupam as posições de liderança na atração de capital nas eleições brasileiras.

Volume de financiamento privado – pessoas físicas, pessoas jurídicas e autofinanciamento de candidatos – de partidos selecionados nas eleições de 1994 a 2014

Sob o prisma das fontes de financiamento das campanhas, também é possível ver que a partir de 2002, quando assumiu a Presidência, o PT torna-se mais dependente de recursos empresariais, aproximando-se de forma crescente do perfil apresentado pelos seus principais rivais com inclinação ideológica à sua direita.

Percentual de doações feitas por pessoas jurídicas no financiamento privado de partidos selecionados nas eleições de 1998 a 2014

Essa aproximação junto aos grandes empresários para tornar viáveis as suas campanhas eleitorais resultou, como consequência, numa menor representatividade das doações de pessoas físicas. Nesse ponto, os dados apontam claramente para uma distinção entre a evolução do perfil do PT – e também de seu principal e mais fiel parceiro de coligações nas eleições presidenciais, o PC do B – e dos partidos de esquerda mais radicais, como o PSOL, o PSTU, o PCB e o PCO. No gráfico abaixo nota-se que, a partir de 2002, PT e PC do B conseguiram atrair um volume tão significativo de recursos empresariais que a participação das doações provenientes de pessoas físicas foi sendo reduzida a cada ciclo eleitoral para um nível bem inferior ao dos demais partidos de esquerda que não participaram oficialmente da coligação no poder.

Percentual de doações feitas por pessoas físicas no financiamento privado de partidos de esquerda nas eleições de 1998 a 2014

O que eu quero demonstrar com os dados acima é que, para tornar-se competitivo no plano eleitoral, o PT adotou as mesmas estratégias de seus principais adversários políticos, captando doações milionárias de grandes empresas e – como ficamos sabendo a cada dia com os desdobramentos da Operação Lava Jato – cedendo a suas demandas por mais benesses.

Acemoglu & Robinson, à época em que publicaram o seu livro, não perceberam que, a despeito de suas louváveis políticas voltadas ao combate à pobreza e à diminuição da desigualdade social, o PT não foi capaz de romper com as amarras institucionais que unem nossas elites política e econômica.

Assim, se estamos interessados em realizar uma verdadeira “virada crítica” em nossa história de corrupção e desvio de recursos públicos, temos que investigar as engrenagens que fazem esse sistema funcionar no modo “concentração de renda e poder” e buscar soluções para desarmá-lo. Essa é a mais urgente reforma institucional a ser implementada no Brasil – e vai muito além da tão falada reforma política, porque envolve os mecanismos que tornam os assuntos de Estado tão atraentes para os grupos de interesses.

Nas próximas postagens pretendo discutir alguns desses problemas e as possíveis soluções disponíveis – seja na agenda legislativa, na academia ou na experiência internacional. Aguardo vocês!

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Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689-1755), conhecido simplesmente como Montesquieu, levou 20 anos escrevendo “O Espírito das Leis”.

Este blog não tem a pretensão de alcançar a influência desse grande tratado de teoria política. Ele apenas pega emprestado o nome escolhido por Montesquieu porque tem a legislação como o seu objeto de estudo.

Meu objetivo aqui é discutir o modo como as leis são concebidas no Brasil. A proposta é analisar projetos legislativos e políticas públicas que estão em pauta sob uma perspectiva mais técnica, utilizando elementos da Economia, do Direito e da Ciência Política.

Parto do princípio de que a discussão política deve ser mais qualificada, utilizando mais dados e menos opinião. Acredito que entre o “sou a favor” e o “sou contra” de uma reforma da previdência ou de uma reforma trabalhista, por exemplo, existe uma miríade de possibilidades de tornar a legislação mais próxima do “interesse público” – seja lá o que isso significa.

As leis não caem do céu, e no processo de sua elaboração afloram interesses, lobbies e negociações muitas vezes “pouco republicanas” (por isso o cifrão no título). Minha intenção ao escrever os textos deste blog da Folha, portanto, é lançar luz sobre a tramitação de projetos relevantes na pauta do Congresso, tentando contribuir para o debate político que, hoje em dia, situa-se cada vez nesta ampla arena virtual.

E como a ideia aqui não é veicular esta ou aquela visão ideológica ou partidária do mundo, fique à vontade para discordar e opinar, por meio do e-mail brunocarazza.oespiritodasleis@gmail.com. Conto com suas contribuições!